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quarta-feira, 7 de junho de 2017

Trump: Um fósforo na mão e pouca ideia na cabeça

“O fim estava chegando. Se Hillary tivesse sido eleita, teria acontecido em um período mais longo, de forma mais suave. Mas com a chegada de Trump, o fim da pax americana é agora. Lamento dizer isso, mas também facilita o surgimento de guerras.”, afirmou o presidente da agência de classificação de risco político Eurasia, Ian Bremmer, no programa Milênio da Globo News no começo deste ano.

Em pouco mais de quatro meses de mandato, Trump colocou os EUA em risco de um confronto direto com a Rússia na Síria. Aumentou as tensões com a Coreia do Norte, e pagou para ver até onde o regime seria capaz de ir. Criou alarme na China com sua política agressiva ao país, instando o temor de um conflito no Mar da China Meridional. Tensões que já existiam, mas que foram aumentadas exponencialmente pela postura do presidente.

Outra tensão hoje é a chamada Guerra Fria do Oriente Médio. No dito equilíbrio vestfáliano, base para as formações dos atuais estados nacionais, a disputa por influência por potências crescentes na região em determinado momento acabaria por desencadear em confrontos. Irã e Arábia Saudita, em um jogo de soma zero, no qual um dos dois necessariamente deve perder espaço para o outro ganhar, vêm travando uma série de conflitos por procuração na região. No meio das duas grandes potencias, o Catar vinha cada vez aumentando sua influência, em um meio termo entre ambos os lados.

O Catar é aliado do Irã, mas sedia a principal base área dos EUA no Oriente Médio. O país faz parte do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), que reúne os principais aliados árabes dos norte-americanos, enquanto apoia o Hamas, grupo considerado terrorista pelos EUA. O Catar abrigou o líder do grupo Khaled Meshal, enquanto o Irã havia se afastado dos islamistas por conta destes terem traído o governo de Bashar Al-Assad, apoiando milícias sunitas na luta contra o ditador, grande aliado de Teerã. O Catar, assim como os países do CCG também apoiou milícias para a derrubada de Assad. É possível traçar dois eixos, sobretudo liderados por Irã e Arábia Saudita, enquanto o Catar fica no meio do caminho. Uma hora não iria acabar bem.

                                                Fácil de entender não é, mas vai uma ajuda

Enquanto se equilibrava entre as principais potências, os catarianos expandiam sua influência. De universidades a companhias áreas, o Catar passou a ser uma marca global. No Ocidente a história culminou com a escolha da nação para ser sede da Copa do Mundo de 2022, a primeira em um país de maioria muçulmana. Já entre os árabes, a força dos catarianos é evidenciada pela rede de comunicação Al Jazeera. O grupo é muito influente, tendo sido um dos catalisadores dos protestos durante a Primavera Árabe.

Em uma política como a de Obama, era possível que os impasses durassem até mesmo décadas antes de algum país tomar uma decisão mais radical. Afinal de contas, uma escalada das tensões pode causar danos, sobretudo econômicos, a todos os envolvidos, o que já ficou latente com a queda nas bolsas de países árabes nesta segunda. Obama tentou uma aproximação com o Irã, obtendo como grande êxito o Acordo Nuclear. A postura não agradou os sauditas. Em contrapartida o democrata não escolheu um lado em detrimento do outro, e, com pragmatismo, seguiu obrigações históricas da relação entre sauditas e norte-americanos. Obama não questionou de maneira efusiva as violações de direitos humanos no país, e recuou ao tentar cobrar os sauditas por conta da relação destes com o 11 de setembro, ataque no qual 15 dos 19 terroristas tinham origem no país.

Já Trump logo em sua primeira viagem traçou que o Irã seria seu inimigo no Oriente Médio, nação da qual já havia tentado barrar seus cidadãos de entrarem nos EUA por duas vezes. Acusou o país de patrocinar o terrorismo, e reforçou os laços com os sauditas, que haviam se desgastado com Obama. Acertou a venda de US$ 110 bilhões em armamentos que devem ter como destino conflitos na região, ou o aumento do poder de dissuasão saudita. A outro aliado, o ditador do Egito, Abdel Fatah Al-Sisi, reafirmou apoio.

Sisi tem como grande inimigo interno a Irmandade Muçulmana, a quem considera terrorista. A entidade islamista tem seguidores em praticamente toda a população muçulmana sunita. A Irmandade foi a única agremiação a vencer uma eleição democrática na história do Egito moderno, com Mohamed Morsi em 2012. Morsi foi condenado à morte, assim como outros líderes relevantes do grupo, por conta das acusações de terrorismo, apesar de não ter sua sentença cumprida. Por conta da boa relação com Sisi, Trump já demonstrou interesse em colocar a Irmandade na lista de grupos terroristas dos EUA, ao lado da Al Qaeda e do Daesh. Irã e Catar são dois grandes aliados da Irmandade Muçulmana.

A postura de Trump é a principal justificativa para os cortes das relações por cinco países árabes com o Catar nesta segunda-feira. A pequena nação, que depende em cerca de 90% de seus alimentos de importações, destas 40% oriundas da Arábia Saudita, sua única fronteira terrestre, ficou encurralada com a decisão de Bahrein, Egito, Iêmen, Emirados Árabes Unidos e dos próprios sauditas. Estimulados pelo tom belicista do presidente dos EUA, estas nações tomam uma atitude que coloca ainda mais combustível no já inflamado Oriente Médio.

As consequências de mais tensões nesta região são imprevisíveis. É improvável que o Catar entre em confronto militar direto com algum dos países que cortaram suas relações com este. Mas não é possível afirmar que o Irã, agora ameaçado, não tentará atacar em outros terrenos. Além de Síria, Iraque e Iêmen, conflitos já deflagrados em grande parte pelo envolvimento iraniano, outro país pode ser alvo de importantes tensões. O Bahrein, que vem enfrentando protestos desde a Primavera Árabe da maioria xiita, pode ter a ditadura sunita dos Al-Khalifa contestada a qualquer momento. Trump não tem culpa pelos barris de pólvora mundo a fora. Mas indica não ter medo de acender nenhum fósforo.
                                                         Em termos gerais, divide-se assim

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Sobre Bolsonaro: sem "mito", nem "minions"

Sim, esta é uma era de notícias falsas. Mas não é a única. O que é inédito em nosso tempo é a forma na qual clichês ganharam força para se propagar e explicar fenômenos extremamente complexos. O grande caso é a eleição de Trump. Thomas Friedman, colunista do New York Times, provou isto com “A Road Trip Through Rising and Rusting America”. É um relato no qual grande parte dos chavões que serviram para explicar a eleição do novo presidente dos EUA foi desmitificada. A ideia de que o país é hoje separado entre as costas liberais e desenvolvidas e o centro atrasado é reducionista. Uma das conclusões da viagem.

As pesquisas erraram mais na França do que nos EUA. Clinton venceu no voto popular, o que era previsto pelos institutos. A vitória de Macron por 66% foi seis pontos acima do previsto, portanto, acima da margem de erro. Mas o sistema norte-americano prevê a eleição por colégio eleitoral, ou seja, 50 pesquisas paralelas deveriam ser realizadas. E a imensa maioria acertou dentro da margem de erro, com exceção de Michigan, que tinha problemas nas amostras, o que foi alertado o tempo todo pelo excelente Guga Chacra. Variando de acordo com a base, dá para se dizer que menos de 2% das pesquisas dos EUA erraram. Valor irrisório perto do alarde.

E aí, chegamos às autocríticas da mídia. “A exposição de Trump foi desmedida”, “não ouvimos os eleitores do interior”, “fizemos falsa equivalência com os escândalos de Trump e Clinton”. Críticas válidas, mas que não servem para explicar a eleição como um todo. Enquanto isso, o relato de um militante de Bolsonaro à BBC Brasil pode fazer muito bem este papel: “Os jornalistas pensam diferente da massa brasileira. Eles publicam essas posições achando que o pessoal vai ficar indignado, mas a grande massa pensa que ‘bandido bom é bandido morto’ e é isso que Jair prega”.

Claro que a afirmação é reducionista e não abarca as teorias aprendidas nas faculdades de Comunicação, sendo uma afronta à “Teoria da Agulha Hipodérmica”, Adorno, Horkheimer, Habermas e tantos outros que nos mostram que a mídia é indissociável da opinião popular. Mas se a eleição de Trump deveria nos ensinar muitas lições, e deveria por conta das semelhanças com o fenômeno Bolsonaro, uma é a de que devemos escutar mais o público.  E neste caso, o autor da frase tem muita razão.

Tenho grandes amigos que gostam de Bolsonaro. A despeito do atual manual brasileiro de boa convivência, que prevê excluir a discussão política, gosto de ouvir suas motivações. E vejo que assim como os eleitores de Trump, há críticas pertinentes em suas ideias.

Existe uma posição ideológica predominante nas faculdades, sobretudo das áreas de humanas. Enquanto grandes educadores explicam com eloquência teorias progressistas logo que os estudantes saem da escola, ainda com as visões maniqueístas de mundo comuns à idade, quem não concorda com as posições dominantes se vê órfão. É muito raro que um grande pensador conservador seja apresentado a estes alunos na faculdade. Há um vácuo que faz com que ideólogos rasos ou extremistas ganhem espaço junto a estes. Noto que alguns são sim competentes, mas tendem a adotar discursos mais radicais para ganhar espaço. Outros são simplesmente fracos.

Neste vácuo existe um incômodo com as batalhas por direitos civis. A imensa maioria destas é válida, e merece apoio. Mas no sentido maniqueísta e reducionista de uma sociedade que opina com base em manchetes, o extremismo encontra terreno fértil. Daí a surgirem casos surreais como a “polêmica” sobre apropriação cultural. A resposta dos incomodados, em um país ainda muito conservador, tende a ser extrema. E dalhe #Bolsomito2018 para lá.

O Brasil lidera o ranking global de homicídios, com quase 60 mil assassinatos ao ano. Destes, menos de 10% terminam com o responsável preso. Quando este é o destino, um sistema carcerário criticado internacionalmente não reabilita o criminoso, que volta às ruas para se deparar com uma reincidência de aproximadamente 70%. Este é o cenário dos que não podem pagar caros advogados, ou não possuem o foro privilegiado, que abarca entre 20 e 50 mil de brasileiros, variando de acordo com a fonte, mas sem paralelos em qualquer outra parte do mundo, independente do valor. Um sistema penal que não inibe que crimes sejam cometidos e não reabilita perpetradores. A sensação de injustiça é generalizada, surgindo daí o terreno fértil para o apelo de “lei e ordem”.

Em uma sociedade que maltrata a palavra, e os termos perdem sentido, adjetivos como “fascista”, “opressor” e a corrente de “ismos”, muita das vezes incongruentes, acabam fazendo com que estas graves acusações se tornem vazias, e até mesmo apropriadas pelos acusados. O paralelo entre Bolsonaro e Trump é a apropriação do termo “opressor” por parte dos apoiadores, em uma semelhança com os “deploráveis” trumpistas, palavra utilizada pela candidata Clinton para designar seus opositores, em seu pior momento na campanha.

Portanto, quando o melhor jornalista possível, ou o veículo mais respeitável faz criticas a Bolsonaro, o apoiador faz uma falsa equivalência de que a opinião expressa ali tem o mesmo valor de um dos opositores mais rasteiros. Neste cenário surgem as expressões de que New York Times, CNN, Folha de S. Paulo, El País Brasil, todos fazem parte de um conglomerado liberal-esquerdista da mídia que hoje não tem mais valor. O caso é muito semelhante nos EUA e no Brasil.

Então, como desaconselhar o voto em alguém que representa um perigo, sem citá-lo? Esta é a grande questão. E aí, cabe sair do lugar comum. Ao invés de classificar uma série de “ismos” para um candidato, que, de fato, não tem acusações importantes de corrupção ao seu cargo em um momento em que descalabros sobre a classe política vêm em velocidade incompreensível para o brasileiro comum, convide à reflexão.

Nenhuma reforma política mudará o sistema no Brasil que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão” antes de 2018. Por meio deste, o presidente tem o poder, mas tem de exercer o mandato oferecendo condições favoráveis a uma base aliada, correndo o risco de sofrer um processo de impeachment caso perca esta articulação. Bolsonaro pertence a um partido pequeno, o PSC, e por um muito provavelmente concorrerá às eleições. A votação da legenda deve ser baixa para o Congresso, o que levaria um presidente a ter de fazer uma coalizão com uma série de partidos. Isso indica que para governar, Bolsonaro terá de se aliar a um dos grandes, quem sabe até dois, entre PMDB, PSDB e PT.

Diferente de outros presidentes que não tinham propostas tão específicas, a situação de Bolsonaro é especial. Assim como Trump, caso assuma, teria de mostrar serviço, já que não pode deixar a sensação de ser como os outros, o que iria enfurecer seu eleitorado. Sem pragmatismo e com votações específicas para serem levadas à casa, o custo pago seria alto pelo minoritário presidente. A chance das barganhas serem ainda maiores que em mandatos anteriores é grande, e lá se vai o trabalho da Lava Jato.

O Congresso é só um dos desafios com os quais o futuro presidente do Brasil terá de lidar. O eleito irá assumir um país após sua mais grave crise econômica da história recente, e não podemos nos dar ao luxo de votar em uma eleição com base em ofensas rasteiras como as que vemos hoje na internet. Precisa-se, e talvez como nunca antes, discutir os grandes aspectos para colocar a nação com quase 14 milhões de desempregados nos eixos. Como mudar a carga tributária com desoneração do consumo? Um Banco Central independente pode valer à pena? Como incentivar a inovação no país, facilitando patentes privadas ou fomentando as universidades públicas? Como superar o gargalo da infraestrutura? Este é o tipo de questão que deve ser respondida, não se um congressista está certo ao cuspir em outro, já que foi ofendido.

A eleição de Bolsonaro é um cenário provável? Acredito que não. O sistema eleitoral americano é único, e a exemplo da França, nosso pleito tende a rechaçar candidatos mais extremos. Nota-se que não disse impossível. Mas uma votação expressiva de Bolsonaro é um grande retrocesso. O apoio que o pré-candidato deu a um torturador da ditadura é terrível. Expressões como as suas referentes aos quilombolas são muito negativas. A lista é enorme e há muitos bem mais familiarizados com ela para dissertá-la. Mas uma votação expressiva mostraria que parte da sociedade não está bem representada, e tem anseios reais, não podendo ser tachada com “deploráveis”. O filme se repete, mas dessa vez temos como apertar “pause”.

Até mesmo encontrar uma foto que não represente polarização é complicado (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O novo-velho best-seller Orwell e o mundo de hoje

Nesta semana foi notícia que o clássico “1984”, de George Orwell, voltou a figurar na lista de livros mais vendidos, grande parte por conta das relações possíveis de se estabelecer da obra com o começo do governo Trump. A mais latente foi feita após a declaração de uma porta-voz de que as mentiras disparadas, ou a negação das verdades, seriam “fatos alternativos”. Em “1984”, dentro da chamada novilíngua, uma das atribuições do Ministério da Verdade era justamente a fabricação de novos fatos, o que é representado na famosa frase “guerra é paz”.

Quando escrito, pouco após a Segunda Guerra Mundial, o livro foi visto como um ataque aos regimes totalitários, sobretudo ao stalinismo. Em 2013, o clássico ganhou grande destaque com o escândalo envolvendo a espionagem da NSA, divulgado por Edward Snowden. Traçou-se um paralelo entre o governo americano e o controle estabelecido pelo Big Brother em Oceania, simbolizado pelas onipresentes teletelas. A ocasião demonstrou que o controle dos cidadãos por meio do estado é algo mais sútil e presente do que a população em geral costuma crer, e é uma prática difundida mundo a fora.

A prática da novilíngua, ou “alternative facts”, também não é nenhuma novidade por parte de governos. Nos EUA, espalhar mentiras foi fundamental para conseguir o apoio da população para invadir o Iraque, o que dificilmente teria sido possível sem as supostas ligações de Saddam Hussein com a Al Qaeda, e sua posse de armas químicas, ambas não comprovadas até hoje. A guerra contra o Iraque representaria paz. O resultado foi o Grupo Estado Islâmico e um Oriente Médio esfacelado, que é considerado para alguns como pré-vestfaliano nos dias de hoje. “Guerra é paz.”

As táticas demonstradas em “1984” são, em maior ou menor grau, comuns a todos os tipos de governantes. Estes são só alguns dos muitos exemplos possíveis que justificam colocar a obra no hall de outros clássicos atemporais da política, como “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel. Mas enquanto “1984” ganha as manchetes, outra obra de Orwell pouco a pouco vem subindo na lista de livros mais vendidos: “A Revolução dos Bichos”. E esta sim pode indicar fenômenos específicos da atualidade, e preocupantes.

“A Revolução dos Bichos” é uma fábula que consegue, com um número relativamente pequeno de páginas, destruir o autoritarismo. A mensagem do livro na época foi vista como uma crítica explicita ao stalinismo, e sua reprodução foi cerceada na URSS. Na história, os animais de uma fazenda julgando-se injustiçados e explorados, tomam o controle do lugar. Os bichos são liderados por dois porcos, Napoleão e Bola de Neve, e, contam com o incansável cavalo Sansão, que está sempre disposto a sacrifícios em prol do projeto.

Ao longo da história, Napoleão vai acumulando poder e sendo cada vez mais autoritário, enquanto Bola de Neve se afasta das decisões. Em determinado momento, após montar um aparato repressor com os cachorros da fazenda, Napoleão obriga Bola de Neve a fugir. Em seguida, todos os problemas enfrentados são creditados a Bola de Neve, que viria à fazenda somente para boicotar o projeto dos animais. Agora troque Napoleão e Bola de Neve pelos turcos, e antigos aliados, Recep Erdogan e Fethullah Gullen.

Quando assumiu o poder como primeiro-ministro Erdogan via no clérigo Gullen um bom parceiro para conseguir implementar seu projeto de poder na Turquia. No entanto, Erdogan, no comando desde 2002, foi cada vez centralizando mais as decisões em sua figura, até romper com Gullen, hoje exilado nos EUA. Após a tentativa frustrada de golpe de estado na Turquia em julho do ano passado, o hoje presidente, Erdogan, culpou o clérigo, e vem prendendo ou demitindo aqueles que tenham relação com o movimento gulenista, que é enorme e difundido em uma série de países. Além disso, o presidente culpa o clérigo por muitos problemas na Turquia, inclusive atentados terroristas. Erdogan conseguiu passar reformas na constituição que ampliam o poder do presidente pelo congresso em janeiro, e estas vão a referendo neste ano.

Pelo mundo proliferam-se casos de autoritarismo daqueles que se agarram ao poder. Na Hungria, Viktor Orban faz pouco caso da constituição tendo em vista seu projeto de restringir a entrada de refugiados no país. Na Nicarágua, Daniel Ortega dissipou a oposição, e colocou sua mulher como vice-presidente, além de estender seu mandato. Prolongar-se é o que também almeja Evo Morales na Bolívia, e deve desafiar sua derrota em referendo para buscar seu quarto mandato. Estes são fenômenos relativamente novos, sem citar os infindáveis ditadores africanos como Mugabe no Zimbábue, perto de completar 93 anos e de disputar mais uma eleição.

O fortalecimento do autoritarismo em países que há tempos haviam estabelecido regimes democráticos sólidos é uma grande ameaça. “A Revolução dos Bichos” traz de forma simples como a demagogia e o populismo são armadilhas fáceis de cair, das quais nenhum grupo está imune, além de como o poder costuma ser traiçoeiro.

Outra obra, esta menos lembrada, de Orwell que segue bastante atual é “O caminho para Wigan Pier”. Neste livro, o autor traz grandes reflexões sobre a vida dos trabalhadores de minas de carvão no norte da Inglaterra, região conhecida por ser a menos desenvolvida do país. Os relatos chocaram a dita intelectualidade da época, já que poucas vezes alguém acostumado à elite londrina havia explorado tanto a visão de mundo destes trabalhadores.

Os habitantes do norte da Inglaterra apresentados por Orwell compuseram boa parte da base de votação pelo Brexit, e exibem semelhanças com os eleitores de Trump, considerados por alguns das elites intelectuais costeiras como “white trash”. São os homens brancos, com poucas perspectivas, ressentidos, e que se julgam injustiçados pelas mudanças dos últimos tempos. Como demonstrado pelo cavalo Sansão de “A Revolução dos Bichos”, quando surge algum projeto pelo qual os que se consideravam injustiçados passam a acreditar, este costumam estar dispostos a abrir mão de muito em prol deste. O que isto vai representar nos EUA, e o quanto Trump vai se aproveitar desta situação no poder, são perguntas necessárias, mas que só tempo responderá. Talvez Orwell pudesse adiantar algumas respostas, mas infelizmente há 67 anos o máximo que temos são dicas. Maldita tuberculose! E que venda muito mais.



                                                                    Ao menos nos resta a BBC

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Com um Trump, sem meias palavras

O que representa, de verdade, um aumento médio de 2 graus na temperatura global? Não sei, e, na prática, ninguém sabe. O que muda nas nossas vidas com o aumento de 50 cm no nível dos oceanos? Tampouco faço ideia. A única resposta que temos a estas questões são projeções, que são apenas projetos de possibilidades que podem, ou não, acontecer. Muita gente se dá bem com o risco, e paga para ver. Mas, para as mudanças climáticas, acabou o tempo para falarmos de 2030, 2050, 2100. Temos que falar de 2016, o ano mais quente da história, batendo o recorde do ano anterior, e sucedido pelo que provavelmente lhe tomará o posto.

Pensei em falar sobre o clima citando a eleição de Trump e suas escolhas de Scott Pruitt para a E.P.A. e Rex Tillerson para secretário de Estado, todas desastrosas no âmbito ambiental. Citaria também Blairo Maggi, nosso ministro da agricultura. Para não criar uma tonalidade apocalíptica sobre 2016, queria trazer alguma história positiva para o meio-ambiente, dando esperança. Mas com Trump, tudo muda.

Cheguei a esta conclusão depois de ler o relato de uma mãe em Madagascar, que desesperada, fica sabendo que há um homem (do qual ela nunca ouviu falar), que lidera um país, (que ela tampouco conhece), e que pode ajudar seus filhos. A família praticamente não consegue comer e nem beber, em virtude da crise de alimentos gerada pelo fenômeno El Niño, que altera a temperatura das águas no Pacífico, e que em 2016 causou graves transtornos no Sudeste Africano. O homem é Trump, presidente eleito dos EUA, a quem o autor endereça o relato, e que pode, sim, transformar esta situação.

Em 2014, analistas estudaram 28 desastres ambientais, constatando que metade deles foi causada por alguma alteração do homem. O mais recente El Niño foi um dos mais fortes de todos os tempos, trazendo inundações, tornados e outros transtornos mais fortes no Pacífico, além de alterar o clima global como um todo, o que é visto nas secas enfrentadas na África Oriental. O Haiti é um bom exemplo de como o fenômeno pode ser destruidor, tendo passado por secas por conta deste recentemente, e pelo furacão Matthew em 2016.

Até o momento, é verdade que os países ricos e grandes responsáveis pelas emissões sofram menos que os pobres por conta das alterações no clima. Mas é difícil prever uma estabilidade diante de alterações nunca imaginadas. Por certo tempo, os norte-americanos ficaram aflitos com a possibilidade do furacão Matthew chegar à Costa Leste, no que cogitou-se ser um fenômeno mais destruidor que o Katrina, que arrasou New Orleans em 2005.

Outro ponto que certamente afetará os países mais ricos é a migração, inclusive com refugiados. O colunista Thomas Friedman vem alertando que em áreas de desertificação, o número de conflitos armados tende a aumentar exponencialmente, somando ainda mais aos cerca de 60 milhões de refugiados no mundo. Se a Europa não conseguiu lidar com a crise gerada pela Guerra da Síria, quem dirá com todo o Norte Africano disposto a atravessar o Mediterrâneo.

Os problemas e as vítimas já são muito reais para o homem mais poderoso do mundo lidar com as mudanças climáticas como mero exercício de fé. Há algum tempo esta deixou de ser uma questão com a qual nossos filhos e netos “talvez tenham de lidar”, para ser algo real e prioritário. A China, a quem o presidente eleito chegou a culpar por ter inventado as mudanças climáticas, já se alarmou sobre o problema, afinal de contas, não tem como fazer vista grossa quando se tem camadas enormes de poluição impedindo olhar a poucos metros de distância.

Com Trump, o homem que governa pelo Twitter antes mesmo de ser empossado, não há espaço para projeções e longos relatórios. É verdade que países inteiros podem desaparecer se nada for feito, milhares de espécies podem ser extintas com repercussões imprevisíveis, assim como as catástrofes criadas pela mudança nos regimes climáticos. Mas como vimos na eleição, para ele a verdade não basta. Ainda assim, se milhares de mães desesperadas com seus filhos passando fome não servirem, podemos ter votado em nosso próprio meteoro.

                   "Arpocalipse" convenceu os chineses/ FOTO: (Jason Lee/Reuters/VEJA)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O marxismo de Trump

A frase de Marx: “Eu tenho meus princípios. Se você não gosta dele, bem, eu tenho outros” foi usada de maneira brilhante no editorial do New York Times no dia 24 de novembro, para referir-se às posturas de Trump desde sua eleição. A máxima é uma das melhores proferidas por Groucho Marx, humorista norte-americano dotado de uma das visões irônicas de mundo mais interessantes do século XX. Não à toa, Marx é o maior ídolo de Pernalonga, outra grande figura do período. Já Trump não tem graça. Usa a volatilidade de um adolescente tentando se enquadrar em diferentes grupos para comandar a maior potência do planeta.

A segunda-feira dessa semana começou com bons indícios para o meio-ambiente. Trump se encontrou com Al Gore, que já foi vice-presidente dos EUA, e que saiu derrotado nas eleições de 2000 no colégio eleitoral, apesar de ter tido mais votos no país, assim como Hillary Clinton. Desde então Al Gore é uma das mais proeminentes figuras na defesa do clima, conseguindo grande destaque para a questão depois de seu filme “Uma Verdade Inconveniente”, um marco no tratamento sobre as mudanças climáticas. Ambos declararam saírem satisfeitos da reunião, o que animou os ambientalistas. Depois de eleito, Trump, em entrevista ao New York Times indicou que acredita que o homem possa ter impacto nas mudanças climáticas. Já durante a campanha, o magnata chegou a propor que o aquecimento global era uma invenção chinesa.

Na prática, o bilionário nomeou no dia seguinte Scott Pruitt para a Agência de Proteção ao Meio-Ambiente, E.P.A. na sigla em inglês. Pruitt é o promotor geral de Oklahoma, estado com a maior utilização intensiva de hidrocarbonetos nos EUA. O promotor chegou a entrar com ações contra a própria E.P.A., e segundo indícios, cartas que o mesmo enviou ao processo teriam sido redigidas por agentes da indústria do petróleo. Pruitt foi um ardoroso opositor das regulamentações ambientais de Obama, que possibilitaram, por exemplo, o Acordo de Paris. Por fim, o novo homem forte da E.P.A. diz não acreditar no homem como transformador do clima.

Trump foi eleito com um discurso voltado aos trabalhadores, que estariam sendo derrotados com a globalização. Como secretário de Emprego, o presidente eleito dos EUA nomeou Andrew Puzder. O novo secretário é responsável por uma cadeia de fast-foods, ramo conhecido nos EUA pelas condições de trabalho ruins. Puzder é contra o aumento do salário mínimo no país, atualmente em U$$ 7,25 a hora, o que é insuficiente para muitos trabalhadores manterem ao menos suas casas. Além disso, a rede comandada por Puzder foi condenada em 60% dos casos trabalhistas pelos quais a processaram, a maioria por não pagamento do mínimo e falta de remuneração por horas extras.

Goldman Sachs e Wall Street foram acusados ferozmente durante a campanha de Trump de serem responsáveis por grande parte dos problemas norte-americanos. Eis que o nomeado para o cargo de secretário do Tesouro é Steve Mnuchin. O escolhido por Trump para cuidar do dinheiro no país trabalhou por 17 anos no Goldman Sachs. Outra figura importante de Wall Street que vai compor o novo governo é Wilbur Ross, investidor de ativos em crise, os apelidados “tubarões”, e que chefiará a pasta do Comércio.

Após um mês eleito, Trump já criou um desgaste diplomático com a China ao atender um telefonema da presidente de Taiwan. Recebeu elogios de Duterte, presidente das Filipinas que chamou Barack Obama de “filho da p...” e é responsável por uma política de execuções extraoficiais que já matou milhares. Nomeou o editor de um site supremacista branco para ser conselheiro da Casa Branca e um islamófobico para o Conselho de Segurança. Mas nada disso surpreende, já que seguindo outra máxima de Marx: “Acho que a televisão é muito educativa. Todas as vezes que alguém liga o aparelho, vou para a outra sala e leio um livro” Trump, que fez carreira com seu reality show na televisão, não dá mostras de ter recebido tal educação.

Al Gore comenta encontro. Esperança durou pouco

domingo, 6 de novembro de 2016

A hora da verdade

Enfim chegou a hora da verdade. Depois de um período extenso de campanha, os norte-americanos se deparam com seu peculiar sistema eleitoral em que, no caso desta campanha, as acusações, mentiras e ofensas dão espaço para uma busca desesperada por votos nos chamados swing-states.

Isto ocorre por conta de eles serem, de fato, fundamentais na eleição. Um candidato pode vencer mais estados, e até possuir mais votos no país inteiro e não se tornar presidente. Em 2000, o democrata Al Gore conseguiu maior votação geral do que o republicano George W. Bush, mas perdeu no estado mais relevante naquela eleição, a Flórida, e o resultado final os iraquianos sabem melhor do que ninguém.

O sistema dos colégios eleitorais vem do começo da história dos EUA independentes, quando os ditos estados unidos, temiam que alguma região pudesse concentrar mais poderes do que outra. 
Sendo assim, foi estabelecido o complexo sistema que, de fato, representa as maiores populações, mas que leva em conta números relativo aos congressistas e senadores. Hoje o colégio eleitoral conta ao todo com 548 delegados divididos entre os 50 estados. Para se tornar presidente, Clinton ou Trump devem conseguir ao menos 270. O sistema é o chamado winner takes all, ou seja, o vencedor de cada estado leva todos os delegados.

O maior, com 55 delegados, é a Califórnia, onde um republicano não vence desde 1988, com George Bush. O segundo é o Texas, que conta com 38 delegados, e é ainda mais definido, onde um democrata não vence desde Jimmy Carter desde 1976. Em terceiro vem Nova Iorque, com 29, e que um republicano não leva desde Reagan em 1984. Também com 29 vem a Flórida, estado em que desde 1996 quem venceu se tornou presidente. Daí o apelido de “grande prêmio das eleições”.

Depois como tradicionais swing-states importantes estão Pensilvânia e Ohio, com 20 e 18 delegados respectivamente. Existem outros, e claro, também são relevantes ainda mais se tratando de uma eleição disputada. E em 2016, uma peculiaridade. Alguns estados tradicionalmente considerados “sólidos” de um dos partidos passaram a ter disputas intensas, em especial pela alta rejeição dos dois candidatos. Assim, Arizona e Geórgia, dois estados do Sul, o tradicional reduto republicano, passaram a condição de swing-states, e Clinton tem reais possibilidades de ganhar lá.

Para acompanhar tudo isto na prática, recomendo o Real Clear Politics, que usa uma fórmula com o maior número de pesquisas possíveis, e atribuindo a cada uma determinado valor de acordo com o grau de confiança, para indicar suas expectativas. No dia, acredito que o NYT, que abriu seu conteúdo gratuitamente no período das eleições, não deve decepcionar, trazendo assim uma cobertura brilhante como vem fazendo.
Mapa eleitoral: Real Clear Politics
Outros candidatos
Diferente dos amplamente divulgados swing-states, este assunto aparece bem menos na imprensa. Mas existem outros candidatos, e são mais de mil. Na prática o único relevante é o libertário Gary Johnson, que oscila entre 3% e 6% das intenções de votos nas pesquisas. Sobre ele fala-se pouco, além de não ter grandes recursos para divulgar sua campanha e ainda menos espaço na mídia. Seu momento mais marcante foi quando perguntou o que era Aleppo, a segunda maior cidade da Síria que vive o maior drama humanitário da atualidade. O que acontece em Aleppo é de alto interesse dos EUA, e foi bastante difundido durante as eleições. O episódio para muitos fez com que Johnson não figurasse mais como um candidato sério, sendo seu resultado eleitoral mero reflexo das altas rejeições de Trump e Clinton.

A ausência na prática de outros candidatos se deve principalmente ao sistema distrital utilizado pelos EUA, que beneficia o bipartidarismo. Outro fator determinante é o federalismo, sendo complicado para os candidatos se registrarem nas cédulas de votação em todos os estados, já que a legislação altera-se bastante de um para outro. Assim, somente os três citados até agora conseguiram estar à disposição dos eleitores em todos os 50 estados. A quarta força, Jill Stein, é digna de nota. A candidata do Partido Verde conseguiu cerca de 2% na intenção de voto nas pesquisas gerais, sendo que seu nome está disponível nas cédulas de menos de 20 estados. Todos os mais de mil candidatos podem receber votos, mas desde que o eleitor escreva o nome deste no papel de votação. Sim, na prática, voltamos a Trump x Clinton  e os swing-states.

Abstenção
A abstenção nos EUA tem papel fundamental e é uma das maiores preocupações dos candidatos até o último momento. Pesquisas prévias muito favoráveis podem desestimular o eleitor a ir votar, por conta do “já ganhou”, neste que é um dos países democráticos com menor índice de participação nos processos eleitorais. Até a previsão do tempo pode ser relevante em um caso assim, já que tradicionalmente um tempo ruim faz com que muitos desanimem de ir votar.

Grande parte desta falta de participação se dá pelo fato de que é difícil votar nos EUA. A lei de que a votação tem de ocorrer em uma terça-feira vem de uma época em que só homens brancos podiam exercer o direito do voto, e que o país era, sobretudo, dependente da produção agrária. Hoje as terças-feiras são dias comerciais, e boa parte dos trabalhadores tem dificuldades para se deslocar aos locais de votação e enfrentar as filas, em dias que são como quaisquer outros.

Existem diversos movimentos para alterar o dia de votação, o favorito seria seguir a América Latina e adotar o domingo. Outra ideia é tornar a terça-feira da eleição um feriado, o que tem maior peso econômico. O fato é que os norte-americanos tem uma predisposição a seguir regras de sua constituição de maneira inquestionável, mesmo que isto represente um ultraje ao bom senso. Grande exemplo é a negação de qualquer mudança na lei que regulamenta armas, por conta do texto ancestral da Segunda Emenda, e que permite que hoje, pessoas com suspeitas de ligações terroristas possam comprar armas. Mas isto é pra outra hora.


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O outro lado na eleição dos EUA


É a primeira vez que o blog trata das eleições norte-americanas de 2016. No Twitter e no programa semanal de rádio, o assunto é abordado com frequência há pelo menos um ano, mas o propósito aqui é diferente. Por questões de logística e recursos, a ideia deste espaço é trazer assuntos menos abordados pelos meios de comunicação, ou ao menos tratar uma perspectiva diferente destes, o que se pode verificar no primeiro post do Vale do Paraibuna Connection, ainda em 2013, que é uma contrapartida aos que execram por completo o chamado bullying.

Desde que Donald Trump anunciou, em 2015, que concorreria à presidência o candidato virou o centro das atenções. A cada vez que sua candidatura parecia mais surreal, seja insultando mexicanos, propondo o banimento de muçulmanos dos EUA, ou ofendendo mulheres, grande parte da mídia e os analistas reagiam em contrapartida, no sentido de conter o chamado “bufão fascista”. O fato é que durante as primárias republicanas a estratégia da imprensa falhou, já que Trump derrotou favoritos como Jeb Bush e Marco Rubio, e por fim fez com que o extremista Ted Cruz parecesse uma alternativa viável para frear o fenômeno grotesco. Para deixar claro, já que este parágrafo resume quase um ano de intensas movimentações, Cruz é parte do Tea Party, a ala mais radical dos republicanos e nunca foi, de fato, alguém moderado, caso de John Kasich, a melhor opção que o partido tinha nas primárias.

A questão é que a cada editorial criticando Trump, assim como a cada político de relevância que se posicionava contra o candidato, sendo o sensato Kasich um dos primeiros a fazê-lo dentro do partido republicano, uma parcela nada desprezível deste fenômeno ficava de lado, seus apoiadores. Sempre que o bilionário parecia mais grotesco, as análises faziam com que seus eleitores também parecessem, e logo estes passaram a ser insultados quase da mesma forma com que Trump faz com aqueles que não o apoiam.

O perfil é tradicional: o homem branco, com pouca educação, interiorano, e que foi atropelado pelo fenômeno da globalização, não conseguindo se estabelecer na nova ordem mundial. Além disso, ele sente seus privilégios ameaçados por minorias que teoricamente tomariam seus empregos e direitos. 
O discurso de Trump, dito “politicamente incorreto” contra “tudo o que está ai”, aliado a xenofobia que promete trazer de volta estes empregos para os EUA, “making America great again”, como diz seu slogan, é uma espécie de musica nos ouvidos destes atrasados provincianos que não pegaram o bonde da história. Esta é uma síntese de boa parte das explicações do fenômeno Trump. O que se suprime é como estes “atrasados” se sentem quando são chamados assim.

Alguns analistas chegaram ao ponto de classificar esta parcela nada irrelevante da população norte-americana de “white trash”, que realmente tem o mesmo teor de se chamar alguém de lixo branco no Brasil. Mesmo que menos pejorativos, os veículos de comunicação passaram a tratar os eleitores de Trump de maneira parecida, como se fossem uma parcela indesejável do país. Ninguém gosta de ser marginalizado, e quando isto se dá com pessoas que se sentem cada vez mais excluídas e frustradas, o efeito pode ser catastrófico.

Trump não é um imbecil, mesmo que seja difícil acreditar nisso. Quando disse publicamente que poderia atirar em alguém na Quinta Avenida, em Nova Iorque, e que mesmo assim não perderia votos, sabia que tinha alguma razão naquilo. O motivo pelo qual grande parte dos cerca de 40% dos EUA, segundo as últimas pesquisas, votarão em Trump não é pelo que ele é nem pelo que diz, e sim por ele não ser Hillary Clinton, o que foi indicado pelo Pew Research com 33% dos argumentos. Quando o bilionário tomou plena consciência disso, a campanha passou a cair ladeira abaixo, se assemelhando a disputas entre garotos de quarta série.

E foi neste cenário que Hillary Clinton cometeu seu grande erro na campanha até aqui. Em um discurso a candidata indicou que “você pode colocar metade dos simpatizantes de Trump no que eu chamo de cesta dos deploráveis”. Ou seja, disse acreditar que cerca de 20% das pessoas que ela provavelmente vai liderar a partir de 2017 são deploráveis. A expressão é gravíssima, e torna quase impossível que estes eleitores que não confiam nela passem a fazê-lo, o que é fundamental para a democracia norte-americana no sentido de rechaçar demagogias e populismos, e que se evite mais um “contra tudo o que está ai”. Ainda mais que o próximo pode não ser tão nefasto como Trump, ou ainda pior, em um cenário que se deteriore tanto nestes quatro anos: um bufão pior que o bilionário assumindo a Casa Branca.

Assim como no caso do Brexit, a mídia tem papel fundamental no sentido de amenizar os ressentimentos. A votação britânica mostrou que difamar um eleitorado frustrado por conta de suas opiniões não é a melhor estratégia de uma imprensa normalmente vista por estes como parte da causa de seus problemas.

Quem rechaça Trump seguirá rechaçando Trump, agora o que nenhum país precisa é de uma presidente considerando 20% do eleitorado como deplorável, ou que analistas chamem estas pessoas de “white trash”. É possível e justificado fazer um texto criticando cada um dos aspectos demonstrados por Trump durante a campanha, mas é realmente necessário neste momento? E o principal, subjugar uma parcela da população frustrada é realmente uma boa estratégia? A votação pelo Brexit provou que não para as duas perguntas.


Valendo-me de uma expressão que vem sendo utilizada sobre Trump, o candidato é “pós-moderno” nos seus conceitos de verdade. Clinton pode ser mentirosa, mas a campanha do bilionário se dissipa de qualquer conceito de realidade. Em um dos poucos artigos críticos à cobertura da mídia sobre as eleições, a The Economist questionou um dos protagonistas jornalísticos nesta campanha, o fact-checking. A revista indicou que, depois de tudo o que Trump já disse verificar a veracidade de seus discursos não parece nada mais do que arrogância para muitos de seus eleitores. Em uma campanha que tamanho do pênis e acusações de abusos sexuais foram mais relevantes do que os planos para a nação mais importante do mundo, nada surpreende que a verdade apareça para muitos como mero detalhe arrogante. As análises da mídia também.

                                                                Motivo? Ele não é Clinton