sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Estamos preparados para chegar 2018?

Durante as eleições autárquicas, o que mais me chamou a atenção foi o pragmatismo das propostas durante a campanha, em especial para as juntas de freguesia. No Brasil o que há de mais semelhante a essa esfera são as sub-prefeituras, inexistentes na maior parte dos municípios. Na ocasião, partidos de espectros políticos diferentes para grandes causas, como o Bloco de Esquerda e o CDS, propunham ações práticas, como a reforma de uma praça, ou a criação de um grupo de atividades esportivas para idosos. Ao meu ver, são apenas propostas políticas positivas. No Brasil de hoje, acredito que tentariam rotulá-las no eixo direita-esquerda, como vêm se deturpando as definições com uma criatividade impressionante.

O propósito das juntas de freguesia funciona muito bem. Pessoas próximas às suas comunidades são eleitas, e desenvolvem uma política bastante compreensiva com as necessidades da região. Assim, juntas de freguesia com programas mais competentes são premiadas, criando um sentido de competição positivo. Melhores gestões acabam por atrair mais investimentos, em um ciclo virtuoso no qual todos saem ganhando. A minha junta, por exemplo, é referência nacional em sustentabilidade. Sei disso por ler o jornal da JFC (Junta de Freguesia de Campolide). Sim, sou apaixonado pela ideia.

Logo pensei: “Pronto, tá ai um modelo que pode elevar a participação política e aproximar os moradores de quem toma decisões no Brasil” (como escrevi aqui). Mas infelizmente, é bem mais complexo do que isso. E é o que quero tratar visando 2018. Surgirão uma infinidade de boas ideias no papel, com pessoas se dizendo de fora da política tradicional tendo uma nova visão, e que vão aparentar ter inventado a roda. A triste realidade é que provavelmente a ideia já foi implementada de outras maneira, talvez já exista, ou simplesmente as consequências não tenham sido analisadas com a parcimônia necessária. Como diria o professor Paulo Roberto Figueira Leal, “Em política, não existe receita de bolo”. E acompanhar isso é uma eterna desilusão.

O Brasil já buscou na prática o mesmo ciclo virtuoso proporcionado pelas juntas de freguesia. Em 1985, o país possuía 3.992 municípios, número que em 2000 aumentou 40%, chegando a 5.507. Ao invés de criar soluções, motivos como a falta de fiscalização e a arrecadação tributária excessivamente voltada à esfera federal, fizeram com que centenas de cidades passassem a existir com administrações incompetentes, e a um altíssimo custo de dinheiro público. E diferencio preço de custo mais uma vez. O valor da corrupção nestas prefeituras, e não apenas da mesma, mas também de funcionários ineficientes contratados pode até ser mensurado. O que isso custa quando a mesma verba poderia ter sido destinada a um hospital sem equipamentos, ou a uma escola básica precária, já é impossível de se medir.

Alexandre Versignassi, economista, e um verdadeiro poço de bom senso no Brasil de hoje, foi um dos poucos que li na esfera pública a aventar a seriedade do problema. Seu texto “Não adianta pintar a casa. Ela vai continuar caindo” é uma aula sobre os problemas estruturais do país, que não serão resolvidos a despeito dos resultados das eleições do ano que vem.

“Não que número de municípios em si seja um problema. A Alemanha tem 11 mil. A diferença é que, lá, eles existem 407 distritos administrativos para controlar a grana que vai para as cidades. Aqui não. Cada uma tem todo o maquinário administrativo instalado – estrutura que acaba servindo ao mesmo tempo como cabide de emprego e como aquela varinha de condão que transforma dinheiro de merenda em Hilux de vereador e L200 de assessor de porra nenhuma.”, resume, com sua linguagem clara característica. Não sou especialista, mas qualquer um que já tenha analisado com razoabilidade as contas públicas de um município pequeno, e que conheça processos licitatórios, ao mínimo não cai na bravata de que “o problema do Brasil tá em Brasília.”

No ano passado, abordei quase 50 pessoas nas ruas de maneira aleatória, tentando seguir o padrão populacional do IBGE, com o intuito de realizar uma pesquisa que buscava compreender a relação do consumo de mídia e as visões políticas no Brasil. A experiência mostrou-me um padrão nas percepções de competência do cidadão comum (a grande maioria não procurava por política no Facebook). O que ouvi acabou, em certa parte, sendo confirmado em pesquisa da fundação Perseu Abramo no começo deste ano. Em sua maioria, o brasileiro acredita que as responsabilidades do que lhe está próximo são de competência da prefeitura. Já nos casos mais afastados é culpa da presidência. O legislativo é eximido de culpa, assim como os importantíssimos governos estaduais. Muitos não sabiam dizer sequer quem era o atual governador de Minas Gerais. Sendo mais honesto, a maioria apontava o “eu sei quem é, mas agora não tô lembrado”, que ganharia qualquer eleição no Brasil.

As minhas amadas juntas de freguesia iriam no mesmo caminho. Mais um órgão público consumindo recursos, que por conta da arrecadação tributária, teriam de receber repasses da União, e que provavelmente acabaria como cabide de empregos e mais corrupção. A proximidade com a população serviria para que as pessoas votassem em mais conhecidos sem analisar propostas, como já ocorre em boa parte dos casos das eleições para vereador.

O previsível fracasso das minhas juntas representa algo muito maior. O Brasil tem problemas estruturais gravíssimos, e 2018 será palco perfeito para demagogos proporem soluções simples a problemas extremamente complexos. Desconfie sempre da frase “O problema do Brasil é (insira aqui)”. Não tenho as respostas para o Brasil. Mas sei perguntas fundamentais que devem ser feitas, e que, infelizmente, estão perdendo espaço por discussões sobre a validade de piadas e clipes. Feliz, e preocupante, 2018.
Vista do aqueduto na JFC. Ok, a cerveja na associação de moradores também é muito barata
FOTO: Site Idealista

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Como saber as capitais mundiais foi útil para mim

Saber todas as capitais do mundo para mim sempre foi um objetivo, mas não imaginava que o conhecimento pudesse ir além de um hobbie. Com o tempo, vieram algumas divertidas competições e os clássicos desafios na escola em que os amigos se juntavam para testar até onde chegava aquilo. Não pensava que algo hoje resolvido com uma pesquisa de dez segundos em um smartphone chegasse a ter alguma relevância.


Até então, meu contato com estrangeiros se resumia a alguns países bem conhecidos. Realmente, não há muito valor em começar uma conversa perguntando a um argentino se o mesmo era natural de Buenos Aires, ou a um espanhol se este vinha de Madri. Mas em alguns casos, e não são poucos, isso pode mudar tudo.


Entrevistei nesta segunda-feira Gérard Niyondiko, criador de um sabonete que serve como repelente à malária em Burkina Faso, país localizado no Centro-Oeste da África. Niyondiko viu morrer seis de seus 12 irmãos por conta da doença, que é a principal causa de mortes em sua região. A importância do produto ser um sabonete, e não, por exemplo, as redes protetoras contra mosquitos, é que o sabão já faz parte da cultura popular, com cerca de 95% das pessoas o utilizando. A expectativa é que sua invenção salve cerca de 100 mil vidas até 2020.


Apesar do enorme feito, Niyondiko começou a conversa em um misto de hesitação e humildade, esta que lhe é característica e torna a figura do jovem químico ainda mais fantástica. Ao entrarmos no centro de imprensa, acanhado, o químico me perguntou se poderíamos realmente estar ali e se desculpou por seu inglês. Então logo perguntei se ele vinha de Ouagadougou, capital de Burkina Faso, o que gerou certa surpresa, e mudou o rumo da conversa.


Niyondiko me perguntou se eu já havia estado na cidade, e me disse que na verdade ele não era original de Burkina Faso, mas do Burundi, e logo desandou a contar sua brilhante trajetória com muito mais desenvoltura. Na terça-feira, aos nos despedirmos, o já bem menos hesitante inventor me convidou a visitar Ouagadougou, e que quando o fizesse deveria entrar em contato com o mesmo.


Em conversas informais o conhecimento pode ser ainda mais relevante. Uma das primeiras pessoas com quem conversei em Portugal era azeri. Quando a perguntei se vinha de Baku, ela logo exclamou “Oh, mas você conhece Baku. Ninguém aqui sabe o que é.”, e daí começamos a falar sobre a “Terra do Fogo”, alcunha que, confesso, conhecer com grande ajuda do Atlético de Madrid.


Não é aleatório começar uma conversa com alguém original de um país menos relevante no cenário internacional com sua capital. Em um caso como o uruguaio, em que nós no Brasil podemos ter como conhecimento comum que a capital é Montevidéu, a informação não é tão difundida em países mais longínquos. Tendo em vista que a capital tem quase 50% da população do país, concentra grande parte das pessoas com poder aquisitivo para estar no exterior, ou ao menos é um ponto de referência para um cidadão que trabalhou lá, a chance da menção à cidade causar um efeito positivo é grande. No caso de turistas, ao menos pelo aeroporto da capital o mesmo deve passar.


E assim meu conhecimento, que eu mesmo considerava um tanto quanto obsoleto na era dos smartphones, e na qual o Google deu cabo às boas discussões, vem me ajudando. Que a cerveja de 0,5L por € 1 me permite lembrar, assim já foram conversas com pessoas desde a Guiné-Bissau à Eslovênia, indo por Lituânia a Cabo-Verde, dentre outros. Em um mundo de mudanças constantes em que habilidades tornam-se dispensáveis com a invenção de um novo aplicativo, vale sempre refletir sobre o questionamento do poeta norte-americano T.S. Eliot “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”

Gérard, "O Cara". Espero poder ter minhas dicas de Lisboa retribuídas em visita à sua Ouagadougou, que segundo o mesmo, é mais fácil de se chegar do que eu pensava. (FASO SOAP)

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Lições para o Brasil de uma eleição portuguesa

Não era preciso cruzar o Atlântico e ouvir dos principais jornais para constatar a obviedade: O Brasil não está muito interessado no resultado previsível das eleições autárquicas de Portugal. O pleito, em parte equivalente ao que há no Brasil para as eleições municipais, reforçou o PS no poder, frente a um enfraquecimento do PSD, o que levou o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho a renunciar à liderança do partido. O que isto muda na prática para o resto do mundo? Pouco. Qual o espaço que a notícia leva ao ocorrer no mesmo dia do atentado em Las Vegas e da escalada de violência na Catalunha? Os próprios portugueses, que ainda se dividiam entre o clássico Sporting x Porto, tiveram dificuldades em responder.

Mas o que mais chama a atenção nas eleições autárquicas, para alguém como eu, fica longe das principais manchetes, ou do suntuoso palácio do PS na região central de Lisboa em que acompanhei parte do dia da votação. Fica a, segundo o Google Maps (principal meio de transporte em terras lusitanas), preciso 1 km do palácio em que dezenas de jornalistas aguardavam uma palavra do primeiro-ministro, António Costa, que desembarcou com seu motorista em um carro luxuoso. Na tradicional Padaria do Povo, uma cooperativa regada à Sagres, Superbock, bifanas, pregos e outras deliciosas iguarias portuguesas bem menos divulgadas que o bacalhau, o PURP - Partido Unido dos Reformistas e Aposentados, havia combinado de se encontrar para acompanhar a apuração dos votos.

O PURP foi fundado em 2015, após a reunião de aposentados em um grupo de Facebook. Para angariar as 7 mil assinaturas necessárias, o grupo de senhores foi às ruas, e conseguiu ultrapassar a marca em mais de mil, grande parte destas em ambientes universitários. Hoje o partido, que não tem direito as contribuições de campanha, se sustenta com uma verba de €1 mensal por membro. Para a as autárquicas, o PURP gastou apenas €500, estes para financiar algumas bandeiras e os panfletos.

No total, as campanhas para os 309 municípios portugueses custou €38 milhões. O pleito envolve as câmaras municipais, as assembleias, e as juntas de freguesia. Para se ter um efeito de comparação, um candidato à Prefeitura de São Paulo no ano passado tinha a possibilidade legal de gastar até R$ 44 milhões. Parte importante dos €38 milhões em Portugal foram utilizados em comícios e grandes outdoors pelos maiores partidos. Mas nem por isso menores como PURP, que fez sua campanha com um grupo de cinco ou seis idosos caminhando horas por dia no sol de Lisboa, frequentemente em um calor superior aos 30°, ou o Nós, agremiação um pouco maior e com estratégia semelhante, deixaram de ter seus espaços.

Em comum aos grandes e pequenos partidos, uma palavra me chamou atenção: pragmatismo. Enquanto nas eleições municipais do ano passado no Brasil candidaturas menores expressavam-se em temas fora das alçadas do âmbito municipal, e algumas até mesmo do Estado, como uma luta transnacional contra o capital, em Portugal as propostas centram-se em resolver os problemas do dia-a-dia das pessoas. Neste ano, como não poderia deixar de ser, o grande foco foi a habitação. O boom do turismo vem gerando um problema de gentrificação para os portugueses. Em Porto, do ano passado para cá, o aluguel médio de um quarto aumentou 40%, chegando a €270, situação que é ainda pior em Lisboa. Levando em conta que este é um país com um grande número de jovens ainda desempregados, apesar da recuperação econômica, e em que muito aposentados recebem menos de €500 ao mês, a situação se apresenta como urgente, e muitos já estão sendo obrigados a deixar suas atuais casas. Nesta toada, o Airbnb anunciou que na alta temporada de 2017, com relação a do ano passado, seu número de reservas em Portugal aumentou 52%.

As propostas para habitação foram o principal foco na campanha do Bloco de Esquerda, partido importante, mas minoritário no cenário nacional. As ideias passavam por possíveis soluções realistas, que aceitavam a importância do turismo sem demonizar o mesmo. Dentre estas, está, por exemplo, a limitação no número de alojamentos disponíveis para aluguéis de curta duração em cada junta de freguesia, o que limitaria, em tese, a gentrificação, e diluiria o problema. Confesso não fazer ideia se na prática o plano é bom, mas me parece uma proposta sensata, e que tem seu valor a ser debatido.

Para quem trabalhou com fact-checking na última eleição, poucas propostas são mais frustrantes do que as voltadas à “fomento, desenvolvimento, incentivo”, e as demais generalidades afloradas a cada campanha. Por aqui, as pragmáticas propostas envolvem desde a solução para praças específicas, a demandas muito claras como o investimento em programas sociais delimitados. E isso em todas as esferas, passando pelas juntas de freguesia (que podem representar um bom modelo para o Brasil), até ao cargo máximo da presidência da câmara.

Em Portugal, as agremiações já atendem à tendência global de suplantar o espectro direita-esquerda, e as hierarquizações partidárias. Parte importante das siglas mais novas já não utilizam a nomenclatura de partido, e até mesmo o PAN, que tem, por exemplo, um homônimo mexicano, por aqui representa o “Pessoas, Animais e Natureza”, algo como os “verdes”, comuns na Europa. Estes que, demonstram uma evolução importante frente ao limitado espectro “direita-esquerda”, que toma conta de parte das auto intituladas “discussões” e “polêmicas” no Brasil.

Nem tudo são flores. A participação política por aqui é bastante carente, e os questionamentos à classe são os mesmos do Brasil, e de qualquer outro lugar do mundo: “só pensam neles mesmos”, “não ligam para o povo”, “só aparecem para a eleição”. Na própria Padaria do Povo, o PURP sofreu um revés: as três televisões do local estavam ligadas no clássico Sporting x Porto. O governo chegou até mesmo a tentar impedir que partidas fossem realizadas em dias de votação, visando limitar a abstenção, que foi superior a 50%. Eu logo me rendi ao pragmatismo local, peguei uma Sagres e acompanhei o final do modorrento 0x0.

A bandeira da foto foi pintada pela esposa do Fernando à esquerda, que é brasileira de Porto Alegre. PURP é uma das histórias mais interessantes que encontrei neste país

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Pequena exaltação da verdade

A esposa de um influente político, que atualmente cumpre pena, é pega com o equivalente a U$ 20 milhões dentro de caixas em seu carro, que são logo confiscadas pela polícia local. O Ministério Público nacional afirma que investigará o caso. Enquanto isso, uma mulher, segundo quem sua família sofre perseguições, teve cerca de U$10 mil dólares confiscados pelos supostos algozes. O dinheiro era destinado ao tratamento no hospital de sua avó de 100 anos, que não tem seguro. As duas situações aparentemente distintas aconteceram hoje, em uma espécie de Gato de Schrödinger venezuelano.


Lilian Tintori, esposa do opositor Leopoldo López, que atualmente cumpre prisão domiciliar, teve 200 milhões de bolívares confiscados. A informação foi confirmada nesta quarta pelo novo procurador-geral venezuelano, Tarek William Saab. Segundo o mesmo, a polícia científica do país encontrou o dinheiro em quatro caixas de madeira dentro de um carro pertencente à família de López. No câmbio oficial, o valor corresponde a U$$ 20 milhões, enquanto no paralelo, segundo o dolartoday.com, a soma equivale a U$$ 11.400. Tintori postou no Twitter uma foto que mostraria sua avó no hospital, segundo ela, internada há dias sem seguro, e a quem se destinaria o dinheiro.


O procurador-geral Tarek Saab assumiu o cargo após a saída de Luísa Ortega Díaz, dissidente chavista que afirma ter provas de corrupção no governo de Maduro, em especial envolvendo a Odebrecht, e que, por isso, sofreria perseguições na Venezuela. Saab será o principal responsável nas investigações do caso envolvendo Tintori, esta que se notabilizou por denunciar a políticos da região a situação venezuelana. Dentre estes, alguns são acusados de corrupção nas delações da Odebrecht, e um dos mais notáveis, Aécio Neves, é alvo de uma série de inquéritos no Brasil.


As investigações seriam as mesmas caso o vice-presidente venezuelano, Tarek El Aissami, ou o homem forte do chavismo Diosdado Cabello, tivessem eles sido apanhados? Acredito que não. A repercussão na imprensa internacional caso um deles fosse pego teria sido a mesma? Também acredito que não.

A sabedoria prega que a primeira vítima em uma guerra é sempre a verdade. A Venezuela pode não ter chegado a este estágio de confronto, mas há muito a informação já foi vitimada no país. Em situações como estas, infelizmente sabemos bem quem são os mais afetados. E nenhum deles carrega U$ 2 milhões, tampouco U$ 11.400. Seus números são outros: inflação, desemprego, homicídios, escassez… Mas chega, prometi que seria breve.

Tintori. Bem ou mal? Infelizmente, a verdade não há

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O Holocausto e “qualquer coisa que valha”

"Auschwitz, Treblinka, ou qualquer coisa que valha". Foram estas referências que Fernanda Torres utilizou para equivaler uma unidade do sistema prisional brasileiro, em sua coluna “Treblinka”, no jornal Folha de S.Paulo. Com “qualquer coisa que valha” infere-se que a autora acredita serem identificáveis crimes que possam se comparar ao maior que a humanidade cometeu desde que se tem notícias, quando mais de 6 milhões de judeus, negros, romas, homossexuais foram mortos, em essência, meramente por o serem. Mais de 1 milhão foram assassinados somente em Auschwitz. Não, Fernanda, não há “qualquer coisa que valha” ao que os judeus chamam de “Shoá”.


O termo “genocídio” fora cunhado após o Holocausto pelo judeu polonês Raphael Lemkin, justamente no intuito de denominar o pior crime passível de ser cometido pelo homem: “genos”, do grego, algo como tribo, e “cídio”, do latim, matar, portanto, o assassinato de uma tribo. Lemkin conhece bem o crime, já que grande parte de seus familiares foram vítimas da “Shoá”, destino que o mesmo teria, caso não lograsse sua fuga aos Estados Unidos.


Não há “qualquer coisa que valha” ao genocídio perpetrado pelos colonizadores portugueses e espanhóis por séculos na América, exterminando indígenas, sob o pretexto destes serem bárbaros, quando na verdade, os mesmos que o eram, como já apontava Montaigne à época. Como não há equivalência com a diáspora forçada pelos turcos aos armênios, quando grande parte da população preferiu padecer no deserto a enfrentar os genocidas do exército, que chegaram a matar bebês os arremessando à pedras.


E nada se iguala ao regime do Khmer Vermelho, que dentre os genocídios que cometeu no Camboja, matou supostos chans muçulmanos pelo único argumento destes se recusarem a comer carne de porco. Ou aos 100 dias de assombro em Ruanda, em que vizinhos mataram outros, pelos meios mais rudimentares possíveis, meramente por diferenças étnicas em grande parte impostas por um regime imperial. E para não ficar somente nos exemplos mais antigos, a intenção genocida do Grupo Estado Islâmico junto aos yazidis no Monte Sinjar em 2014 não pode ser comparada a nada na história.


Alguns pais judeus contam que, após seus filhos aprenderem na escola sobre o Holocausto, os mesmos perguntavam aflitos pelas razões de tal atrocidade. Como explicar a uma criança que matavam membros de seu grupo pelo mero fato de sê-lo? E a explicação de que jovens, idosos, homens e mulheres foram exterminados pelo simples fato de não pertencerem a uma comunidade, mas a outra, é mais fácil para adultos? Cada um destes crimes demanda suas próprias respostas, não devendo serem comparados a nada. Como os perpetradores foram capazes? Por quais razões ninguém interviu? Qual o castigo merecem os criminosos? “É isto um homem?”, como a histórica obra de Primo Levi busca responder. Estas e outras perguntas sem resposta correta são cabíveis a cada um destes momentos, e, somente a eles.


“Genocídio é um crime cometido com o intuito de destruir, o todo ou uma parte de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, com base na Convenção das Nações Unidas de 1948. Uma das determinações da mesma convenção é “Honrar o legado das vítimas inclui dois compromissos: o de não as esquecer e o de prevenir o risco de genocídios futuros, ambos com o objetivo de criar um mundo pacífico que soube aprender com as lições do passado.” Não esquecer a dimensão do chamado “crime dos crimes”, é, portanto, uma ação vital por parte da determinação das Nações Unidas.


Primo Levi e Elie Wiesel foram dois sobreviventes ao Holocausto, e figuras vitais na missão de preservar as ações do período e “não as esquecer”. Suas obras estão disponíveis até hoje, e podem ser consultadas antes de uma menção ao crime. O legado de Lemkin também pode ser assimilado atualmente, este que dedicou sua vida a denominar o inominável e lutar contra a ocorrência de tal.


É compreensível que uma visita a um presídio brasileiro possa causar profundos impactos sobre as considerações ali refletidas. Prisões estas frequentemente anunciadas como violadoras de direitos humanos em relatórios de organizações internacionais. Mas é necessário um aprofundamento maior sobre os “crimes dos crimes” antes de o equivaler a “qualquer coisa que o valha”.


A era atual, em especial no Brasil, é dotada de um esvaziamento das palavras e designações históricas que as mesmas representam. Uma posição discordante pode servir como base para acusações de apoio ao fascismo, ao nazismo, ao comunismo, ou qualquer outra denominação, carecendo de um contexto histórico como base. As razões deste esvaziamento haverão de serem discutidas ao longo das próximas gerações. No entanto, é sempre importante ressaltar que o jurista e filólogo Raphael Lemkin antes de criar o neologismo que hoje denomina o maior crime que a humanidade pode cometer, o estudou toda uma vida. Isto também não é “qualquer coisa que valha”.

Lemkin. É desta mente brilhante que saiu um dos termos mais banalizados nos dias de hoje. História formidável

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Inconsequência e desinformação explicam apoio a Maduro em 2017

Os noticiários há pelo menos três anos são inundados pelas mesmas considerações sobre a crise na Venezuela: “situação drástica”, “governo insustentável”, “protestos reprimidos da oposição” e cifras sobre inflação, desabastecimento, queda no PIB e outros números para ilustrar o fracasso do governo de Nicolás Maduro. Desta forma, é compreensível que, por outro lado, os defensores do “socialismo na América Latina”, da “Revolução Bolivariana”, e do legado do chavismo para os mais pobres, se aferrem aos mesmos argumentos de 2014. No entanto, na realidade de 2017, a estratégia do que resta de apoio internacional do regime soa como um misto de desinformação e inconsequência.

De fato, o chavismo aproveitou bem o alto valor do petróleo para conseguir importantes investimentos na população mais desfavorecida da Venezuela, aumentando expectativa de vida e o poder de compra dos venezuelanos. Como já foi extensamente propagado nos últimos três anos, a queda no valor do barril, que chegou a custar menos que US$ 30, enquanto nos tempos dourados de Chavéz ultrapassava os US$ 100, foi um baque até hoje irreparável na economia que detém as maiores reservas de petróleo do mundo e exportações que dependem do óleo em 95%.

O lado menos contato da história, e que vem aparecendo gradualmente, é para onde foi outra parte deste dinheiro. A Venezuela, assim como o Brasil, não sofreu somente com a queda do preço internacional de matérias primas, mas também com um assalto aos cofres do Estado com um misto de incompetência, e a prioridade a interesses espúrios. No que a revista Economist classificou como “gangstercracia”, o ex-ministro do orçamento venezuelano Jorge Giordani afirma que dos US$ 1 trilhão que o país conseguiu com a venda do petróleo, US$ 300 bilhões teriam sido desviados. O atual vice-presidente, Tareck El Aissami, é acusado internacionalmente de integrar uma rede do narcotráfico, que contaria com a colaboração de altos funcionários do governo venezuelano. Quem fez a denúncia junto a Giordani foi Hector Navarro, que esteve à frente de cinco ministérios no governo de Chavéz, e que afirma “ladrões não têm ideologia”.

Desta forma, o que não devem pensar os 93% dos venezuelanos que afirmaram em pesquisa não conseguir comprar o que precisam de comida, assim como os cerca de 75% que perderam peso no ano passado ao ouvir a defesa do atual governo por conta de sua prioridade aos mais pobres? A inflação, que deve alcançar os 1000% neste ano, a maior do mundo, consome o poder de compra daqueles que veem este equiparado à década de 50. A mortalidade materna cresceu 66% no último ano, e a infantil 30%, números que para serem divulgados custaram o cargo da ministra da Saúde.

No começo da crise, uma das principais defesas que era feita ao regime foi a da manutenção das liberdades. Como o caso da ministra da Saúde ilustra, e que ficou evidente com o cerceamento aos trabalhos da procuradora-geral Luísa Ortega Díaz, chavista e que chegou a ter seus bens bloqueados por conta da oposição a Maduro, internamente a liberdade não passa de ilusão. A liberdade de imprensa, que de fato ainda é maior do que em históricas guinadas autoritárias na América Latina, foi cerceada nos últimos tempos, em especial com a simbólica ordem de fechamento da CNN.

Liberdade de manifestação, como se sabe, nunca foi o forte do governo de Maduro. Os primeiros protestos foram duramente reprimidos, culminando inclusive com uma série de encarceramentos e até em mortes. No entanto, desde as marchas que se iniciaram em abril deste ano, mais de 100 pessoas já perderam suas vidas em manifestações contra o governo, parte delas vítimas de assassinatos brutais por milícias urbanas. Apenas nos protestos em decorrência da votação pela Assembleia Constituinte, já são contabilizadas ao menos 15 mortes.

A capacidade de restabelecer a ordem democrática por meio da Assembleia, como é defendido por parte dos apoiadores do regime, é uma falácia. As 545 cadeiras em disputa pelo pleito reservavam importantes margens à setores ligados ao governo, inclusive com algumas pessoas podendo escolher por duas vezes seus representantes. A eleição municipal fez com que localidades pequenas tivessem a mesma equivalência das principais cidades, onde o antichavismo é mais forte, em uma violação da paridade do voto (sim, o que não deixa de ocorrer, de certa forma, no sistema eleitoral do EUA). As denúncias de que funcionários públicos foram ameaçados em caso de não comparecimento à votação foram frequentes, assim como as de sanções aos beneficiários de programas do governo que não o fizessem. Por fim, Diosdado Cabello, conhecido como número dois do chavismo, acusado de corrupção e envolvimento com o narcotráfico, Cilia Flores, esposa de Maduro, e Delcy Rodriguez, ministra das relações exteriores do governo, terminaram eleitos.

Diante do atual quadro do regime, não passa de uma retórica vazia as expressões que acusam uma suposta “direita” de arquitetar contra Maduro. Quanto às acusações norte-americanas de ingerência, o país segue comprando quase metade do petróleo exportado pelos venezuelanos, sendo sede de importantes operações da estatal PSVDA no ramo. Sanções contra o país dificilmente surtiriam efeito, já que reforçariam os argumentos “anti-imperialistas” de Maduro para sua base, e que buscaria outros parceiros, como a já importantíssima China e a Rússia, que passou a exercer mais influência após acordos venezuelanos com sua estatal petrolífera, a Rosneft. Por outro lado, os norte-americanos neste caso teriam pouco a ganhar, sendo obrigados a buscarem óleo em áreas mais onerosas e provavelmente assistindo a um aumento no preço do barril no cenário global.

Sanções contra a alta cúpula do regime, como El Aissami, que já conta com embargos norte-americanos, são um caminho responsável, e que pode surtir efeito. No entanto, nada além de forçar o regime a ir, de fato, à mesa de negociações pode representar o melhor aos interesses venezuelanos. Enquanto Maduro anunciava suas intenções de diálogo, como quando contou com a mediação do Vaticano, o regime se desviava cada vez mais do viés democrático. Desde 2014 presos políticos foram feitos na Venezuela, eleições marcadas foram adiadas sem prazo, um referendo revogatório previsto na constituição foi ignorado, e no auge do autoritarismo, o Tribunal Supremo assumiu os poderes da Assembleia Nacional, de maioria opositora, em um golpe que remonta ao século XX na América Latina e que a pressão internacional foi vital para o regime voltar atrás.

A instituição da Assembleia Constituinte representa um importante marco nas rupturas do processo democrático venezuelano que deve ser repudiado internacionalmente, tendo em vista minimizar suas consequências, que variam desde a instauração de uma ditadura plena à uma guerra civil. A inconsequência da ala petista que domina o partido com mais apoiadores no Brasil é lamentável, baseada em argumentos que não condizem com a realidade e a defesa de um regime transgressor do viés democrático. É fato que, somente os próprios venezuelanos e o diálogo poderão resolver a grave crise pela qual passa o país, no entanto, a mediação externa se faz necessária. Criticar atos de um regime que atenta à ordem democrática não faz ninguém menos aferrado a uma ideologia, assim como fizeram diversos respeitados intelectuais de esquerda e a procurado Ortega Diaz. Um posicionamento mais embasado para além de chavões distantes da realidade e dedinhos no bigode para cantar “tô com Maduro” é necessário neste momento em que sim, a Venezuela pode ter dado um passo sem volta rumo ao autoritarismo.

Maduro, longe demais no 30/07


quinta-feira, 27 de julho de 2017

Papo de Boteco no VPC

Uma das melhores iniciativas recentes na cobertura da mídia brasileira em assuntos mundiais foi a criação do programa GloboNews Internacional. Comandado pelo excelente Dony De Nuccio, e com comentários de Marcelo Lins, Ariel Palacios e Guga Chacra (que inspira parte importante do que está presente aqui), a segunda parte do programa é sempre composta pelo “Papo de Boteco”. Na ocasião, cada um dos participantes traz uma curiosidade que de preferência tenha tido a menor repercussão possível no noticiário.

Como entusiasta de questões pouco abordadas, decidi repetir aqui a ideia. Desta forma, trouxe informações que podem ser simplesmente curiosas, como a da eleição da Libéria em 2005, ou traçar tendências de prioridades globais, de acordo com a interpretação de cada um. Tentei fazer o menor juízo de valor possível, o que é muito complicado. Alguns dados, como os relativos a homicídios e terrorismo, são muito difíceis de se ter exatidão, portanto, é muito possível que variem conforme a fonte. Confira:

-Emanuel Macron, além de presidente francês, também é monarca. O cargo de co-príncipe de Andorra, um pequeno país entre a França e a Espanha, é destinado ao presidente da França.
-Um melhor jogador do mundo da FIFA já disputou uma eleição presidencial contra uma Nobel da Paz. O caso aconteceu em 2005 na Libéria, quando George Weah, melhor do mundo em 95, perdeu a eleição para Ellen Johnson Sirleaf, Nobel em 2011.
-O maior comprador de armas no mercado mundial é a Índia, seguida pela Arábia Saudita.
-Os 11 países com maiores superfícies marítimas, e, portanto, com direito de exploração econômica são, respectivamente: EUA, França, Austrália, Rússia, Reino Unido, Indonésia, Canadá, Japão, Nova Zelândia, Chile e Brasil. As superfícies abrangem territórios ultramarinos, como Guam no caso dos EUA e a Guina Francesa.

-O país que terá o maior crescimento do PIB neste ano é a Etiópia, com 8,3%. Dos outros dez entre os maiores crescimentos, 8 ficam na Ásia, e o vizinho à Etiópia Djibouti fica em sexto.
-Bangkok é a cidade que mais recebeu turistas em 2016 (21,5 milhões), quase o dobro da quinta colocada, Nova York (12,8 milhões). Londres, Paris e Dubai seguem a capital tailandesa.
-O Brasil é o único país das Américas com embaixadas em ambas Coreias.
-Trump foi o primeiro presidente norte-americano a fazer sua viagem inaugural para o Oriente Médio, ao visitar a Arábia Saudita. Canadá com oito vezes, e México com quatro, são os destinos mais habituais.
-Em 2016, morte por opiáceos foi a principal causa de morte entre pessoas de até 50 anos de idade nos EUA. Cerca de 60 mil perderam a vida por conta de overdoses por produtos como a heroína e o fentanil.
-Apenas cinco países têm, de fato, um PIB maior do que a Califórnia: Reino Unido, Alemanha, Japão, China e os EUA.
-Na China 786 milhões de pessoas, quase quatro vezes a população do Brasil, viviam em extrema pobreza em 1990, número que passou a 25 milhões em 2013.
-Nova Orleans tem um índice de homicídios a cada 100 mil habitantes de 62,1. O país recorde no quesito é Honduras, com 68,4. Em Detroit o nível é de 35,9, próximo ao de El Salvador, que é 39,9. Em Miami é 23,7, enquanto em São Paulo, gira entorno de 11.
-O principal produto de exportação do Afeganistão é o ópio, amplamente consumido no vizinho Irã. A papoula, planta da qual se origina a droga, também é base para a heroína, e o Afeganistão tem amplas terras de cultivo da mesma, que pode ter como destino a Europa.
-A população mundial de judeus hoje é de 13,5 milhões de pessoas. Cerca de 5,7 milhões vivem em Israel, e 5,3 milhões nos EUA. Em sequência, França, Reino Unido e Rússia. Em 1939 o grupo somava mais de 16 milhões de pessoas.
-O presidente do Líbano obrigatoriamente tem de ser cristão maronita. O primeiro-ministro por conta do mesmo acordo deve ser muçulmano sunita, líder do parlamento, xiita.
-O Brasil por um período de tempo chegou a ser o único país do mundo a ter um presidente libanês. É que Michel Temer tem nacionalidade libanesa, e por conta de imbróglios políticos, o Líbano ficou por quase dois anos sem presidente.
-As atuais prefeitas de Ramalá e Belém, ambas cidades palestinas na Cisjordânia, são cristãs.
-No Irã é extremamente raro que mulheres usem burca (que cobre todo o corpo). No Afeganistão, inclusive alguns maridos dizem desejar que suas esposas fossem liberais como as iranianas.
-O México é o país em que mais se decapita no mundo. 50% dos homicídios no país se concentram em três estados: Guerrero, Michoacan e Sinaloa.
-De 2000 a 2016, 2,6 milhões de pessoas foram mortas na América Latina. É aproximadamente a população do Uruguai.
-Dos dez maiores campos de refugiados no mundo, sete ficam na África. O principal relacionado à crise síria, Zaatari, é o quinto. O maior é Dadaab, no Quênia, relativo aos conflitos na Somália. Os dados são de 2016, e é possível que a tendência mude, com refugiados do Sudão do Sul criando grandes aglomerações, e com Dadaab diminuindo seu tamanho por decisões do governo queniano.
-Quatro países concentram cerca de 71% dos atentados terroristas no mundo, sendo o Iraque o líder, além de Afeganistão, Síria e Somália. 2,5% dos ataques foi realizado no Ocidente.
-Os ataques terroristas com ao menos uma morte na Europa chegaram a quase 300 em anos na década de 70, enquanto ficaram próximos de 20 em 2015. Desde 95 o número não passa de 100.

sábado, 15 de julho de 2017

A verdadeira "Náusea" ao Governo Temer

Após o fim do primeiro tempo da partida entre São Paulo e Atlético Goianiense, coloquei no Jornal Nacional e assisti à cobertura da votação sobre o prosseguimento da denúncia sobre Temer na CCJ da Câmara. A sofrível atuação do Tricolor e o resultado da comissão me fizeram brincar que eu “estaria me sentindo preso na obra ‘A Náusea’, de Sartre”. Mas uma entrevista com bem menos repercussão do que a votação na Câmara, e ofuscada por ser no dia seguinte à condenação de Lula, me fez sentir ainda pior.

Ao ser questionado sobre uma possível exoneração do cargo de ministro da Saúde, Ricardo de Barros afirmou que é “um soldado do presidente”, e que estaria disponível para ajudar seu aliado. Barros, eleito deputado pelo PP do Paraná, poderia assim voltar à Câmara, garantindo mais um voto no plenário contra a denúncia de Temer por corrupção passiva. Desta forma, o responsável máximo pela Saúde no Brasil abdicaria de seu cargo para votar contra o prosseguimento de uma denúncia, que na palavra do procurador geral da República, Rodrigo Janot, contém uma “prova satânica”. Qualquer falante do português que tenha ouvido o “tem que continuar isso ai” não tem grandes razões para duvidar disso.

O custo real de uma troca em um ministério como a Saúde é incomensurável, principalmente tendo em vista que o “soldado” Barros, ainda poderia ter de votar de maneira contrária a ao menos outras duas denúncias que devem seguir à primeira, por corrupção passiva. No entanto, o preço do apoio ao presidente, segundo levantamento do Reuters, ficou em R$ 1,5 bilhão apenas no mês de junho, frente a R$ 959 milhões no período anterior, para emendas parlamentares, conhecidas moedas de troca em Brasília.

Notem que diferencio “preço” de “custo”. O preço neste caso fica em quase R$ 600 milhões, mas o custo social provavelmente é maior. O orçamento para ciências e inovação no Brasil, que vem padecendo de recursos, é de R$ 2,5 bilhões neste ano. No mundo atual é quase impossível vislumbrar um real desenvolvimento de uma nação sem investir em tecnologias e inovação. O cenário é dramático e bem explicado nesta entrevista.

No caso da Saúde, as trocas no comando costumam ter efeitos em substituir cargos importantes e na não continuidade de vitais políticas públicas. Recentemente conversei com um dos principais representantes do Ministério, que me passou ótima impressão. De currículo inquestionável, e no cargo desde janeiro deste ano, anotava as demandas e sugestões dos presentes em uma plateia composta por muitos funcionários municipais da saúde, e explicava com franqueza as condições de sua pasta. Devido à institucionalidade, o perguntei sobre a “efemeridade do cargo”, nada mais do que o troca-troca por conta da politicagem. Sua resposta me agradou bastante: “É importante que as políticas públicas sejam de Estado, não de Governo, para que as pessoas não sejam mais importantes do que as políticas, e que estas tenham sua efetividade garantida”.

Pessoas mais importantes do que a política. É disso que se tratou até agora o governo Temer. Em outra pasta importantíssima, a Justiça, o Planalto foi ainda mais longe ao defender os interesses do presidente em detrimento dos da nação. Osmar Serraglio foi substituído por Torquato Jardim em grande parte por conta da articulação deste junto ao TSE, tribunal do qual já foi presidente, e onde Temer viria a ser julgado no histórico “velório” do qual três não quiseram levar o caixão. A situação criou um problema inesperado para o Planalto, já que Serraglio recusou a pasta da Transparência, retomando assim seu cargo na Câmara. Sua vaga era ocupada justamente pelo suplente Rodrigo Rocha Loures, o “homem da mala”, que perderia assim seu foro privilegiado, podendo ir preso logo e deixando aberta a possibilidade de uma delação. O desespero no governo levou a uma série de ofertas ministeriais aos deputados do PMDB do Paraná, inclusive na Saúde.

A possibilidade do PSDB desembarcar do governo coloca em dúvida a continuidade nos trabalhos de todas as pastas que têm o partido à frente. Uma delas é o Itamaraty, comandada por Aloysio Nunes. Em caso de mais uma troca, o Ministério das Relações Exteriores terá seu quarto comandante em menos de três anos. Aqueles que acompanham a pasta mais de perto vêm indicando uma racha em três frentes. Uma composta pelos diplomatas de carreira e tradicionalmente respeitada, nesta que é uma das chancelarias mais honradas do mundo, viria batendo de frente com a ala política comandada por Nunes. Por outro lado, o Planalto quer adotar uma postura mais resguardada, tendo em vista a instabilidade do governo.

Ter políticos à frente de pastas importantes não representa um problema. No caso das chancelarias, hoje uma das que vem mais se destacando no cenário internacional por sua postura sensata é a alemã, comandada por Sigmar Gabriel. O cargo tradicionalmente é ocupado pelo segundo líder mais votado que irá compor a coalizão, no caso de Gabriel, líder do SPD, que comanda o país junto à CDU de Merkel. O Foreing Office britânico é normalmente comandado por uma figura pública relevante, hoje o ex-prefeito de Londres Boris Johnson. Na gestão de Obama, os senadores John Kerry e Hillary Clinton assumiram o Departamento de Estado.

Mas aqui, mais do que a realização de escolhas “técnicas” ou não, o que estamos assistindo é o uso dos cargos mais relevantes para a população com o fim espúrio de dar sustentabilidade a um governo fortemente rechaçado. O custo das trocas de cargos e a falta de continuidade em políticas públicas é impossível de ser medido de fato, e provavelmente é mais impactante do que as enormes somas desviadas do erário por corrupção. É nestes casos que devemos concentrar a “náusea” que vem tomando conta do país desde o começo da crise. 

                                                FOTO: DIDA MACHADO, ESTADÃO
                              Renunciar a governar para os brasileiros já ocorreu há algum tempo

terça-feira, 13 de junho de 2017

Na China, já é futuro

Há uma década, tema comum em muitas rodas de conversa era o crescimento chinês. A necessidade de se aprender mandarim, a língua do futuro (nesta época, já não mais conhecida como “chinês”), misturava-se às perspectivas de que logo a China tomaria o lugar dos EUA como a grande potência hegemônica mundial. Nos últimos meses, as expressões ganharam importantes fundos de verdade.

O mandarim dificilmente será uma língua universal. O idioma é falado por grande parte dos chineses, mas o país com quase um quarto da população mundial abriga uma série de outras línguas que contam com milhões de falantes. Além do mais, o francês no começo do século XX e o inglês pós Segunda Guerra Mundial tiveram importantes elementos difusores do chamado soft power. Traduzido como “poder brando”, o termo designa influências importantes exercidas por países, mas sem o emprego da força. No caso da França, a Belle Époque foi um grande difusor do seu idioma, assim como vastas obras culturais, enquanto os norte-americanos têm Hollywood, o que já é mais do que grande parte dos países. No caso chinês, mesmo quando a nação passar a ser a maior economia do mundo é complicado vislumbrar elementos que remetam ao complicado mandarim pelo resto do globo. Afinal de contas, mesmo os filmes de Jackie Chan eram feitos em Hollywood.

Mas em outras áreas, o poder chinês já chegou. A decisão do Panamá nesta semana de se aliar à China, em detrimento de sua aliança tradicional com Taiwan, foi um destes exemplos. Os panamenhos passaram a aceitar a política da Uma China, reconhecendo o governo de Taipei como parte do território chinês. Taiwan reclamou, e disse que os latinos estavam abandonando uma tradicional aliança por conta do poder de influência da segunda maior economia do mundo. E provavelmente estavam mesmo, já que a China corresponde hoje por um quinto dos produtos que passam pelo Canal do país, grande fonte de ingressos para este. E o que Taiwan pode fazer quanto a isso? Esta foi uma aplicação clara e manifesta do hard power.

Outros planos bem mais ousados expressam as ambições chinesas, e o maior deles é a chamada Nova Rota da Seda. O plano prevê investimentos de infraestrutura estimados na ordem de até US$ 1,3 trilhão de dólares, quase o PIB brasileiro, em 65 países. A intenção é interligar Europa, África, Oriente Médio e Ásia, de acordo com os interesses da China, que passaria a não depender, por exemplo, de rivais regionais como a Índia e a Rússia para escoar parte de sua produção. A ideia sofre com críticas de ambientalistas e de comunidades locais, que temem que o projeto, sem precedentes, não tome as devidas precauções.

Em contrapartida às críticas ambientais com suas investidas no exterior, a China toma vanguarda no desenvolvimento de energias limpas, reforçada após o anúncio de Donald Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris. A Usina Hidrelétrica de Três Gargantas, a maior do mundo, é um dos empreendimentos que demonstram o potencial chinês para investir em fontes renováveis. O país tem a maior matriz hidrelétrica do mundo e é líder na produção de painéis solares.

Minhas referências nacionais e internacionais em tecnologia, Ronaldo Lemos e Thomas Friedman respectivamente, fizeram questão de em suas colunas na última semana de destacar a evolução chinesa nas formas de pagamento. Ambos relataram que, nas principais cidades do país, já é difícil encontrar transações que aceitam dinheiro, tendo este sido substituído por QR codes, que já descontam o valor diretamente na conta do cliente. O futuro já chegou à terra de Confúcio.

Em 2001, logo ao entrar na OMC, a China era responsável por 50% do PIB dos BRIC. Hoje este valor já corresponde a dois terços. A nação foi a única a cumprir as metas de crescimento esperadas dos quatro países em 2003, quando começou o auge das expectativas com os gigantes em desenvolvimento. Brasil e Rússia tiveram importantes recessões, em grande parte derivada da queda do preço das commodities. A Índia conseguiu diversificar sua economia e chegou a crescer mais que a China em 2016, mas fica aquém das reformas prometidas com a ascensão de Narendra Modi ao poder, em 2014.

A China evitou entrar intensamente em regiões de disputas complexas e tradicionais por influência, como o Oriente Médio, e estreitou seus laços com países diversos, perpassando do Sudão à Nicarágua. Membra permanente do Conselho de Segurança da ONU, portanto, com poder de veto, a postura pouco combativa dos chineses lhe deu a vantagem de não ter de se engajar firmemente em conflitos espinhosos como Síria e a Ucrânia, e ainda assim tem papel decisivo sobre estes, contando com uma importante margem para negociar de acordo com seus interesses.

No primeiro Fórum Econômico de Davos após a eleição de Trump, o presidente chinês, Xi Jinping, apresentou seu país como um defensor da globalização e do livre comércio, sinalizando a intenção de expandir sua influência. Um dos históricos conflitos entre China e EUA é pela prevalência no Pacífico, em especial no que Pequim considera como Mar da China Meridional. No ano passado, a Corte Internacional de Haia reconheceu um pedaço da região, pela qual passa uma parcela cada vez maior do PIB global, como parte das Filipinas, aliadas dos EUA de longa data.

Duterte, presidente eleito das Filipinas no ano passado, passou a limpo esta relação. Como uma das principais plataformas de campanha, o filipino adotou um discurso contra as drogas, que previa a execução de usuários e traficantes. Nos primeiros meses de mandato, o número de mortos chegou a 7 mil, direta e indiretamente, chamando a atenção de grupos de direitos humanos. As críticas de Obama levaram Duterte a xingar o presidente norte-americano, deixando a relação entre os dois países em um dos piores patamares históricos. A China observou silenciosa a situação, e recebeu de muito bom grado quando o filipino anunciou uma guinada na cooperação com Pequim, em um afastamento de Washington.

Deixar direitos humanos de lado em detrimento da influência geopolítica não é exclusividade da relação Pequim-Manila. No Sudão, a China tem como grande aliado o ditador Omar Al-Bashir, condenado por crimes contra a humanidade e frequentemente acusado de genocídio, mas responsável por vastos campos de petróleo. O futuro chegou. Mas como em Black Mirror, não precisa ser sinônimo de comemoração.
                                                       Autor desconhecido, mas valor inalterado 

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Trump: Um fósforo na mão e pouca ideia na cabeça

“O fim estava chegando. Se Hillary tivesse sido eleita, teria acontecido em um período mais longo, de forma mais suave. Mas com a chegada de Trump, o fim da pax americana é agora. Lamento dizer isso, mas também facilita o surgimento de guerras.”, afirmou o presidente da agência de classificação de risco político Eurasia, Ian Bremmer, no programa Milênio da Globo News no começo deste ano.

Em pouco mais de quatro meses de mandato, Trump colocou os EUA em risco de um confronto direto com a Rússia na Síria. Aumentou as tensões com a Coreia do Norte, e pagou para ver até onde o regime seria capaz de ir. Criou alarme na China com sua política agressiva ao país, instando o temor de um conflito no Mar da China Meridional. Tensões que já existiam, mas que foram aumentadas exponencialmente pela postura do presidente.

Outra tensão hoje é a chamada Guerra Fria do Oriente Médio. No dito equilíbrio vestfáliano, base para as formações dos atuais estados nacionais, a disputa por influência por potências crescentes na região em determinado momento acabaria por desencadear em confrontos. Irã e Arábia Saudita, em um jogo de soma zero, no qual um dos dois necessariamente deve perder espaço para o outro ganhar, vêm travando uma série de conflitos por procuração na região. No meio das duas grandes potencias, o Catar vinha cada vez aumentando sua influência, em um meio termo entre ambos os lados.

O Catar é aliado do Irã, mas sedia a principal base área dos EUA no Oriente Médio. O país faz parte do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), que reúne os principais aliados árabes dos norte-americanos, enquanto apoia o Hamas, grupo considerado terrorista pelos EUA. O Catar abrigou o líder do grupo Khaled Meshal, enquanto o Irã havia se afastado dos islamistas por conta destes terem traído o governo de Bashar Al-Assad, apoiando milícias sunitas na luta contra o ditador, grande aliado de Teerã. O Catar, assim como os países do CCG também apoiou milícias para a derrubada de Assad. É possível traçar dois eixos, sobretudo liderados por Irã e Arábia Saudita, enquanto o Catar fica no meio do caminho. Uma hora não iria acabar bem.

                                                Fácil de entender não é, mas vai uma ajuda

Enquanto se equilibrava entre as principais potências, os catarianos expandiam sua influência. De universidades a companhias áreas, o Catar passou a ser uma marca global. No Ocidente a história culminou com a escolha da nação para ser sede da Copa do Mundo de 2022, a primeira em um país de maioria muçulmana. Já entre os árabes, a força dos catarianos é evidenciada pela rede de comunicação Al Jazeera. O grupo é muito influente, tendo sido um dos catalisadores dos protestos durante a Primavera Árabe.

Em uma política como a de Obama, era possível que os impasses durassem até mesmo décadas antes de algum país tomar uma decisão mais radical. Afinal de contas, uma escalada das tensões pode causar danos, sobretudo econômicos, a todos os envolvidos, o que já ficou latente com a queda nas bolsas de países árabes nesta segunda. Obama tentou uma aproximação com o Irã, obtendo como grande êxito o Acordo Nuclear. A postura não agradou os sauditas. Em contrapartida o democrata não escolheu um lado em detrimento do outro, e, com pragmatismo, seguiu obrigações históricas da relação entre sauditas e norte-americanos. Obama não questionou de maneira efusiva as violações de direitos humanos no país, e recuou ao tentar cobrar os sauditas por conta da relação destes com o 11 de setembro, ataque no qual 15 dos 19 terroristas tinham origem no país.

Já Trump logo em sua primeira viagem traçou que o Irã seria seu inimigo no Oriente Médio, nação da qual já havia tentado barrar seus cidadãos de entrarem nos EUA por duas vezes. Acusou o país de patrocinar o terrorismo, e reforçou os laços com os sauditas, que haviam se desgastado com Obama. Acertou a venda de US$ 110 bilhões em armamentos que devem ter como destino conflitos na região, ou o aumento do poder de dissuasão saudita. A outro aliado, o ditador do Egito, Abdel Fatah Al-Sisi, reafirmou apoio.

Sisi tem como grande inimigo interno a Irmandade Muçulmana, a quem considera terrorista. A entidade islamista tem seguidores em praticamente toda a população muçulmana sunita. A Irmandade foi a única agremiação a vencer uma eleição democrática na história do Egito moderno, com Mohamed Morsi em 2012. Morsi foi condenado à morte, assim como outros líderes relevantes do grupo, por conta das acusações de terrorismo, apesar de não ter sua sentença cumprida. Por conta da boa relação com Sisi, Trump já demonstrou interesse em colocar a Irmandade na lista de grupos terroristas dos EUA, ao lado da Al Qaeda e do Daesh. Irã e Catar são dois grandes aliados da Irmandade Muçulmana.

A postura de Trump é a principal justificativa para os cortes das relações por cinco países árabes com o Catar nesta segunda-feira. A pequena nação, que depende em cerca de 90% de seus alimentos de importações, destas 40% oriundas da Arábia Saudita, sua única fronteira terrestre, ficou encurralada com a decisão de Bahrein, Egito, Iêmen, Emirados Árabes Unidos e dos próprios sauditas. Estimulados pelo tom belicista do presidente dos EUA, estas nações tomam uma atitude que coloca ainda mais combustível no já inflamado Oriente Médio.

As consequências de mais tensões nesta região são imprevisíveis. É improvável que o Catar entre em confronto militar direto com algum dos países que cortaram suas relações com este. Mas não é possível afirmar que o Irã, agora ameaçado, não tentará atacar em outros terrenos. Além de Síria, Iraque e Iêmen, conflitos já deflagrados em grande parte pelo envolvimento iraniano, outro país pode ser alvo de importantes tensões. O Bahrein, que vem enfrentando protestos desde a Primavera Árabe da maioria xiita, pode ter a ditadura sunita dos Al-Khalifa contestada a qualquer momento. Trump não tem culpa pelos barris de pólvora mundo a fora. Mas indica não ter medo de acender nenhum fósforo.
                                                         Em termos gerais, divide-se assim