terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Brasil não virou uma Venezuela, mas criou algumas

Durante o governo Dilma, não era incomum acusações de que os petistas estivessem tentando transformar o Brasil em “uma Venezuela”. A crise no país vizinho já se arrastava há algum tempo nesta época, e determinados setores temiam que esta pudesse se repetir aqui. E em partes, se repetiu como nos mostram as tensões no Espírito Santo e no Rio de Janeiro envolvendo, sobretudo, a segurança pública.

A Venezuela conta com as maiores reservas de petróleo do mundo. Os hidrocarbonetos representam 95% das exportações do país, e correspondem a cerca de 25% de seu PIB. Quando o barril de petróleo chegou próximo aos 150 dólares, o governo chavista aumentou exponencialmente os gastos públicos. Com a queda no valor da commoditie, que chegou a custar menos de 30 dólares em 2016, os venezuelanos passaram a conviver com uma crise que se alastra até hoje. Índices como a ausência de 70% dos produtos em supermercados e a maior inflação do mundo marcaram a gravidade da situação. A violência se alastrou, levando Caracas ao posto de cidade mais violenta da Terra, com 119 homicídios a cada 100 mil habitantes em 2015.

Em 2017, o posto de município mais perigoso poderia ser tomado por alguma cidade do Espírito Santo, em caso de prolongamento da crise da segurança pública. Em uma semana no Estado, 121 pessoas foram mortas, número que supera mais de 90 países em um ano inteiro. Estima-se que o Espirito Santo, segundo maior beneficiário dos royalties do petróleo, tenha sofrido uma queda recente no PIB de 19%, situação que se agravou por conta da tragédia envolvendo a Samarco.

No Rio de Janeiro, grande receptor dos fundos oriundos do petróleo, a queda estimada no PIB foi de 7%, mas em determinadas cidades a situação é bem mais grave. Em 2012, com o barril ainda em alta, a “Capital Nacional do Petróleo”, Macaé (RJ), recebeu repasses do governo federal de cerca de 605 milhões de reais, destes quase 90% relativos aos royalties. Em 2016, os recursos ficaram entorno de 266 milhões, menos da metade do recebido quatro anos atrás. Campos dos Goytacazes (RJ), que conta com cerca de 500 mil habitantes, mas graças aos royalties é um dos principais beneficiários de recursos da União, recebeu desta cerca de 1,625 bilhão em 2012, com 82% oriundos dos royalties. Em 2016 os royalties representaram aproximadamente 352 milhões para a cidade, pouco mais de 20% de quatro anos atrás.

Apesar de ter parte importante de sua economia centrada no turismo, Cabo Frio (RJ) sentiu o impacto da queda acentuada no preço do barril. Em 2012, 80% dos recursos federais provinham dos royalties, uma quantia de aproximadamente 318 milhões de reais. Em 2016, o governo repassou entorno de 82 milhões pela commoditie. Mesmo que a participações dos royalties nas transferências para o município tenha caído substancialmente no período, certamente a queda teve grande impacto no orçamento da cidade com menos de 200 mil habitantes.

A grave crise levou ao desemprego. Cerca de 20% dos postos de trabalho fechados no Brasil foram no Rio de Janeiro. A capital do Estado registrou o maior número de novos desempregados em 2016. Além da situação quantitativa, um percurso ao redor do Rio de Janeiro apresenta cenas dignas do Cinturão da Ferrugem nos Estados Unidos, por exemplo, em Itaboraí (RJ), que seria uma das grandes beneficiadas com os royalties, mas que conta hoje com uma “manada de elefantes brancos”, como um grande shopping sem movimento e prédios abandonados.

Assim como na Venezuela, o componente de crise econômica e desemprego gerou um aumento na violência. Em média, em todo o estado do Rio de Janeiro 16 pessoas são assassinadas por dia. No ranking mundial encabeçado por Caracas, que leva em conta homicídios em cidades com mais de 300 mil habitantes, figuram Vitória (ES) na 31º posição e Campos dos Goytacazes (RJ) na 39º, com 42 e 36 homicídios a cada 100 mil habitantes respectivamente.


A lista de países produtores de petróleo no mundo abrange situações bem distintas para continuar sendo reproduzida a ideia de “maldição do ouro negro”. Em nações como Venezuela e Angola, a corrupção e a incompetência generalizaram por todo território a crise oriunda pela queda do preço do barril. No Brasil, país que depende muito menos de um preço alto da commoditie para equilibrar as contas, a má distribuição do pacto federativo gerou um colapso para dois estados, que se veem em falência, e sem garantir sequer a segurança da população. No caso do Espírito Santo, a falta de reajuste salarial deixou os policiais militares com um dos menores salários do país, enquanto no Rio de Janeiro, que não figura entre os melhores ordenados para a categoria, a falta de pagamentos há meses gerou a crise. A propósito, os maiores salários para estes profissionais estão no Distrito Federal, onde o “efeito dominó” da greve não ameaça chegar. Ali, nada de Venezuela. Nem mesmo para se pronunciar sobre a crise no país vizinho.

Situação em Vitória (ES) se descontrolou com greve, mas já não era tranquila /FOTO: (Paulo Whitaker/Reuters)

sábado, 4 de fevereiro de 2017

A "Recessão Geopolítica" na África será uma "marolinha"?

“Recessão geopolítica” foi o termo utilizado pela agência de classificação de risco político Eurasia para definir 2017. Assim como os ciclos econômicos apresentam recessões, a geopolítica a partir desta ideia não seria sempre progressiva, e estaríamos em um momento de retrocesso, não visto desde o fim da Segunda Guerra. Os princípios que moldaram a atual Ordem Mundial, como o livre-comércio, as alianças multilaterais, as organizações internacionais, e a expansão da democracia e dos direitos humanos, não estiveram tão em tanto risco desde 1945.

Dois fenômenos são em grande parte os responsáveis pela ideia de “geopolítica em recessão”: Trump e Brexit. Com o segundo, a União Europeia perdeu sua segunda maior economia, viu movimentos eurocéticos se proliferarem por seus países, e experimenta o momento de maior risco do projeto europeu, principal caso de sucesso de uma aliança multilateral. Com Trump, o livre-comércio se vê cada vez mais ameaçado, simbolizado com a rejeição à Parceria do Pacífico e as provocações ao NAFTA. A ONU sofreu ameaças de corte de financiamentos, e a OTAN, chamada de obsoleta pelo presidente, corre mais riscos do que nunca. O conceito de “American First” e os primeiros dias de mandato são boas mostras de que Trump não focará na expansão da democracia e dos direitos humanos.

Outra organização internacional que vem passando por maus momentos é o Tribunal Penal Internacional (TPI). A fragilidade da instituição se dá por conta das ameaças de boicote e até mesmo abandono da Corte por parte de países africanos, que acreditam sofrer perseguição do órgão. A grande maioria dos condenados até hoje pelo TPI são de origem africana, enquanto crimes de guerra em variados países, que vão desde a Colômbia até à Palestina estão sem veredictos.

A perseguição que os países da África acreditam sofrer por parte do TPI é uma das razões que explicam a relevância que teve a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, em maio de 2016. A prisão perpétua decretada ao ditador foi o primeiro caso de um chefe de Estado condenado em outro país dentro do continente africano, no caso, Senegal. A sentença foi expedida pelo tribunal africano extraordinário, criado pela União Africana (UA), e é vista como uma contraposição do continente ao passado colonial e ao paternalismo, além de estabelecer precedentes para que outros líderes possam ser julgados na própria África.

A própria UA é outra prova da força que os órgãos internacionais vêm conseguindo estabelecer no continente. Nesta semana, o Marrocos, único país do continente que não fazia parte da União, anunciou que voltará a ingressar o grupo. Os marroquinos ficaram de fora por 33 anos da UA, por conta da presença da região separatista do Saara Ocidental no órgão, que é o único organismo internacional a reconhecer a independência do território. Outro importante fator foi a sucessão no cargo de presidente da UA, até então ocupado por Robert Mugabe, o ditador zimbabuano desde 1980, e que tenta a reeleição com seus 93 anos.

A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A ausência de Barrow o impediu, por exemplo, de acompanhar o funeral de seu filho de sete anos, morto por uma mordida de cachorro no período.

O cenário que se desenhava para Gâmbia era de uma sangrenta guerra civil. Os turistas estrangeiros foram evacuados do país, que via suas ruas desertas cercadas de apreensão. A comunidade internacional, focada com as repercussões da vitória de Trump, pouco fez além de condenar a insistência de Jammeh. Neste cenário, e com respaldo da UA, a CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. Barrow tomou posse na embaixada de Gâmbia em Dakar, e foi poucos dias depois para Banjul, levando ao festejo uma multidão que o aguardava no aeroporto.

A transição democrática em Gâmbia, sem nenhuma gota de sangue derramado, é uma das grandes histórias deste 2017 que já começou tão turbulento. Em meio à “recessão geopolítica”, uma organização de países africanos desconhecida de grande parte do mundo conseguiu evitar uma trágica guerra civil. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. Mas enquanto as antigas metrópoles estão se voltando cada vez mais para dentro, os africanos entenderam o significado de “juntos somos mais fortes”.
                                         Países da CEEAO. De pouco conhecida a vital para a paz

Excelente fonte de informação sobre o que acontece de bom na região (espanhol): http://elpais.com/agr/africa_no_es_un_pais/a/