Há uma
década, tema comum em muitas rodas de conversa era o crescimento
chinês. A necessidade de se aprender mandarim, a língua do futuro (nesta época, já não mais conhecida como “chinês”), misturava-se às perspectivas de que logo
a China tomaria o lugar dos EUA como a grande potência hegemônica mundial. Nos
últimos meses, as expressões ganharam importantes fundos de verdade.
O
mandarim dificilmente será uma língua universal. O idioma é falado por grande
parte dos chineses, mas o país com quase um quarto da população mundial abriga
uma série de outras línguas que contam com milhões de falantes. Além do mais, o
francês no começo do século XX e o inglês pós Segunda Guerra Mundial tiveram importantes elementos difusores do chamado soft power. Traduzido como “poder brando”, o termo designa
influências importantes exercidas por países, mas sem o emprego da força. No
caso da França, a Belle Époque foi um
grande difusor do seu idioma, assim como vastas obras culturais, enquanto os
norte-americanos têm Hollywood, o que
já é mais do que grande parte dos países. No caso chinês, mesmo quando a nação
passar a ser a maior economia do mundo é complicado vislumbrar elementos que
remetam ao complicado mandarim pelo resto do globo. Afinal de contas, mesmo os
filmes de Jackie Chan eram feitos em Hollywood.
Mas em
outras áreas, o poder chinês já chegou. A decisão do Panamá nesta semana de se
aliar à China, em detrimento de sua aliança tradicional com Taiwan, foi um
destes exemplos. Os panamenhos passaram a aceitar a política da Uma China,
reconhecendo o governo de Taipei como parte do território chinês. Taiwan
reclamou, e disse que os latinos estavam abandonando uma tradicional aliança
por conta do poder de influência da segunda maior economia do mundo. E
provavelmente estavam mesmo, já que a China corresponde hoje por um quinto dos
produtos que passam pelo Canal do país, grande fonte de ingressos para este. E
o que Taiwan pode fazer quanto a isso? Esta foi uma aplicação clara e manifesta
do hard power.
Outros
planos bem mais ousados expressam as ambições chinesas, e o maior deles é a
chamada Nova Rota da Seda. O plano prevê investimentos de infraestrutura estimados na
ordem de até US$ 1,3 trilhão de dólares, quase o PIB brasileiro, em 65
países. A intenção é interligar Europa, África, Oriente Médio e Ásia, de acordo com os
interesses da China, que passaria a não depender, por exemplo, de rivais
regionais como a Índia e a Rússia para escoar parte de sua produção. A ideia
sofre com críticas de ambientalistas e de comunidades locais, que temem que o
projeto, sem precedentes, não tome as devidas precauções.
Em
contrapartida às críticas ambientais com suas investidas no exterior, a China toma
vanguarda no desenvolvimento de energias limpas, reforçada após o anúncio de
Donald Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris. A Usina Hidrelétrica de Três
Gargantas, a maior do mundo, é um dos empreendimentos que demonstram o
potencial chinês para investir em fontes renováveis. O país tem a maior matriz
hidrelétrica do mundo e é líder na produção de painéis solares.
Minhas
referências nacionais e internacionais em tecnologia, Ronaldo Lemos e Thomas
Friedman respectivamente, fizeram questão de em suas colunas na última semana
de destacar a evolução chinesa nas formas de pagamento. Ambos relataram que,
nas principais cidades do país, já é difícil encontrar transações que aceitam
dinheiro, tendo este sido substituído por QR codes, que já descontam o valor
diretamente na conta do cliente. O futuro já chegou à terra de Confúcio.
Em 2001,
logo ao entrar na OMC, a China era responsável por 50% do PIB dos BRIC. Hoje
este valor já corresponde a dois terços. A nação foi a única a cumprir as metas
de crescimento esperadas dos quatro países em 2003, quando começou o auge das
expectativas com os gigantes em desenvolvimento. Brasil e Rússia tiveram
importantes recessões, em grande parte derivada da queda do preço das
commodities. A Índia conseguiu diversificar sua economia e chegou a crescer
mais que a China em 2016, mas fica aquém das reformas prometidas com a ascensão de Narendra Modi ao poder, em 2014.
A China
evitou entrar intensamente em regiões de disputas complexas e tradicionais por
influência, como o Oriente Médio, e estreitou seus laços com países diversos,
perpassando do Sudão à Nicarágua. Membra permanente do Conselho de Segurança da
ONU, portanto, com poder de veto, a postura pouco combativa dos chineses lhe
deu a vantagem de não ter de se engajar firmemente em conflitos espinhosos como
Síria e a Ucrânia, e ainda assim tem papel decisivo sobre estes, contando com
uma importante margem para negociar de acordo com seus interesses.
No
primeiro Fórum Econômico de Davos após a eleição de Trump, o presidente chinês,
Xi Jinping, apresentou seu país como um defensor da globalização e do livre
comércio, sinalizando a intenção de expandir sua influência. Um dos históricos
conflitos entre China e EUA é pela prevalência no Pacífico, em especial no que
Pequim considera como Mar da China Meridional. No ano passado, a Corte
Internacional de Haia reconheceu um pedaço da região, pela qual passa uma
parcela cada vez maior do PIB global, como parte das Filipinas, aliadas dos EUA
de longa data.
Duterte,
presidente eleito das Filipinas no ano passado, passou a limpo esta relação.
Como uma das principais plataformas de campanha, o filipino adotou um discurso
contra as drogas, que previa a execução de usuários e traficantes. Nos
primeiros meses de mandato, o número de mortos chegou a 7 mil, direta e
indiretamente, chamando a atenção de grupos de direitos humanos. As críticas de
Obama levaram Duterte a xingar o presidente norte-americano, deixando a relação
entre os dois países em um dos piores patamares históricos. A China observou
silenciosa a situação, e recebeu de muito bom grado quando o filipino anunciou
uma guinada na cooperação com Pequim, em um afastamento de Washington.
Deixar
direitos humanos de lado em detrimento da influência geopolítica não é
exclusividade da relação Pequim-Manila. No Sudão, a China tem como grande
aliado o ditador Omar Al-Bashir, condenado por crimes contra a humanidade e
frequentemente acusado de genocídio, mas responsável por vastos campos de
petróleo. O futuro chegou. Mas como em Black
Mirror, não precisa ser sinônimo de comemoração.
Autor desconhecido, mas valor inalterado
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