segunda-feira, 31 de julho de 2017

Inconsequência e desinformação explicam apoio a Maduro em 2017

Os noticiários há pelo menos três anos são inundados pelas mesmas considerações sobre a crise na Venezuela: “situação drástica”, “governo insustentável”, “protestos reprimidos da oposição” e cifras sobre inflação, desabastecimento, queda no PIB e outros números para ilustrar o fracasso do governo de Nicolás Maduro. Desta forma, é compreensível que, por outro lado, os defensores do “socialismo na América Latina”, da “Revolução Bolivariana”, e do legado do chavismo para os mais pobres, se aferrem aos mesmos argumentos de 2014. No entanto, na realidade de 2017, a estratégia do que resta de apoio internacional do regime soa como um misto de desinformação e inconsequência.

De fato, o chavismo aproveitou bem o alto valor do petróleo para conseguir importantes investimentos na população mais desfavorecida da Venezuela, aumentando expectativa de vida e o poder de compra dos venezuelanos. Como já foi extensamente propagado nos últimos três anos, a queda no valor do barril, que chegou a custar menos que US$ 30, enquanto nos tempos dourados de Chavéz ultrapassava os US$ 100, foi um baque até hoje irreparável na economia que detém as maiores reservas de petróleo do mundo e exportações que dependem do óleo em 95%.

O lado menos contato da história, e que vem aparecendo gradualmente, é para onde foi outra parte deste dinheiro. A Venezuela, assim como o Brasil, não sofreu somente com a queda do preço internacional de matérias primas, mas também com um assalto aos cofres do Estado com um misto de incompetência, e a prioridade a interesses espúrios. No que a revista Economist classificou como “gangstercracia”, o ex-ministro do orçamento venezuelano Jorge Giordani afirma que dos US$ 1 trilhão que o país conseguiu com a venda do petróleo, US$ 300 bilhões teriam sido desviados. O atual vice-presidente, Tareck El Aissami, é acusado internacionalmente de integrar uma rede do narcotráfico, que contaria com a colaboração de altos funcionários do governo venezuelano. Quem fez a denúncia junto a Giordani foi Hector Navarro, que esteve à frente de cinco ministérios no governo de Chavéz, e que afirma “ladrões não têm ideologia”.

Desta forma, o que não devem pensar os 93% dos venezuelanos que afirmaram em pesquisa não conseguir comprar o que precisam de comida, assim como os cerca de 75% que perderam peso no ano passado ao ouvir a defesa do atual governo por conta de sua prioridade aos mais pobres? A inflação, que deve alcançar os 1000% neste ano, a maior do mundo, consome o poder de compra daqueles que veem este equiparado à década de 50. A mortalidade materna cresceu 66% no último ano, e a infantil 30%, números que para serem divulgados custaram o cargo da ministra da Saúde.

No começo da crise, uma das principais defesas que era feita ao regime foi a da manutenção das liberdades. Como o caso da ministra da Saúde ilustra, e que ficou evidente com o cerceamento aos trabalhos da procuradora-geral Luísa Ortega Díaz, chavista e que chegou a ter seus bens bloqueados por conta da oposição a Maduro, internamente a liberdade não passa de ilusão. A liberdade de imprensa, que de fato ainda é maior do que em históricas guinadas autoritárias na América Latina, foi cerceada nos últimos tempos, em especial com a simbólica ordem de fechamento da CNN.

Liberdade de manifestação, como se sabe, nunca foi o forte do governo de Maduro. Os primeiros protestos foram duramente reprimidos, culminando inclusive com uma série de encarceramentos e até em mortes. No entanto, desde as marchas que se iniciaram em abril deste ano, mais de 100 pessoas já perderam suas vidas em manifestações contra o governo, parte delas vítimas de assassinatos brutais por milícias urbanas. Apenas nos protestos em decorrência da votação pela Assembleia Constituinte, já são contabilizadas ao menos 15 mortes.

A capacidade de restabelecer a ordem democrática por meio da Assembleia, como é defendido por parte dos apoiadores do regime, é uma falácia. As 545 cadeiras em disputa pelo pleito reservavam importantes margens à setores ligados ao governo, inclusive com algumas pessoas podendo escolher por duas vezes seus representantes. A eleição municipal fez com que localidades pequenas tivessem a mesma equivalência das principais cidades, onde o antichavismo é mais forte, em uma violação da paridade do voto (sim, o que não deixa de ocorrer, de certa forma, no sistema eleitoral do EUA). As denúncias de que funcionários públicos foram ameaçados em caso de não comparecimento à votação foram frequentes, assim como as de sanções aos beneficiários de programas do governo que não o fizessem. Por fim, Diosdado Cabello, conhecido como número dois do chavismo, acusado de corrupção e envolvimento com o narcotráfico, Cilia Flores, esposa de Maduro, e Delcy Rodriguez, ministra das relações exteriores do governo, terminaram eleitos.

Diante do atual quadro do regime, não passa de uma retórica vazia as expressões que acusam uma suposta “direita” de arquitetar contra Maduro. Quanto às acusações norte-americanas de ingerência, o país segue comprando quase metade do petróleo exportado pelos venezuelanos, sendo sede de importantes operações da estatal PSVDA no ramo. Sanções contra o país dificilmente surtiriam efeito, já que reforçariam os argumentos “anti-imperialistas” de Maduro para sua base, e que buscaria outros parceiros, como a já importantíssima China e a Rússia, que passou a exercer mais influência após acordos venezuelanos com sua estatal petrolífera, a Rosneft. Por outro lado, os norte-americanos neste caso teriam pouco a ganhar, sendo obrigados a buscarem óleo em áreas mais onerosas e provavelmente assistindo a um aumento no preço do barril no cenário global.

Sanções contra a alta cúpula do regime, como El Aissami, que já conta com embargos norte-americanos, são um caminho responsável, e que pode surtir efeito. No entanto, nada além de forçar o regime a ir, de fato, à mesa de negociações pode representar o melhor aos interesses venezuelanos. Enquanto Maduro anunciava suas intenções de diálogo, como quando contou com a mediação do Vaticano, o regime se desviava cada vez mais do viés democrático. Desde 2014 presos políticos foram feitos na Venezuela, eleições marcadas foram adiadas sem prazo, um referendo revogatório previsto na constituição foi ignorado, e no auge do autoritarismo, o Tribunal Supremo assumiu os poderes da Assembleia Nacional, de maioria opositora, em um golpe que remonta ao século XX na América Latina e que a pressão internacional foi vital para o regime voltar atrás.

A instituição da Assembleia Constituinte representa um importante marco nas rupturas do processo democrático venezuelano que deve ser repudiado internacionalmente, tendo em vista minimizar suas consequências, que variam desde a instauração de uma ditadura plena à uma guerra civil. A inconsequência da ala petista que domina o partido com mais apoiadores no Brasil é lamentável, baseada em argumentos que não condizem com a realidade e a defesa de um regime transgressor do viés democrático. É fato que, somente os próprios venezuelanos e o diálogo poderão resolver a grave crise pela qual passa o país, no entanto, a mediação externa se faz necessária. Criticar atos de um regime que atenta à ordem democrática não faz ninguém menos aferrado a uma ideologia, assim como fizeram diversos respeitados intelectuais de esquerda e a procurado Ortega Diaz. Um posicionamento mais embasado para além de chavões distantes da realidade e dedinhos no bigode para cantar “tô com Maduro” é necessário neste momento em que sim, a Venezuela pode ter dado um passo sem volta rumo ao autoritarismo.

Maduro, longe demais no 30/07


quinta-feira, 27 de julho de 2017

Papo de Boteco no VPC

Uma das melhores iniciativas recentes na cobertura da mídia brasileira em assuntos mundiais foi a criação do programa GloboNews Internacional. Comandado pelo excelente Dony De Nuccio, e com comentários de Marcelo Lins, Ariel Palacios e Guga Chacra (que inspira parte importante do que está presente aqui), a segunda parte do programa é sempre composta pelo “Papo de Boteco”. Na ocasião, cada um dos participantes traz uma curiosidade que de preferência tenha tido a menor repercussão possível no noticiário.

Como entusiasta de questões pouco abordadas, decidi repetir aqui a ideia. Desta forma, trouxe informações que podem ser simplesmente curiosas, como a da eleição da Libéria em 2005, ou traçar tendências de prioridades globais, de acordo com a interpretação de cada um. Tentei fazer o menor juízo de valor possível, o que é muito complicado. Alguns dados, como os relativos a homicídios e terrorismo, são muito difíceis de se ter exatidão, portanto, é muito possível que variem conforme a fonte. Confira:

-Emanuel Macron, além de presidente francês, também é monarca. O cargo de co-príncipe de Andorra, um pequeno país entre a França e a Espanha, é destinado ao presidente da França.
-Um melhor jogador do mundo da FIFA já disputou uma eleição presidencial contra uma Nobel da Paz. O caso aconteceu em 2005 na Libéria, quando George Weah, melhor do mundo em 95, perdeu a eleição para Ellen Johnson Sirleaf, Nobel em 2011.
-O maior comprador de armas no mercado mundial é a Índia, seguida pela Arábia Saudita.
-Os 11 países com maiores superfícies marítimas, e, portanto, com direito de exploração econômica são, respectivamente: EUA, França, Austrália, Rússia, Reino Unido, Indonésia, Canadá, Japão, Nova Zelândia, Chile e Brasil. As superfícies abrangem territórios ultramarinos, como Guam no caso dos EUA e a Guina Francesa.

-O país que terá o maior crescimento do PIB neste ano é a Etiópia, com 8,3%. Dos outros dez entre os maiores crescimentos, 8 ficam na Ásia, e o vizinho à Etiópia Djibouti fica em sexto.
-Bangkok é a cidade que mais recebeu turistas em 2016 (21,5 milhões), quase o dobro da quinta colocada, Nova York (12,8 milhões). Londres, Paris e Dubai seguem a capital tailandesa.
-O Brasil é o único país das Américas com embaixadas em ambas Coreias.
-Trump foi o primeiro presidente norte-americano a fazer sua viagem inaugural para o Oriente Médio, ao visitar a Arábia Saudita. Canadá com oito vezes, e México com quatro, são os destinos mais habituais.
-Em 2016, morte por opiáceos foi a principal causa de morte entre pessoas de até 50 anos de idade nos EUA. Cerca de 60 mil perderam a vida por conta de overdoses por produtos como a heroína e o fentanil.
-Apenas cinco países têm, de fato, um PIB maior do que a Califórnia: Reino Unido, Alemanha, Japão, China e os EUA.
-Na China 786 milhões de pessoas, quase quatro vezes a população do Brasil, viviam em extrema pobreza em 1990, número que passou a 25 milhões em 2013.
-Nova Orleans tem um índice de homicídios a cada 100 mil habitantes de 62,1. O país recorde no quesito é Honduras, com 68,4. Em Detroit o nível é de 35,9, próximo ao de El Salvador, que é 39,9. Em Miami é 23,7, enquanto em São Paulo, gira entorno de 11.
-O principal produto de exportação do Afeganistão é o ópio, amplamente consumido no vizinho Irã. A papoula, planta da qual se origina a droga, também é base para a heroína, e o Afeganistão tem amplas terras de cultivo da mesma, que pode ter como destino a Europa.
-A população mundial de judeus hoje é de 13,5 milhões de pessoas. Cerca de 5,7 milhões vivem em Israel, e 5,3 milhões nos EUA. Em sequência, França, Reino Unido e Rússia. Em 1939 o grupo somava mais de 16 milhões de pessoas.
-O presidente do Líbano obrigatoriamente tem de ser cristão maronita. O primeiro-ministro por conta do mesmo acordo deve ser muçulmano sunita, líder do parlamento, xiita.
-O Brasil por um período de tempo chegou a ser o único país do mundo a ter um presidente libanês. É que Michel Temer tem nacionalidade libanesa, e por conta de imbróglios políticos, o Líbano ficou por quase dois anos sem presidente.
-As atuais prefeitas de Ramalá e Belém, ambas cidades palestinas na Cisjordânia, são cristãs.
-No Irã é extremamente raro que mulheres usem burca (que cobre todo o corpo). No Afeganistão, inclusive alguns maridos dizem desejar que suas esposas fossem liberais como as iranianas.
-O México é o país em que mais se decapita no mundo. 50% dos homicídios no país se concentram em três estados: Guerrero, Michoacan e Sinaloa.
-De 2000 a 2016, 2,6 milhões de pessoas foram mortas na América Latina. É aproximadamente a população do Uruguai.
-Dos dez maiores campos de refugiados no mundo, sete ficam na África. O principal relacionado à crise síria, Zaatari, é o quinto. O maior é Dadaab, no Quênia, relativo aos conflitos na Somália. Os dados são de 2016, e é possível que a tendência mude, com refugiados do Sudão do Sul criando grandes aglomerações, e com Dadaab diminuindo seu tamanho por decisões do governo queniano.
-Quatro países concentram cerca de 71% dos atentados terroristas no mundo, sendo o Iraque o líder, além de Afeganistão, Síria e Somália. 2,5% dos ataques foi realizado no Ocidente.
-Os ataques terroristas com ao menos uma morte na Europa chegaram a quase 300 em anos na década de 70, enquanto ficaram próximos de 20 em 2015. Desde 95 o número não passa de 100.

sábado, 15 de julho de 2017

A verdadeira "Náusea" ao Governo Temer

Após o fim do primeiro tempo da partida entre São Paulo e Atlético Goianiense, coloquei no Jornal Nacional e assisti à cobertura da votação sobre o prosseguimento da denúncia sobre Temer na CCJ da Câmara. A sofrível atuação do Tricolor e o resultado da comissão me fizeram brincar que eu “estaria me sentindo preso na obra ‘A Náusea’, de Sartre”. Mas uma entrevista com bem menos repercussão do que a votação na Câmara, e ofuscada por ser no dia seguinte à condenação de Lula, me fez sentir ainda pior.

Ao ser questionado sobre uma possível exoneração do cargo de ministro da Saúde, Ricardo de Barros afirmou que é “um soldado do presidente”, e que estaria disponível para ajudar seu aliado. Barros, eleito deputado pelo PP do Paraná, poderia assim voltar à Câmara, garantindo mais um voto no plenário contra a denúncia de Temer por corrupção passiva. Desta forma, o responsável máximo pela Saúde no Brasil abdicaria de seu cargo para votar contra o prosseguimento de uma denúncia, que na palavra do procurador geral da República, Rodrigo Janot, contém uma “prova satânica”. Qualquer falante do português que tenha ouvido o “tem que continuar isso ai” não tem grandes razões para duvidar disso.

O custo real de uma troca em um ministério como a Saúde é incomensurável, principalmente tendo em vista que o “soldado” Barros, ainda poderia ter de votar de maneira contrária a ao menos outras duas denúncias que devem seguir à primeira, por corrupção passiva. No entanto, o preço do apoio ao presidente, segundo levantamento do Reuters, ficou em R$ 1,5 bilhão apenas no mês de junho, frente a R$ 959 milhões no período anterior, para emendas parlamentares, conhecidas moedas de troca em Brasília.

Notem que diferencio “preço” de “custo”. O preço neste caso fica em quase R$ 600 milhões, mas o custo social provavelmente é maior. O orçamento para ciências e inovação no Brasil, que vem padecendo de recursos, é de R$ 2,5 bilhões neste ano. No mundo atual é quase impossível vislumbrar um real desenvolvimento de uma nação sem investir em tecnologias e inovação. O cenário é dramático e bem explicado nesta entrevista.

No caso da Saúde, as trocas no comando costumam ter efeitos em substituir cargos importantes e na não continuidade de vitais políticas públicas. Recentemente conversei com um dos principais representantes do Ministério, que me passou ótima impressão. De currículo inquestionável, e no cargo desde janeiro deste ano, anotava as demandas e sugestões dos presentes em uma plateia composta por muitos funcionários municipais da saúde, e explicava com franqueza as condições de sua pasta. Devido à institucionalidade, o perguntei sobre a “efemeridade do cargo”, nada mais do que o troca-troca por conta da politicagem. Sua resposta me agradou bastante: “É importante que as políticas públicas sejam de Estado, não de Governo, para que as pessoas não sejam mais importantes do que as políticas, e que estas tenham sua efetividade garantida”.

Pessoas mais importantes do que a política. É disso que se tratou até agora o governo Temer. Em outra pasta importantíssima, a Justiça, o Planalto foi ainda mais longe ao defender os interesses do presidente em detrimento dos da nação. Osmar Serraglio foi substituído por Torquato Jardim em grande parte por conta da articulação deste junto ao TSE, tribunal do qual já foi presidente, e onde Temer viria a ser julgado no histórico “velório” do qual três não quiseram levar o caixão. A situação criou um problema inesperado para o Planalto, já que Serraglio recusou a pasta da Transparência, retomando assim seu cargo na Câmara. Sua vaga era ocupada justamente pelo suplente Rodrigo Rocha Loures, o “homem da mala”, que perderia assim seu foro privilegiado, podendo ir preso logo e deixando aberta a possibilidade de uma delação. O desespero no governo levou a uma série de ofertas ministeriais aos deputados do PMDB do Paraná, inclusive na Saúde.

A possibilidade do PSDB desembarcar do governo coloca em dúvida a continuidade nos trabalhos de todas as pastas que têm o partido à frente. Uma delas é o Itamaraty, comandada por Aloysio Nunes. Em caso de mais uma troca, o Ministério das Relações Exteriores terá seu quarto comandante em menos de três anos. Aqueles que acompanham a pasta mais de perto vêm indicando uma racha em três frentes. Uma composta pelos diplomatas de carreira e tradicionalmente respeitada, nesta que é uma das chancelarias mais honradas do mundo, viria batendo de frente com a ala política comandada por Nunes. Por outro lado, o Planalto quer adotar uma postura mais resguardada, tendo em vista a instabilidade do governo.

Ter políticos à frente de pastas importantes não representa um problema. No caso das chancelarias, hoje uma das que vem mais se destacando no cenário internacional por sua postura sensata é a alemã, comandada por Sigmar Gabriel. O cargo tradicionalmente é ocupado pelo segundo líder mais votado que irá compor a coalizão, no caso de Gabriel, líder do SPD, que comanda o país junto à CDU de Merkel. O Foreing Office britânico é normalmente comandado por uma figura pública relevante, hoje o ex-prefeito de Londres Boris Johnson. Na gestão de Obama, os senadores John Kerry e Hillary Clinton assumiram o Departamento de Estado.

Mas aqui, mais do que a realização de escolhas “técnicas” ou não, o que estamos assistindo é o uso dos cargos mais relevantes para a população com o fim espúrio de dar sustentabilidade a um governo fortemente rechaçado. O custo das trocas de cargos e a falta de continuidade em políticas públicas é impossível de ser medido de fato, e provavelmente é mais impactante do que as enormes somas desviadas do erário por corrupção. É nestes casos que devemos concentrar a “náusea” que vem tomando conta do país desde o começo da crise. 

                                                FOTO: DIDA MACHADO, ESTADÃO
                              Renunciar a governar para os brasileiros já ocorreu há algum tempo

terça-feira, 13 de junho de 2017

Na China, já é futuro

Há uma década, tema comum em muitas rodas de conversa era o crescimento chinês. A necessidade de se aprender mandarim, a língua do futuro (nesta época, já não mais conhecida como “chinês”), misturava-se às perspectivas de que logo a China tomaria o lugar dos EUA como a grande potência hegemônica mundial. Nos últimos meses, as expressões ganharam importantes fundos de verdade.

O mandarim dificilmente será uma língua universal. O idioma é falado por grande parte dos chineses, mas o país com quase um quarto da população mundial abriga uma série de outras línguas que contam com milhões de falantes. Além do mais, o francês no começo do século XX e o inglês pós Segunda Guerra Mundial tiveram importantes elementos difusores do chamado soft power. Traduzido como “poder brando”, o termo designa influências importantes exercidas por países, mas sem o emprego da força. No caso da França, a Belle Époque foi um grande difusor do seu idioma, assim como vastas obras culturais, enquanto os norte-americanos têm Hollywood, o que já é mais do que grande parte dos países. No caso chinês, mesmo quando a nação passar a ser a maior economia do mundo é complicado vislumbrar elementos que remetam ao complicado mandarim pelo resto do globo. Afinal de contas, mesmo os filmes de Jackie Chan eram feitos em Hollywood.

Mas em outras áreas, o poder chinês já chegou. A decisão do Panamá nesta semana de se aliar à China, em detrimento de sua aliança tradicional com Taiwan, foi um destes exemplos. Os panamenhos passaram a aceitar a política da Uma China, reconhecendo o governo de Taipei como parte do território chinês. Taiwan reclamou, e disse que os latinos estavam abandonando uma tradicional aliança por conta do poder de influência da segunda maior economia do mundo. E provavelmente estavam mesmo, já que a China corresponde hoje por um quinto dos produtos que passam pelo Canal do país, grande fonte de ingressos para este. E o que Taiwan pode fazer quanto a isso? Esta foi uma aplicação clara e manifesta do hard power.

Outros planos bem mais ousados expressam as ambições chinesas, e o maior deles é a chamada Nova Rota da Seda. O plano prevê investimentos de infraestrutura estimados na ordem de até US$ 1,3 trilhão de dólares, quase o PIB brasileiro, em 65 países. A intenção é interligar Europa, África, Oriente Médio e Ásia, de acordo com os interesses da China, que passaria a não depender, por exemplo, de rivais regionais como a Índia e a Rússia para escoar parte de sua produção. A ideia sofre com críticas de ambientalistas e de comunidades locais, que temem que o projeto, sem precedentes, não tome as devidas precauções.

Em contrapartida às críticas ambientais com suas investidas no exterior, a China toma vanguarda no desenvolvimento de energias limpas, reforçada após o anúncio de Donald Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris. A Usina Hidrelétrica de Três Gargantas, a maior do mundo, é um dos empreendimentos que demonstram o potencial chinês para investir em fontes renováveis. O país tem a maior matriz hidrelétrica do mundo e é líder na produção de painéis solares.

Minhas referências nacionais e internacionais em tecnologia, Ronaldo Lemos e Thomas Friedman respectivamente, fizeram questão de em suas colunas na última semana de destacar a evolução chinesa nas formas de pagamento. Ambos relataram que, nas principais cidades do país, já é difícil encontrar transações que aceitam dinheiro, tendo este sido substituído por QR codes, que já descontam o valor diretamente na conta do cliente. O futuro já chegou à terra de Confúcio.

Em 2001, logo ao entrar na OMC, a China era responsável por 50% do PIB dos BRIC. Hoje este valor já corresponde a dois terços. A nação foi a única a cumprir as metas de crescimento esperadas dos quatro países em 2003, quando começou o auge das expectativas com os gigantes em desenvolvimento. Brasil e Rússia tiveram importantes recessões, em grande parte derivada da queda do preço das commodities. A Índia conseguiu diversificar sua economia e chegou a crescer mais que a China em 2016, mas fica aquém das reformas prometidas com a ascensão de Narendra Modi ao poder, em 2014.

A China evitou entrar intensamente em regiões de disputas complexas e tradicionais por influência, como o Oriente Médio, e estreitou seus laços com países diversos, perpassando do Sudão à Nicarágua. Membra permanente do Conselho de Segurança da ONU, portanto, com poder de veto, a postura pouco combativa dos chineses lhe deu a vantagem de não ter de se engajar firmemente em conflitos espinhosos como Síria e a Ucrânia, e ainda assim tem papel decisivo sobre estes, contando com uma importante margem para negociar de acordo com seus interesses.

No primeiro Fórum Econômico de Davos após a eleição de Trump, o presidente chinês, Xi Jinping, apresentou seu país como um defensor da globalização e do livre comércio, sinalizando a intenção de expandir sua influência. Um dos históricos conflitos entre China e EUA é pela prevalência no Pacífico, em especial no que Pequim considera como Mar da China Meridional. No ano passado, a Corte Internacional de Haia reconheceu um pedaço da região, pela qual passa uma parcela cada vez maior do PIB global, como parte das Filipinas, aliadas dos EUA de longa data.

Duterte, presidente eleito das Filipinas no ano passado, passou a limpo esta relação. Como uma das principais plataformas de campanha, o filipino adotou um discurso contra as drogas, que previa a execução de usuários e traficantes. Nos primeiros meses de mandato, o número de mortos chegou a 7 mil, direta e indiretamente, chamando a atenção de grupos de direitos humanos. As críticas de Obama levaram Duterte a xingar o presidente norte-americano, deixando a relação entre os dois países em um dos piores patamares históricos. A China observou silenciosa a situação, e recebeu de muito bom grado quando o filipino anunciou uma guinada na cooperação com Pequim, em um afastamento de Washington.

Deixar direitos humanos de lado em detrimento da influência geopolítica não é exclusividade da relação Pequim-Manila. No Sudão, a China tem como grande aliado o ditador Omar Al-Bashir, condenado por crimes contra a humanidade e frequentemente acusado de genocídio, mas responsável por vastos campos de petróleo. O futuro chegou. Mas como em Black Mirror, não precisa ser sinônimo de comemoração.
                                                       Autor desconhecido, mas valor inalterado 

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Trump: Um fósforo na mão e pouca ideia na cabeça

“O fim estava chegando. Se Hillary tivesse sido eleita, teria acontecido em um período mais longo, de forma mais suave. Mas com a chegada de Trump, o fim da pax americana é agora. Lamento dizer isso, mas também facilita o surgimento de guerras.”, afirmou o presidente da agência de classificação de risco político Eurasia, Ian Bremmer, no programa Milênio da Globo News no começo deste ano.

Em pouco mais de quatro meses de mandato, Trump colocou os EUA em risco de um confronto direto com a Rússia na Síria. Aumentou as tensões com a Coreia do Norte, e pagou para ver até onde o regime seria capaz de ir. Criou alarme na China com sua política agressiva ao país, instando o temor de um conflito no Mar da China Meridional. Tensões que já existiam, mas que foram aumentadas exponencialmente pela postura do presidente.

Outra tensão hoje é a chamada Guerra Fria do Oriente Médio. No dito equilíbrio vestfáliano, base para as formações dos atuais estados nacionais, a disputa por influência por potências crescentes na região em determinado momento acabaria por desencadear em confrontos. Irã e Arábia Saudita, em um jogo de soma zero, no qual um dos dois necessariamente deve perder espaço para o outro ganhar, vêm travando uma série de conflitos por procuração na região. No meio das duas grandes potencias, o Catar vinha cada vez aumentando sua influência, em um meio termo entre ambos os lados.

O Catar é aliado do Irã, mas sedia a principal base área dos EUA no Oriente Médio. O país faz parte do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), que reúne os principais aliados árabes dos norte-americanos, enquanto apoia o Hamas, grupo considerado terrorista pelos EUA. O Catar abrigou o líder do grupo Khaled Meshal, enquanto o Irã havia se afastado dos islamistas por conta destes terem traído o governo de Bashar Al-Assad, apoiando milícias sunitas na luta contra o ditador, grande aliado de Teerã. O Catar, assim como os países do CCG também apoiou milícias para a derrubada de Assad. É possível traçar dois eixos, sobretudo liderados por Irã e Arábia Saudita, enquanto o Catar fica no meio do caminho. Uma hora não iria acabar bem.

                                                Fácil de entender não é, mas vai uma ajuda

Enquanto se equilibrava entre as principais potências, os catarianos expandiam sua influência. De universidades a companhias áreas, o Catar passou a ser uma marca global. No Ocidente a história culminou com a escolha da nação para ser sede da Copa do Mundo de 2022, a primeira em um país de maioria muçulmana. Já entre os árabes, a força dos catarianos é evidenciada pela rede de comunicação Al Jazeera. O grupo é muito influente, tendo sido um dos catalisadores dos protestos durante a Primavera Árabe.

Em uma política como a de Obama, era possível que os impasses durassem até mesmo décadas antes de algum país tomar uma decisão mais radical. Afinal de contas, uma escalada das tensões pode causar danos, sobretudo econômicos, a todos os envolvidos, o que já ficou latente com a queda nas bolsas de países árabes nesta segunda. Obama tentou uma aproximação com o Irã, obtendo como grande êxito o Acordo Nuclear. A postura não agradou os sauditas. Em contrapartida o democrata não escolheu um lado em detrimento do outro, e, com pragmatismo, seguiu obrigações históricas da relação entre sauditas e norte-americanos. Obama não questionou de maneira efusiva as violações de direitos humanos no país, e recuou ao tentar cobrar os sauditas por conta da relação destes com o 11 de setembro, ataque no qual 15 dos 19 terroristas tinham origem no país.

Já Trump logo em sua primeira viagem traçou que o Irã seria seu inimigo no Oriente Médio, nação da qual já havia tentado barrar seus cidadãos de entrarem nos EUA por duas vezes. Acusou o país de patrocinar o terrorismo, e reforçou os laços com os sauditas, que haviam se desgastado com Obama. Acertou a venda de US$ 110 bilhões em armamentos que devem ter como destino conflitos na região, ou o aumento do poder de dissuasão saudita. A outro aliado, o ditador do Egito, Abdel Fatah Al-Sisi, reafirmou apoio.

Sisi tem como grande inimigo interno a Irmandade Muçulmana, a quem considera terrorista. A entidade islamista tem seguidores em praticamente toda a população muçulmana sunita. A Irmandade foi a única agremiação a vencer uma eleição democrática na história do Egito moderno, com Mohamed Morsi em 2012. Morsi foi condenado à morte, assim como outros líderes relevantes do grupo, por conta das acusações de terrorismo, apesar de não ter sua sentença cumprida. Por conta da boa relação com Sisi, Trump já demonstrou interesse em colocar a Irmandade na lista de grupos terroristas dos EUA, ao lado da Al Qaeda e do Daesh. Irã e Catar são dois grandes aliados da Irmandade Muçulmana.

A postura de Trump é a principal justificativa para os cortes das relações por cinco países árabes com o Catar nesta segunda-feira. A pequena nação, que depende em cerca de 90% de seus alimentos de importações, destas 40% oriundas da Arábia Saudita, sua única fronteira terrestre, ficou encurralada com a decisão de Bahrein, Egito, Iêmen, Emirados Árabes Unidos e dos próprios sauditas. Estimulados pelo tom belicista do presidente dos EUA, estas nações tomam uma atitude que coloca ainda mais combustível no já inflamado Oriente Médio.

As consequências de mais tensões nesta região são imprevisíveis. É improvável que o Catar entre em confronto militar direto com algum dos países que cortaram suas relações com este. Mas não é possível afirmar que o Irã, agora ameaçado, não tentará atacar em outros terrenos. Além de Síria, Iraque e Iêmen, conflitos já deflagrados em grande parte pelo envolvimento iraniano, outro país pode ser alvo de importantes tensões. O Bahrein, que vem enfrentando protestos desde a Primavera Árabe da maioria xiita, pode ter a ditadura sunita dos Al-Khalifa contestada a qualquer momento. Trump não tem culpa pelos barris de pólvora mundo a fora. Mas indica não ter medo de acender nenhum fósforo.
                                                         Em termos gerais, divide-se assim

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Sobre Bolsonaro: sem "mito", nem "minions"

Sim, esta é uma era de notícias falsas. Mas não é a única. O que é inédito em nosso tempo é a forma na qual clichês ganharam força para se propagar e explicar fenômenos extremamente complexos. O grande caso é a eleição de Trump. Thomas Friedman, colunista do New York Times, provou isto com “A Road Trip Through Rising and Rusting America”. É um relato no qual grande parte dos chavões que serviram para explicar a eleição do novo presidente dos EUA foi desmitificada. A ideia de que o país é hoje separado entre as costas liberais e desenvolvidas e o centro atrasado é reducionista. Uma das conclusões da viagem.

As pesquisas erraram mais na França do que nos EUA. Clinton venceu no voto popular, o que era previsto pelos institutos. A vitória de Macron por 66% foi seis pontos acima do previsto, portanto, acima da margem de erro. Mas o sistema norte-americano prevê a eleição por colégio eleitoral, ou seja, 50 pesquisas paralelas deveriam ser realizadas. E a imensa maioria acertou dentro da margem de erro, com exceção de Michigan, que tinha problemas nas amostras, o que foi alertado o tempo todo pelo excelente Guga Chacra. Variando de acordo com a base, dá para se dizer que menos de 2% das pesquisas dos EUA erraram. Valor irrisório perto do alarde.

E aí, chegamos às autocríticas da mídia. “A exposição de Trump foi desmedida”, “não ouvimos os eleitores do interior”, “fizemos falsa equivalência com os escândalos de Trump e Clinton”. Críticas válidas, mas que não servem para explicar a eleição como um todo. Enquanto isso, o relato de um militante de Bolsonaro à BBC Brasil pode fazer muito bem este papel: “Os jornalistas pensam diferente da massa brasileira. Eles publicam essas posições achando que o pessoal vai ficar indignado, mas a grande massa pensa que ‘bandido bom é bandido morto’ e é isso que Jair prega”.

Claro que a afirmação é reducionista e não abarca as teorias aprendidas nas faculdades de Comunicação, sendo uma afronta à “Teoria da Agulha Hipodérmica”, Adorno, Horkheimer, Habermas e tantos outros que nos mostram que a mídia é indissociável da opinião popular. Mas se a eleição de Trump deveria nos ensinar muitas lições, e deveria por conta das semelhanças com o fenômeno Bolsonaro, uma é a de que devemos escutar mais o público.  E neste caso, o autor da frase tem muita razão.

Tenho grandes amigos que gostam de Bolsonaro. A despeito do atual manual brasileiro de boa convivência, que prevê excluir a discussão política, gosto de ouvir suas motivações. E vejo que assim como os eleitores de Trump, há críticas pertinentes em suas ideias.

Existe uma posição ideológica predominante nas faculdades, sobretudo das áreas de humanas. Enquanto grandes educadores explicam com eloquência teorias progressistas logo que os estudantes saem da escola, ainda com as visões maniqueístas de mundo comuns à idade, quem não concorda com as posições dominantes se vê órfão. É muito raro que um grande pensador conservador seja apresentado a estes alunos na faculdade. Há um vácuo que faz com que ideólogos rasos ou extremistas ganhem espaço junto a estes. Noto que alguns são sim competentes, mas tendem a adotar discursos mais radicais para ganhar espaço. Outros são simplesmente fracos.

Neste vácuo existe um incômodo com as batalhas por direitos civis. A imensa maioria destas é válida, e merece apoio. Mas no sentido maniqueísta e reducionista de uma sociedade que opina com base em manchetes, o extremismo encontra terreno fértil. Daí a surgirem casos surreais como a “polêmica” sobre apropriação cultural. A resposta dos incomodados, em um país ainda muito conservador, tende a ser extrema. E dalhe #Bolsomito2018 para lá.

O Brasil lidera o ranking global de homicídios, com quase 60 mil assassinatos ao ano. Destes, menos de 10% terminam com o responsável preso. Quando este é o destino, um sistema carcerário criticado internacionalmente não reabilita o criminoso, que volta às ruas para se deparar com uma reincidência de aproximadamente 70%. Este é o cenário dos que não podem pagar caros advogados, ou não possuem o foro privilegiado, que abarca entre 20 e 50 mil de brasileiros, variando de acordo com a fonte, mas sem paralelos em qualquer outra parte do mundo, independente do valor. Um sistema penal que não inibe que crimes sejam cometidos e não reabilita perpetradores. A sensação de injustiça é generalizada, surgindo daí o terreno fértil para o apelo de “lei e ordem”.

Em uma sociedade que maltrata a palavra, e os termos perdem sentido, adjetivos como “fascista”, “opressor” e a corrente de “ismos”, muita das vezes incongruentes, acabam fazendo com que estas graves acusações se tornem vazias, e até mesmo apropriadas pelos acusados. O paralelo entre Bolsonaro e Trump é a apropriação do termo “opressor” por parte dos apoiadores, em uma semelhança com os “deploráveis” trumpistas, palavra utilizada pela candidata Clinton para designar seus opositores, em seu pior momento na campanha.

Portanto, quando o melhor jornalista possível, ou o veículo mais respeitável faz criticas a Bolsonaro, o apoiador faz uma falsa equivalência de que a opinião expressa ali tem o mesmo valor de um dos opositores mais rasteiros. Neste cenário surgem as expressões de que New York Times, CNN, Folha de S. Paulo, El País Brasil, todos fazem parte de um conglomerado liberal-esquerdista da mídia que hoje não tem mais valor. O caso é muito semelhante nos EUA e no Brasil.

Então, como desaconselhar o voto em alguém que representa um perigo, sem citá-lo? Esta é a grande questão. E aí, cabe sair do lugar comum. Ao invés de classificar uma série de “ismos” para um candidato, que, de fato, não tem acusações importantes de corrupção ao seu cargo em um momento em que descalabros sobre a classe política vêm em velocidade incompreensível para o brasileiro comum, convide à reflexão.

Nenhuma reforma política mudará o sistema no Brasil que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão” antes de 2018. Por meio deste, o presidente tem o poder, mas tem de exercer o mandato oferecendo condições favoráveis a uma base aliada, correndo o risco de sofrer um processo de impeachment caso perca esta articulação. Bolsonaro pertence a um partido pequeno, o PSC, e por um muito provavelmente concorrerá às eleições. A votação da legenda deve ser baixa para o Congresso, o que levaria um presidente a ter de fazer uma coalizão com uma série de partidos. Isso indica que para governar, Bolsonaro terá de se aliar a um dos grandes, quem sabe até dois, entre PMDB, PSDB e PT.

Diferente de outros presidentes que não tinham propostas tão específicas, a situação de Bolsonaro é especial. Assim como Trump, caso assuma, teria de mostrar serviço, já que não pode deixar a sensação de ser como os outros, o que iria enfurecer seu eleitorado. Sem pragmatismo e com votações específicas para serem levadas à casa, o custo pago seria alto pelo minoritário presidente. A chance das barganhas serem ainda maiores que em mandatos anteriores é grande, e lá se vai o trabalho da Lava Jato.

O Congresso é só um dos desafios com os quais o futuro presidente do Brasil terá de lidar. O eleito irá assumir um país após sua mais grave crise econômica da história recente, e não podemos nos dar ao luxo de votar em uma eleição com base em ofensas rasteiras como as que vemos hoje na internet. Precisa-se, e talvez como nunca antes, discutir os grandes aspectos para colocar a nação com quase 14 milhões de desempregados nos eixos. Como mudar a carga tributária com desoneração do consumo? Um Banco Central independente pode valer à pena? Como incentivar a inovação no país, facilitando patentes privadas ou fomentando as universidades públicas? Como superar o gargalo da infraestrutura? Este é o tipo de questão que deve ser respondida, não se um congressista está certo ao cuspir em outro, já que foi ofendido.

A eleição de Bolsonaro é um cenário provável? Acredito que não. O sistema eleitoral americano é único, e a exemplo da França, nosso pleito tende a rechaçar candidatos mais extremos. Nota-se que não disse impossível. Mas uma votação expressiva de Bolsonaro é um grande retrocesso. O apoio que o pré-candidato deu a um torturador da ditadura é terrível. Expressões como as suas referentes aos quilombolas são muito negativas. A lista é enorme e há muitos bem mais familiarizados com ela para dissertá-la. Mas uma votação expressiva mostraria que parte da sociedade não está bem representada, e tem anseios reais, não podendo ser tachada com “deploráveis”. O filme se repete, mas dessa vez temos como apertar “pause”.

Até mesmo encontrar uma foto que não represente polarização é complicado (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)

sábado, 6 de maio de 2017

Judeus e muçulmanos contra inimigo em comum: a Frente Nacional

O relato “Why My Father Votes for Le Pen” publicado no New York Times nesta semana traz um excelente retrato sobre aqueles que sucumbem a fenômenos como o “Brexit”, Trump e Marine Le Pen. Antes de quaisquer rotulações pejorativas há de se ressaltar que grande parte destes eleitores compõe os mais afetados, ou mesmo excluídos, pelas mudanças ocorridas nos últimos anos. Portanto, quando uma candidata do sistema responsável por estas mudanças como Hillary Clinton chama estes de “deploráveis” há uma prova explicita de que o governo não está funcionando de maneira igual para todos.

Diferentemente do “Brexit” e de Trump, a Frente Nacional acumula apoio há muitos anos, não se tratando de um fenômeno efêmero. O pai de Marine Le Pen e fundador do partido, Jean-Marie Le Pen, participou das eleições presidenciais entre 1982 a 2012, quando sua filha disputou o pleito. Em 2002 o candidato extremista chegou inclusive ao segundo turno. No caso norte-americano, Trump apareceu como um ponto fora da curva no partido republicano, conhecido pela sigla G.O.P, para Grand Old Party, agremiação que ostenta com orgulho ser “o partido de Abraham Lincoln”. Por sua vez na França, Marine Le Pen busca amenizar o histórico de seu partido, o que a levou a afastar até mesmo seu pai da Frente Nacional em 2015.

A postura de Marine Le Pen é eleitoralmente acertada. A rejeição a seu pai na França é quase unânime, prova disso são os 82% dos votos para seu opositor Jacques Chirac no segundo turno das eleições de 2002. Jean-Marie Le Pen é um antissemita explícito, chegando a declarar que o Holocausto, a maior atrocidade de que se tem registro na atividade humana, teria sido um “detalhe” na História. O político é visto como próximo à França de Vichy, regime chamado de colaboracionista pelos franceses, que governou o país em acordo com os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, inclusive entregando dezenas de milhares de judeus aos alemães, e que seriam mortos no “detalhe” de Jean-Marie Le Pen.

Na tentativa de amenizar a visão sobre a Frente Nacional, nos últimos meses Marine Le Pen afastou do partido uma série de integrantes que fizeram afirmações antissemitas, ou que tivessem ligação com grupos neonazistas. Mas para muitos esta não passava de uma maquiagem com fins eleitorais e a candidata acabaria em algum momento externando as raízes do partido. E este momento ocorreu pouco antes do primeiro turno, quando Le Pen negou as atribuições colaboracionistas do França de Vichy, que terminaram com dezenas de milhares de judeus em Auschwitz. A declaração causou pânico na comunidade judaica, e muitos já planejam a migração para Israel em caso de vitória da Frente Nacional.

Outra comunidade aflita com a possibilidade de vitória de Le Pen é a muçulmana. A candidata comparou muçulmanos rezando nas ruas francesas com a ocupação nazista. Uma das principais plataformas políticas da Frente Nacional é contra a imigração, e como grande parte dos imigrantes na França têm origem em países de maioria muçulmana, muitos temem os reflexos que um governo de Le Pen pode causar. Outro ponto importante para sua campanha é o combate ao terrorismo “islâmico” e faz alusões a cercear direitos dos muçulmanos para tal.

Enorme parcela da comunidade muçulmana francesa tem origem argelina, antiga colônia da França que alçou independência em 1962 após um sangrento conflito. Entre os franceses, assim como em outras antigas metrópoles, há um sentimento de revisionismo pelos abusos cometidos contra os locais durante o período colonial. A retratação junto aos argelinos é um ponto da campanha de Macron extremamente rechaçado por Le Pen. Jean-Marie Le Pen combateu na Guerra de Independência da Argélia, na qual é acusado de tortura.

Por mais que sejam válidas as argumentações de que indivíduos devem ser separados do legado de seus parentes, o caso da Frente Nacional é único. A legenda foi criada por Jean-Marie Le Pen com um traço do que há de pior no antissemitismo europeu, que tem origens muito anteriores ao nazismo, servindo como base para este. Jean-Marie conquistou apoio de parte da população mais excluída dos franceses culpando judeus e imigrantes por conta de seus problemas. Sua declaração de que o Ebola poderia conter os problemas de imigração é uma das mais repugnantes de um líder público nos últimos anos. E por sua vez Marine, a versão soft da xenofobia, apresenta uma Frente Nacional como um partido diferente do fundado por seu pai, no entanto baseia uma campanha eleitoral no medo dos franceses por meio da islamofobia e em culpar a imigração pelos problemas de seu país. Macron não é essa Coca-Cola toda. Mas a Frente Nacional é indefensável.

Marine e seu pai, que a mesma expulsou do seu próprio partido. Imagina o almoço em família (FOTO: Reuters)