A grande parcela do mundo que se deu ao luxo de ficar
surpresa toma sua rotina como direito adquirido e inviolável. Trabalhar, se
encontrar com os amigos nas folgas, ir ao mercado, para uma importante parcela
da população são atos tão triviais quanto respirar. Quando uma quarentena rompe
com isso, a fragilidade se mostra. Um médico em Aleppo antes de guerra civil da
Síria, ou um advogado em Caracas pré-colapso venezuelano, também tinham suas
rotinas, e as seguiam como se fossem invioláveis até o dia em que tudo mudou. A crise nos aproxima.
Porém, diferente de conflitos, quando é relativamente
simples encontrar responsáveis, o drama causado pelo vírus deixa tudo menos
nítido. Goffredo Buttini escreveu
no Corriere Della Serra “Como um 11 de setembro dentro nós”. No texto, publicado
por um diário de Milão, principal cidade da Lombardia, hoje epicentro da doença
que: “O inimigo, o terrorista, o veículo da morte pode ser nosso irmão, nosso
filho”. Além de romper bruscamente a rotina de uma das mais belas cidades
europeias, o vírus coloca todos em uma situação de constante suspeita.
Em uma semana, a pandemia fez o bem de aniquilar os
delírios relativos às críticas ao “globalismo” e à cooperação internacional. A
vilipendiada ONU em tempos de paz, hoje é referência global com seu braço para
a Saúde, a OMS. Governos críticos ao órgão, caso de Filipinas, EUA e Brasil, seguem
as cartilhas de recomendações do mais alto nível de cooperação técnica em um mecanismo
gerado por boa parte dos melhores recursos globais nas áreas. Prova disso é a
liderança de um etíope, que tem resultados notáveis em seu país natal para a saúde.
Em tempos de crise, inépcia é luxo para poucos.
A União Europeia é outra instituição que sai
destacada. A Comissão, seu braço executivo, foi capaz de dar respostas rápidas
e coordenadas à crise, sem retirar a independências de seus países membros. O
BCE com seu pacote de estímulos foi pioneiro em diretrizes que diversos outros
atores globais acabariam tomando. A dura cobrança em termos fiscais,
notabilizada pelo caso italiano, em nenhum momento foi convertida em intransigência
diante da calamidade, que afetou profundamente o membro que com frequência causa
mais dificuldades com seu orçamento.
Pelo mundo, as diretrizes, tomadas em especial após a
decisão italiana de quarentena completa, se distanciaram muito pouco. No geral,
a gravidade da situação de cada lugar foi o que levou a decisões mais ou menos
drásticas. Em 12 de março, a capa
da Economist trazia o questionamento de uma solução “All’italiana” como referência
para outros países, o que se confirmou na prática. Poucos temas recentes
causaram tamanha convergência.
Acontece que os mesmos que não estão surpresos com a
pandemia anteveem outra catástrofe, potencialmente mais grave. O impacto da
crise climática já afeta bruscamente a rotina de milhões de pessoas, ainda que
não seja determinante para impedir o funcionamento de cafés parisienses ou
levar caos a Wall Street. O Sudeste Africano sofreu bruscamente com mudanças de
temperatura e fenômenos extremos. Em ilhas como Tuvalu, pouco se pensa para
além do aumento do nível dos oceanos. E em um dos casos mais dramáticos, o
processo de desertificações em regiões africanas é uma das causas que abastecem
o fluxo de refugiados que chegam à Europa, em um efeito que ai sim chama a
atenção. E em tempos, o COVID-19 mostrou que crises e emergências devem ser
tratadas com seriedade e a maior aptidão possível. Ou em algum momento se
cogitou adolescentes como “vozes” contra a pandemia?
No Brasil,
teremos de lidar com uma questão bem conhecida, e que se agravará com a
pandemia. Com os níveis de violência do país, um potencial desabastecimento, ou
mesmo as ruas vazias, pode causar um cenário de verdadeiro caos. Em São Paulo,
já há relatos de arrastões em supermercados, tendência que deve se espalhar
pelo país nos próximos dias. Crise em segurança pública é um tema para adultos,
e que infelizmente foi contaminado por nichos ideológicos em um passado recente
no Brasil. Que os ventos globais da responsabilidade e do bom senso possam
direcionar o tratamento aqui. É hora do Memestão ficar de quarentena.
Do bom
relato da correspondente do El País em Pequim: “Desta se saí, não duvidem.
Obrigada por colaborar e ficar em casa”.
Tedros Adhanom, líder na crise, tem importante repertório na Etiópia. FOTO: Instagram
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