Os
noticiários há pelo menos três anos são inundados pelas mesmas considerações
sobre a crise na Venezuela: “situação drástica”, “governo insustentável”, “protestos
reprimidos da oposição” e cifras sobre inflação, desabastecimento, queda no PIB
e outros números para ilustrar o fracasso do governo de Nicolás Maduro. Desta
forma, é compreensível que, por outro lado, os defensores do “socialismo na
América Latina”, da “Revolução Bolivariana”, e do legado do chavismo para os
mais pobres, se aferrem aos mesmos argumentos de 2014. No entanto, na realidade
de 2017, a estratégia do que resta de apoio internacional do regime soa como um
misto de desinformação e inconsequência.
De fato, o
chavismo aproveitou bem o alto valor do petróleo para conseguir importantes
investimentos na população mais desfavorecida da Venezuela, aumentando expectativa
de vida e o poder de compra dos venezuelanos. Como já foi extensamente
propagado nos últimos três anos, a queda no valor do barril, que chegou a
custar menos que US$ 30, enquanto nos tempos dourados de Chavéz ultrapassava os
US$ 100, foi um baque até hoje irreparável na economia que detém as maiores
reservas de petróleo do mundo e exportações que dependem do óleo em 95%.
O lado
menos contato da história, e que vem aparecendo gradualmente, é para onde foi
outra parte deste dinheiro. A Venezuela, assim como o Brasil, não sofreu
somente com a queda do preço internacional de matérias primas, mas também com
um assalto aos cofres do Estado com um misto de incompetência, e a prioridade a
interesses espúrios. No que a revista Economist
classificou como “gangstercracia”, o ex-ministro do orçamento venezuelano
Jorge Giordani afirma que dos US$ 1 trilhão que o país conseguiu com a venda do
petróleo, US$ 300 bilhões teriam sido desviados. O atual vice-presidente,
Tareck El Aissami, é acusado internacionalmente de integrar uma rede do
narcotráfico, que contaria com a colaboração de altos funcionários do governo
venezuelano. Quem fez a denúncia junto a Giordani foi Hector Navarro, que
esteve à frente de cinco ministérios no governo de Chavéz, e que afirma “ladrões
não têm ideologia”.
Desta
forma, o que não devem pensar os 93% dos venezuelanos que afirmaram em pesquisa
não conseguir comprar o que precisam de comida, assim como os cerca de 75% que
perderam peso no ano passado ao ouvir a defesa do atual governo por conta de
sua prioridade aos mais pobres? A inflação, que deve alcançar os 1000% neste ano,
a maior do mundo, consome o poder de compra daqueles que veem este equiparado à
década de 50. A mortalidade materna cresceu 66% no último ano, e a infantil
30%, números que para serem divulgados custaram o cargo da ministra da Saúde.
No começo
da crise, uma das principais defesas que era feita ao regime foi a da
manutenção das liberdades. Como o caso da ministra da Saúde ilustra, e que
ficou evidente com o cerceamento aos trabalhos da procuradora-geral Luísa
Ortega Díaz, chavista e que chegou a ter seus bens bloqueados por conta da
oposição a Maduro, internamente a liberdade não passa de ilusão. A liberdade de
imprensa, que de fato ainda é maior do que em históricas guinadas autoritárias
na América Latina, foi cerceada nos últimos tempos, em especial com a simbólica
ordem de fechamento da CNN.
Liberdade
de manifestação, como se sabe, nunca foi o forte do governo de Maduro. Os
primeiros protestos foram duramente reprimidos, culminando inclusive com uma
série de encarceramentos e até em mortes. No entanto, desde as marchas que se
iniciaram em abril deste ano, mais de 100 pessoas já perderam suas vidas em manifestações
contra o governo, parte delas vítimas de assassinatos brutais por milícias
urbanas. Apenas nos protestos em decorrência da votação pela Assembleia
Constituinte, já são contabilizadas ao menos 15 mortes.
A
capacidade de restabelecer a ordem democrática por meio da Assembleia, como é defendido
por parte dos apoiadores do regime, é uma falácia. As 545 cadeiras em disputa
pelo pleito reservavam importantes margens à setores ligados ao governo,
inclusive com algumas pessoas podendo escolher por duas vezes seus
representantes. A eleição municipal fez com que localidades pequenas tivessem a
mesma equivalência das principais cidades, onde o antichavismo é mais forte, em
uma violação da paridade do voto (sim, o que não deixa de ocorrer, de certa forma, no sistema eleitoral do EUA). As denúncias de que funcionários públicos
foram ameaçados em caso de não comparecimento à votação foram frequentes, assim
como as de sanções aos beneficiários de programas do governo que não o fizessem.
Por fim, Diosdado Cabello, conhecido como número dois do chavismo, acusado de
corrupção e envolvimento com o narcotráfico, Cilia Flores, esposa de Maduro, e
Delcy Rodriguez, ministra das relações exteriores do governo, terminaram
eleitos.
Diante do
atual quadro do regime, não passa de uma retórica vazia as expressões que
acusam uma suposta “direita” de arquitetar contra Maduro. Quanto às acusações
norte-americanas de ingerência, o país segue comprando quase metade do petróleo
exportado pelos venezuelanos, sendo sede de importantes operações da estatal
PSVDA no ramo. Sanções contra o país dificilmente surtiriam efeito, já que
reforçariam os argumentos “anti-imperialistas” de Maduro para sua base, e que
buscaria outros parceiros, como a já importantíssima China e a Rússia, que
passou a exercer mais influência após acordos venezuelanos com sua estatal
petrolífera, a Rosneft. Por outro lado, os norte-americanos neste caso teriam
pouco a ganhar, sendo obrigados a buscarem óleo em áreas mais onerosas e
provavelmente assistindo a um aumento no preço do barril no cenário global.
Sanções
contra a alta cúpula do regime, como El Aissami, que já conta com embargos
norte-americanos, são um caminho responsável, e que pode surtir efeito. No
entanto, nada além de forçar o regime a ir, de fato, à mesa de negociações pode
representar o melhor aos interesses venezuelanos. Enquanto Maduro anunciava
suas intenções de diálogo, como quando contou com a mediação do Vaticano, o
regime se desviava cada vez mais do viés democrático. Desde 2014 presos
políticos foram feitos na Venezuela, eleições marcadas foram adiadas sem prazo,
um referendo revogatório previsto na constituição foi ignorado, e no auge do
autoritarismo, o Tribunal Supremo assumiu os poderes da Assembleia Nacional, de
maioria opositora, em um golpe que remonta ao século XX na América Latina e que
a pressão internacional foi vital para o regime voltar atrás.
A
instituição da Assembleia Constituinte representa um importante marco nas
rupturas do processo democrático venezuelano que deve ser repudiado
internacionalmente, tendo em vista minimizar suas consequências, que variam
desde a instauração de uma ditadura plena à uma guerra civil. A inconsequência
da ala petista que domina o partido com mais apoiadores no Brasil é lamentável,
baseada em argumentos que não condizem com a realidade e a defesa de um regime transgressor
do viés democrático. É fato que, somente os próprios venezuelanos e o diálogo
poderão resolver a grave crise pela qual passa o país, no entanto, a mediação
externa se faz necessária. Criticar atos de um regime que atenta à ordem
democrática não faz ninguém menos aferrado a uma ideologia, assim como fizeram diversos
respeitados intelectuais de esquerda e a procurado Ortega Diaz. Um
posicionamento mais embasado para além de chavões distantes da realidade e
dedinhos no bigode para cantar “tô com Maduro” é necessário neste momento em
que sim, a Venezuela pode ter dado um passo sem volta rumo ao autoritarismo.
Maduro, longe demais no 30/07
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