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quarta-feira, 11 de julho de 2018

A Recessão Geopolítica na África é uma Marolinha

Nas Olimpíadas de 2016, o mundo foi obrigado a voltar suas atenções para a situação dos oromos na Etiópia após o atleta Feyisa Lilesa comemorar com um símbolo que remetia à etnia sua medalha de prata na maratona. À época, o governo etíope reprimiu duramente protestos na região de Oromia, o que levou à morte de centenas de manifestantes que reivindicavam mais atenção do governo central, tradicionalmente dominado por outros grupos étnicos, e a redução de danos causados por obras de infraestrutura. Em meio à Copa de 2018, o mundo se volta novamente para um oromo, mas por razões bem diferentes. 

Abiy Ahmed chegou ao cargo de primeiro-ministro da Etiópia em abril deste ano, e levou grandes esperanças para duas importantes questões no país: a marginalização dos oromos e a questão com a Eritreia. Nesta semana, em visita a Asmara, Ahmed deu fim a um conflito que durava 20 anos contra a antiga região etíope, uma guerra que gerou pelo menos 80 mil mortos e é uma das principais razões que leva eritreus a serem uma das maiores populações de refugiados na atualidade. Outro fator é o governo de Isaias Afewerki, líder do país desde a independência na década de 90, e famoso pela repressão. Há o receio de que a imagem de Afewerki junto ao líder oromo possa ser utilizada para a perpetuação do mesmo no poder, no entanto é difícil imaginar um real empenho da comunidade internacional em uma transição democrática na Eritreia que representasse uma alternativa segura ao líder. 


Outra grande notícia do funcionamento das relações internacionais no continente ocorreu em Gâmbia, que descrevi aqui em 2017, com destaque para a União Africana (UA): “A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. 

O pouco festejo por parte de líderes de países europeus e de Israel, os que mais se queixam da recepção de refugiados eritreus, realça outra questão. A crise migratória é muito menor do que a crise política nestes governos. Caso houvesse real empenho na resolução dos problemas nos países de origem das migrações, o que frequentemente cita-se como a melhor ideia para estancar o fluxo, acordos à exemplo o de eritreus e etíopes seriam mais celebrados, assim como a saída da Yahya Jammeh do poder, um dos grandes responsáveis por Gâmbia ser um dos maiores emissores per capita de imigrantes para a Europa. Mas Orban, Salvini, Seehofer e companhia omitem tais fatos. 

O relatório Freedom House de 2018 confirmou a relevância da transição e atualizou o status de Gâmbia de não livre para parcialmente livre, com o aumento de 21 pontos na escala de 0 a 100, uma das maiores progressões registradas recentemente. À época, mencionei também o retorno do Marrocos à UA e a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, por um tribunal extraordinário africano, como outras boas notícias para o continente.  

Além dos importantes marcos políticos, a UA avançou neste ano a iniciativa de criar um mercado comum dentro da União, assinada por 44 dos 55 membros. Em tempos incertos de guerra comercial envolvendo as principais potências mundiais, o bloco poderia servir como uma segurança para muitos países que ainda têm economias fragilizadas, em grande parte dependentes da exportação de commodities pouco variadas a apenas alguns parceiros comerciais. A união monetária, à exemplo da Zona Euro, é também uma ideia, ainda que distante, vale lembrar que o franco CFA já é uma moeda aplicada em 14 países, e que não são apenas ex-colônias francesas. 

Dois dos mais antigos governos do continente realizaram transições pacificas recentemente. É verdade que se pode argumentar que Zimbábue e Angola permaneceram no domínio dos partidos ZANU e MPLA, respectivamente, que governaram ambos países em praticamente todo o período pós-independência. Ainda assim, o aparelhamento do Estado por Robert Mugabe, que tentou colocar sua esposa, Grace Mugabe na sucessão, e José Eduardo dos Santos, que tinha muitos de seus familiares no comando de estatais, sofreu importantes derrotas. Emmerson Mnangwga chegou ao poder e não deve colocar objeções para a realização de eleições no Zimbábue, e estas provavelmente serão mais ilibadas do que o polêmico pleito de 2008. Por sua vez, João Lourenço em Angola enfrentou parte da elite e deu bons acenos ao exterior, como a reaproximação com Portugal, relação enfraquecida por escândalos de corrupção. 

A África do Sul também realizou importante transição de um governo desgastado. Com democracia mais consolidadas que as outras já citadas, era pouco provável que a sucessão do impopular Jacob Zuma desencadeasse em tragédia. Ainda assim, é válido destacar o fim de um governo há muito tomado pelos escândalos de corrupção. Cyril Ramaphosa, seu sucessor, tem muito o que provar, mas há tempos Zuma pouco fazia além de lutar para permanecer no cargo.  

Termino da mesma forma do texto de um ano e meio atrás. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. O crescimento da violência na República Democrática do Congo, sobretudo na província de Kasai, conta com uma omissão criminosa da comunidade internacional. Os próximos meses no país podem ser decisivos, já que se espera a sucessão de Joseph Kabila. No caso do Brasil, seria válida a atenção para um parceiro e membro da CPLP, que é Moçambique, e que vê um crescimento de extremismo islamista no norte do país. De toda forma, acho sempre válido falar do continente de maneira sensata, madura e não paternalista. Ou seja, para além de filmes da Marvel. Exemplo disso é Israel, com uma aula de Relações Internacionais no continente. Assunto que também trouxe aqui, mas que se intensificou.

                                            
Afewerki e Ahmed. Digno de Nobel da Paz, e pouco badalado, como gosta o Comitê. Não surpreenderia FOTO: Africanews

terça-feira, 13 de junho de 2017

Na China, já é futuro

Há uma década, tema comum em muitas rodas de conversa era o crescimento chinês. A necessidade de se aprender mandarim, a língua do futuro (nesta época, já não mais conhecida como “chinês”), misturava-se às perspectivas de que logo a China tomaria o lugar dos EUA como a grande potência hegemônica mundial. Nos últimos meses, as expressões ganharam importantes fundos de verdade.

O mandarim dificilmente será uma língua universal. O idioma é falado por grande parte dos chineses, mas o país com quase um quarto da população mundial abriga uma série de outras línguas que contam com milhões de falantes. Além do mais, o francês no começo do século XX e o inglês pós Segunda Guerra Mundial tiveram importantes elementos difusores do chamado soft power. Traduzido como “poder brando”, o termo designa influências importantes exercidas por países, mas sem o emprego da força. No caso da França, a Belle Époque foi um grande difusor do seu idioma, assim como vastas obras culturais, enquanto os norte-americanos têm Hollywood, o que já é mais do que grande parte dos países. No caso chinês, mesmo quando a nação passar a ser a maior economia do mundo é complicado vislumbrar elementos que remetam ao complicado mandarim pelo resto do globo. Afinal de contas, mesmo os filmes de Jackie Chan eram feitos em Hollywood.

Mas em outras áreas, o poder chinês já chegou. A decisão do Panamá nesta semana de se aliar à China, em detrimento de sua aliança tradicional com Taiwan, foi um destes exemplos. Os panamenhos passaram a aceitar a política da Uma China, reconhecendo o governo de Taipei como parte do território chinês. Taiwan reclamou, e disse que os latinos estavam abandonando uma tradicional aliança por conta do poder de influência da segunda maior economia do mundo. E provavelmente estavam mesmo, já que a China corresponde hoje por um quinto dos produtos que passam pelo Canal do país, grande fonte de ingressos para este. E o que Taiwan pode fazer quanto a isso? Esta foi uma aplicação clara e manifesta do hard power.

Outros planos bem mais ousados expressam as ambições chinesas, e o maior deles é a chamada Nova Rota da Seda. O plano prevê investimentos de infraestrutura estimados na ordem de até US$ 1,3 trilhão de dólares, quase o PIB brasileiro, em 65 países. A intenção é interligar Europa, África, Oriente Médio e Ásia, de acordo com os interesses da China, que passaria a não depender, por exemplo, de rivais regionais como a Índia e a Rússia para escoar parte de sua produção. A ideia sofre com críticas de ambientalistas e de comunidades locais, que temem que o projeto, sem precedentes, não tome as devidas precauções.

Em contrapartida às críticas ambientais com suas investidas no exterior, a China toma vanguarda no desenvolvimento de energias limpas, reforçada após o anúncio de Donald Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris. A Usina Hidrelétrica de Três Gargantas, a maior do mundo, é um dos empreendimentos que demonstram o potencial chinês para investir em fontes renováveis. O país tem a maior matriz hidrelétrica do mundo e é líder na produção de painéis solares.

Minhas referências nacionais e internacionais em tecnologia, Ronaldo Lemos e Thomas Friedman respectivamente, fizeram questão de em suas colunas na última semana de destacar a evolução chinesa nas formas de pagamento. Ambos relataram que, nas principais cidades do país, já é difícil encontrar transações que aceitam dinheiro, tendo este sido substituído por QR codes, que já descontam o valor diretamente na conta do cliente. O futuro já chegou à terra de Confúcio.

Em 2001, logo ao entrar na OMC, a China era responsável por 50% do PIB dos BRIC. Hoje este valor já corresponde a dois terços. A nação foi a única a cumprir as metas de crescimento esperadas dos quatro países em 2003, quando começou o auge das expectativas com os gigantes em desenvolvimento. Brasil e Rússia tiveram importantes recessões, em grande parte derivada da queda do preço das commodities. A Índia conseguiu diversificar sua economia e chegou a crescer mais que a China em 2016, mas fica aquém das reformas prometidas com a ascensão de Narendra Modi ao poder, em 2014.

A China evitou entrar intensamente em regiões de disputas complexas e tradicionais por influência, como o Oriente Médio, e estreitou seus laços com países diversos, perpassando do Sudão à Nicarágua. Membra permanente do Conselho de Segurança da ONU, portanto, com poder de veto, a postura pouco combativa dos chineses lhe deu a vantagem de não ter de se engajar firmemente em conflitos espinhosos como Síria e a Ucrânia, e ainda assim tem papel decisivo sobre estes, contando com uma importante margem para negociar de acordo com seus interesses.

No primeiro Fórum Econômico de Davos após a eleição de Trump, o presidente chinês, Xi Jinping, apresentou seu país como um defensor da globalização e do livre comércio, sinalizando a intenção de expandir sua influência. Um dos históricos conflitos entre China e EUA é pela prevalência no Pacífico, em especial no que Pequim considera como Mar da China Meridional. No ano passado, a Corte Internacional de Haia reconheceu um pedaço da região, pela qual passa uma parcela cada vez maior do PIB global, como parte das Filipinas, aliadas dos EUA de longa data.

Duterte, presidente eleito das Filipinas no ano passado, passou a limpo esta relação. Como uma das principais plataformas de campanha, o filipino adotou um discurso contra as drogas, que previa a execução de usuários e traficantes. Nos primeiros meses de mandato, o número de mortos chegou a 7 mil, direta e indiretamente, chamando a atenção de grupos de direitos humanos. As críticas de Obama levaram Duterte a xingar o presidente norte-americano, deixando a relação entre os dois países em um dos piores patamares históricos. A China observou silenciosa a situação, e recebeu de muito bom grado quando o filipino anunciou uma guinada na cooperação com Pequim, em um afastamento de Washington.

Deixar direitos humanos de lado em detrimento da influência geopolítica não é exclusividade da relação Pequim-Manila. No Sudão, a China tem como grande aliado o ditador Omar Al-Bashir, condenado por crimes contra a humanidade e frequentemente acusado de genocídio, mas responsável por vastos campos de petróleo. O futuro chegou. Mas como em Black Mirror, não precisa ser sinônimo de comemoração.
                                                       Autor desconhecido, mas valor inalterado 

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Coreia do Norte: mais geopolítica do que pânico

A despeito do que é amplamente divulgado na imprensa, a principal questão da Física relacionada ao regime norte-coreano não é a nuclear, mas a “Lei da Inércia”. O atual status quo da complexa equação geopolítica na Coreia do Norte é favorável aos cinco principais atores envolvidos, e para isto, é vital a visão de que o regime é dominado por um lunático disposto a explodir o mundo a qualquer momento. Evidentemente, não é bem assim.

As fake news em relação ao regime norte-coreano são divulgadas há muito tempo, e com um potencial sem comparações, já que não há porta-vozes na comunidade internacional para defender o contraditório. Uma mentira é amplamente divulgada, o mundo acredita, e se por um acaso for falsa, há a sensação “ah, mas nada impede que fosse verdade”.

Alguns fatos: a Coreia do Norte possui embaixada no Brasil, retribuída com uma representação brasileira em Pyongyang. A capital norte-coreana vive um boom imobiliário, e bem nascidos no regime vão ampliando seu poder de compra. O principal destino de exportação da Coreia do Norte é a China, sua principal aliada, mas em segundo lugar vem a longínqua Argélia e em terceiro a Coreia do Sul, com quem, em tese, o norte continua em guerra, já que em 1953 apenas um armistício foi assinado. O país é membro da ONU.

As ameaças militares da Coreia do Norte são a maior justificativa para os EUA manterem cerca de 35 mil soldados na Península Coreana, região cada vez mais importante para o comércio global com o crescimento chinês. Com a onda recente de tensões, os norte-americanos estão instalando a estrutura antimísseis Thaat na Coreia do Sul, o que é criticado pela China, que teme um aumento do poder dos EUA na região. O Thaat é um dos principais assuntos da campanha eleitoral sul-coreana, antecipado por conta do impeachment da presidente conservadora Park Geun-Hye, favorável ao escudo. Na liderança das pesquisas para a eleição do próximo 9 de maio está um liberal, contrário ao Thaat, e seus adversários usam a ameaça do norte para criticá-lo.

A possibilidade de o Japão ser atacado é uma das poucas justificativas que o governo tem para um tom belicista. O país, que a exemplo da Alemanha adquiriu uma guinada pacifista após a derrota na Segunda Guerra, nos anos recentes sob o comando de Shinzo Abe vem sendo levado por um tom nacionalista, retomando algumas posturas históricas. Até a Segunda Guerra Mundial, o Japão ocupava a Península da Coreia e regiões da China.

Com o regime norte-coreano a China tem um importante contraponto em meio aos aliados norte-americanos no Pacífico. Fiel incondicionalmente aos chineses, a ditadura de Kim Jong-un serve como um tampão a quaisquer expansões dos EUA na região. Para a crescente economia chinesa, os subsídios dispendidos à pequena Coreia do Norte são mais em conta do que investiduras militares. Além do mais, um colapso da ditadura levaria milhões de refugiados a cruzarem a fronteira para o país que já é o mais populoso do mundo.

A Coreia do Norte quer ser um país com arsenais nucleares, e faz alusão às outras oito nações que possuem ogivas, que totalizam mais de 13 mil pelo mundo, para justificar as suas. Os EUA não reconhecem, fazem jogo duro e afirmam que somente a desistência de possuir armas nucleares pode levar ao fim das sanções, que castigam principalmente a população no interior. Por meio da filosofia “Juche” o governo controla seu povo para servir sua pátria contra a ameaça “imperialista” a todo custo. Os norte-coreanos acreditam durante toda vida estar a cargo do bem maior do “Rei Sol”, Kim Il-sung, avô do atual ditador, e que fundou a nação. Desta forma, todos os homens têm de servir ao exército, o quinto maior do mundo e, proporcionalmente, por sua população de cerca de 25 milhões de habitantes, a maior força armada global.

Kim Jong-un tem motivos para temer abandonar seu programa nuclear. Já no exercício do poder viu a OTAN invadir a Líbia para depor o ditador Muammar Khadafi, que sempre almejou armamentos nucleares, em 2011. Em 2003 viu os EUA invadirem sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, ao qual a China tem poder de veto, o Iraque para dar fim à ditadura de Saddam Hussein. Não é impossível que Kim Jong-un aceite um acordo, bem mais difícil do que o alcançado com o Irã, para pôr fim a suas armas nucleares, mas será necessária muita diplomacia chinesa e concessões ao regime.

O ponto fora da curva neste momento é Trump. O inexperiente e midiático presidente é imprevisível, e pode, sim, colocar à prova esta verdadeira aula de pragmatismo geopolítico. À frente de seu Departamento de Estado está Rex Tillerson, mais contido, mas com pouca experiência diplomática. A expectativa pela prudência fica a cargo dos ex-militares, em especial o Secretário de Defesa, Jim Mattis, e o conselheiro de Segurança Nacional, general McMaster.

Qualquer passo em falso seria trágico. Um ataque preventivo dos EUA levaria a Coreia do Norte a atacar o sul, com potencial de atingir Seul, a apenas 50  km da fronteira, no que pode ser a maior tragédia da história, na cidade com cerca de 10 milhões de habitantes. O regime norte-coreano não é suicida. Sobrevive no poder há 69 anos, se manteve após o fim da URSS, o que levou o país a uma das maiores fomes coletivas na história recente, quando inclusive teve de contar com ajuda da comunidade internacional. Perpassou pelas mudanças chinesas, país maoísta a principio, mas que gradualmente se integrou ao capital global com as reformas de Deng Xiaoping e a adesão à OMC. E do outro lado, Trump, que balança com 100 dias de mandato.

Palpitaço
Até aqui, análise. Mas neste caso acho justo não me eximir, e tentar traçar os possíveis panoramas. Em curto prazo, a situação deve aumentar em tensões, com um tom mais beligerante dos dois lados e cercado de ameaças. Mais sanções ao regime serão impostas pela ONU, mas sem grande impacto. Em médio, é possível que a Coreia do Norte tenha êxito em seu sexto teste nuclear, obrigando os EUA a uma reação mais significativa. Nada muito sério deve ocorrer, mas será preciso intensa diplomacia chinesa. Em longo, não acredito que o regime resista. Em um mundo extremamente conectado, cada vez menos norte-coreanos estarão dispostos a passar fome para manter uma ditadura com propósitos ultrapassados, enquanto a alguns quilômetros ao sul tem a sua disposição os benefícios da pujante economia sul-coreana. Não me arrisco além.

Boa parte do comércio global hoje passa por esta região

Obs: Para o mínimo de entendimento com isenção sobre a Coreia do Norte, o documentário “The Propaganda Game” é necessário. O filme perpassa o país sem juízo de valor. Tem no Netflix.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

A "Recessão Geopolítica" na África será uma "marolinha"?

“Recessão geopolítica” foi o termo utilizado pela agência de classificação de risco político Eurasia para definir 2017. Assim como os ciclos econômicos apresentam recessões, a geopolítica a partir desta ideia não seria sempre progressiva, e estaríamos em um momento de retrocesso, não visto desde o fim da Segunda Guerra. Os princípios que moldaram a atual Ordem Mundial, como o livre-comércio, as alianças multilaterais, as organizações internacionais, e a expansão da democracia e dos direitos humanos, não estiveram tão em tanto risco desde 1945.

Dois fenômenos são em grande parte os responsáveis pela ideia de “geopolítica em recessão”: Trump e Brexit. Com o segundo, a União Europeia perdeu sua segunda maior economia, viu movimentos eurocéticos se proliferarem por seus países, e experimenta o momento de maior risco do projeto europeu, principal caso de sucesso de uma aliança multilateral. Com Trump, o livre-comércio se vê cada vez mais ameaçado, simbolizado com a rejeição à Parceria do Pacífico e as provocações ao NAFTA. A ONU sofreu ameaças de corte de financiamentos, e a OTAN, chamada de obsoleta pelo presidente, corre mais riscos do que nunca. O conceito de “American First” e os primeiros dias de mandato são boas mostras de que Trump não focará na expansão da democracia e dos direitos humanos.

Outra organização internacional que vem passando por maus momentos é o Tribunal Penal Internacional (TPI). A fragilidade da instituição se dá por conta das ameaças de boicote e até mesmo abandono da Corte por parte de países africanos, que acreditam sofrer perseguição do órgão. A grande maioria dos condenados até hoje pelo TPI são de origem africana, enquanto crimes de guerra em variados países, que vão desde a Colômbia até à Palestina estão sem veredictos.

A perseguição que os países da África acreditam sofrer por parte do TPI é uma das razões que explicam a relevância que teve a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, em maio de 2016. A prisão perpétua decretada ao ditador foi o primeiro caso de um chefe de Estado condenado em outro país dentro do continente africano, no caso, Senegal. A sentença foi expedida pelo tribunal africano extraordinário, criado pela União Africana (UA), e é vista como uma contraposição do continente ao passado colonial e ao paternalismo, além de estabelecer precedentes para que outros líderes possam ser julgados na própria África.

A própria UA é outra prova da força que os órgãos internacionais vêm conseguindo estabelecer no continente. Nesta semana, o Marrocos, único país do continente que não fazia parte da União, anunciou que voltará a ingressar o grupo. Os marroquinos ficaram de fora por 33 anos da UA, por conta da presença da região separatista do Saara Ocidental no órgão, que é o único organismo internacional a reconhecer a independência do território. Outro importante fator foi a sucessão no cargo de presidente da UA, até então ocupado por Robert Mugabe, o ditador zimbabuano desde 1980, e que tenta a reeleição com seus 93 anos.

A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A ausência de Barrow o impediu, por exemplo, de acompanhar o funeral de seu filho de sete anos, morto por uma mordida de cachorro no período.

O cenário que se desenhava para Gâmbia era de uma sangrenta guerra civil. Os turistas estrangeiros foram evacuados do país, que via suas ruas desertas cercadas de apreensão. A comunidade internacional, focada com as repercussões da vitória de Trump, pouco fez além de condenar a insistência de Jammeh. Neste cenário, e com respaldo da UA, a CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. Barrow tomou posse na embaixada de Gâmbia em Dakar, e foi poucos dias depois para Banjul, levando ao festejo uma multidão que o aguardava no aeroporto.

A transição democrática em Gâmbia, sem nenhuma gota de sangue derramado, é uma das grandes histórias deste 2017 que já começou tão turbulento. Em meio à “recessão geopolítica”, uma organização de países africanos desconhecida de grande parte do mundo conseguiu evitar uma trágica guerra civil. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. Mas enquanto as antigas metrópoles estão se voltando cada vez mais para dentro, os africanos entenderam o significado de “juntos somos mais fortes”.
                                         Países da CEEAO. De pouco conhecida a vital para a paz

Excelente fonte de informação sobre o que acontece de bom na região (espanhol): http://elpais.com/agr/africa_no_es_un_pais/a/

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Análise sobre Temer na ONU: Passou no teste

Não se pode confundir um discurso na Assembleia Geral da ONU com um pronunciamento ao seu país. E não se pode esperar que uma fala de cerca de 15 minutos frente a todas as outras nações do mundo tenha um real efeito transformador. São discursos em que a diplomacia prevalece normalmente dotada de muita retórica, mas importantes para se avaliar a postura de um país no campo diplomático e na Ordem Mundial.

Nestes aspectos o primeiro discurso de Michel Temer se sobressaiu aos de Dilma Rousseff. Uma grande característica de Temer é o pragmatismo, que é normalmente mais efetivo no campo da diplomacia do que para captar apoio popular. Sem posturas duras em sua fala, o presidente do Brasil encerrou-a parabenizando o secretário geral da ONU, Ban Ki-Moon, pelos seus dez anos de serviços prestados no órgão, e que tem 2016 como seu último ano no posto. Além disso, fez uma ressalva à memória de Oswaldo Aranha, brasileiro fundamental na diplomacia global, e um dos grandes responsáveis pelo Brasil ter a honra de abrir oficialmente as Assembleias Gerais.

Portanto, não cabia esperar naquela fala uma postura incisiva sobre o processo de impeachment, ou indicativos sobre macroeconomia. Temer ressaltou de maneira pouco detalhada o respeito às instituições, a democracia e à constituição no Brasil. O grande acerto foi não ter desmerecido os países que não reconheceram a legitimidade do processo no país, e, que estavam ali presentes. O ministro das Relações Exteriores, José Serra, questionou a Bolívia e o Equador quanto a suas democracias e, portanto, sua posição para poderem arbitrar sobre o Brasil, o que Temer teve cuidado em não fazer em um local pouco propício para tal.

O discurso começou com críticas importantes a um dos grandes problemas atuais, a xenofobia. Temer questionou o problema, e ressaltou que o Brasil é composto por imigrantes de todo o mundo (o presidente é filho de libaneses). Continuou com a postura já abordada na última segunda de que o país esteve aberto a receber imigrantes e refugiados de todas as partes, vítimas das mais diversas adversidades. Quando o fez ontem, foi alvo de críticas, já que teria inflado o número de acolhidos com haitianos, que sob a ótica da Convenção de Refugiados de 51 não podem ser enquadrados como tal. A postura de Temer foi a de ressaltar as difíceis condições encontradas por estes em território nativo, já que o Haiti é o país mais pobre do Hemisfério Ocidental, e foi vítima de um terrível terremoto em 2010. A partir daí, o Brasil seria solidário abrindo suas portas.

E isto demonstra uma das grandes peculiaridades de uma reunião na ONU. O Brasil, de fato, possui uma política correta ao receber imigrantes haitianos. Mas no momento em que Temer abrange na mesma condição os imigrantes e os refugiados, este abre precedentes para que o mesmo ocorra, por exemplo, em um país europeu com uma política pouca aberta à recepção. E assim coloca em risco refugiados sírios e iraquianos, que podem encontrar maior adversidade de conseguirem asilo, já que estariam na mesma categoria que imigrantes do Magreb em busca de melhores condições.

Sobre o Oriente Médio, acertos. Ressaltou a importância de se encontrar uma saída diplomática para a Síria, e a necessidade de ajuda humanitária. Lembrou a postura do Brasil sobre uma solução de dois-estados no conflito árabe-israelense, o que é primordial depois dos desgastes sofridos pelo governo de Dilma com Israel, quando o Brasil chegou inclusive a ser chamado de anão diplomático por um porta voz israelense. E incentivou o Acordo Nuclear com o Irã, outra tradicional postura brasileira, sendo o Brasil durante o governo Lula um dos negociadores por tal solução.

Acertos também para a América Latina. Parabenizou o presidente Juan Manuel Santos e os colombianos pelo acordo de paz com as FARC. Lembrou que apesar dos avanços, é importante o fim do embargo norte-americano a Cuba. E indicou que respeita a pluralidade ideológica na região. O fato de ali não mencionar a Venezuela foi uma surpresa, mas se tratando de um país com desgaste com o atual presidente, a Assembleia Geral não era o lugar mais indicado para a ressalva da postura brasileira.

O presidente reafirmou a amizade e o compromisso brasileiro com os países africanos, algo que havia sido colocado em dúvida após Serra assumir o Itamaraty ao indicar uma política menos voltada à cooperação entre os chamados países do eixo Sul-Sul. Também criticou duramente os protecionismos, que seriam responsáveis por desemprego, em uma postura que o coloca na contramão de fenômenos populistas como Trump e Marine Le Pen.

Temer, como presidente de um país latino-americano com 60 mil homicídios por ano, não fez alusão ao tema e nem as drogas no continente. É inegável a importância do assunto em uma região que conta com cerca de 9% da população mundial, e 30% dos assassinatos, grande parte relacionados ao tráfico.

O presidente fez alusão a mudanças no Conselho de Segurança da ONU, mas não indicou, além disso, qual seria a abordagem do Brasil para o caso. A postura fica distante da aplicada pelo governo Lula, que via na entrada brasileira no órgão um grande objetivo, o que levou o país a gastar uma série de recursos, contanto com a sexta maior rede diplomática do mundo, perdendo somente para os cinco membros do Conselho. Temer provavelmente terá mais duas oportunidades de abrir a Assembleia com o assunto, 2017 e 2018, o que não é garantido em um país que, de fato, não é para principiantes. Na diplomacia mundial, Temer passou no teste. Resta saber se as ruas no Brasil vão achar o mesmo depois que seu programa de governo for aplicado.

Aqui o discurso na íntegra: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/20/politica/1474388524_553168.html

               Temer vai bem na casa do pragmatismo global / Foto: Drew Angerer (AFP)

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Um mapa que explica o mundo

Sempre adorei mapas. O gosto vem desde a infância, quando levava um bom tempo observando os mapas da Europa para identificar as cidades que possuíam times nas principais ligas do continente. Essa relação de geografia com futebol levava a alguns equívocos, como acreditar que as capitais dos países eram as sedes das principais equipes do momento. Assim, Lyon substituía Paris como capital da França, Munique era a alemã e Milão a italiana. Bons tempos.

Eu não tenho dúvidas que esse interesse influenciou muito nos meus gostos de hoje. Quando passei a compreender que aquelas representações cartográficas na verdade representavam pessoas, culturas, interesses e pensamentos diferentes, foi amor à primeira vista. E hoje, em tempos de internet, as possibilidades para dissecar mapas são muitas. Páginas que acesso quase diariamente, como Amazing Maps, El Orden Mundial en el Siglo XXI e Eurasia postam verdadeiros mapas que costumam valer mais que mil palavras para entender o mundo.


E o que traz esta enrolação é um destes. Olhando rápido, pode ser simplesmente um mapa mundi com tons de marrom que representam a porcentagem que as matérias primas representam no PIB de cada país. Um olhar mais atento, ajuda em uma grande compreensão dos conflitos no mundo hoje e os que devem estar por vir, ou como costumam dizer “A Ordem Mundial”.

Primeiro as “ausências”. Sete das mais sentidas são facilmente compreendidas. Na África, a Líbia, um dos países com maiores reservas de petróleo no mundo, está destruída. A sede do governo reconhecido não fica na capital Tripoli, e boa parte dos poços de óleo estão nas mãos de milícias extremistas, inclusive o Grupo Estado Islâmico. Não tem como fazer a estimativa. Situação semelhante com a da Somália, um completo estado falido em guerra civil há décadas e que tem como uma das principais forças o Al Shabab, ligado à Al Qaeda. A área que não possui dados no Marrocos é a Saara Ocidental, envolvido em complexos imbróglios separatistas.

No Oriente Médio, o Irã, um dos maiores produtores de petróleo global, sofria com graves embargos para vender seu produto principal até o Acordo Nuclear. Difícil estimar a dependência. Depois, Cuba, Myanmar e Coréia do Norte. Três dos regimes mais fechados e com economias mais enigmáticas do mundo, apesar das aberturas nos dois primeiros. O outro dispensa comentários, até por falta de informações.

A região mais emblemática hoje é a América Latina. Brasil, Argentina e Venezuela tiveram grandes crescimentos econômicos durante a alta dos preços de matérias primas, principalmente se aproximando da China. A demanda global pelos produtos caiu, assim como o crescimento chinês, um não separado do outro. Com isso, graves crises atingiram as duas principais potências sul-americanas, que seus PIB’s dependem mais de 16% de commodities, sendo dispensável detalhar o caso brasileiro. Já na Argentina, o problema se somou a dificuldades anteriores, e levou a um cenário ainda pior. Apesar dos benefícios apontados por muitos meios da mídia estrangeira, Macri não resolveu toda a situação argentina, tendo estes, por exemplo, que conviver com enorme inflação no seu governo.

Comparar o que acontece na Venezuela com os dois países é bastante equivocado. A situação, que envolve possibilidades hoje de uma guerra civil, é imensamente mais delicada, e chavismos a parte, o mapa explica bem. A Venezuela é o único país em que seu PIB depende mais de 32% da exportação de matérias primas na região, e tendo em vista que boa parte vem do petróleo, já que os venezuelanos são detentores das maiores reservas mundiais, é mais compreensível. Durante boa parte dos últimos dez anos, o barril de óleo foi negociado a mais de 100 dólares, chegando facilmente aos 120. Neste ano, a commoditie chegou a valer menos de 30 dólares. É mais do que grave.

Equador e Bolívia são dois países preocupantes em um médio prazo. Os dois gozam de relativa estabilidade hoje, mas com o PIB dependendo mais de 16% da exportação de matérias primas, as conjunturas não podem omitir reformas necessárias. O Equador, membro da OPEP, terá problemas com o barril sendo negociado a preços mais baixos, apesar de hoje conseguir “surfar” na onda dos países que se voltaram aos acordos com o Pacífico e fugiram da queda chinesa. A Bolívia, também muito dependente de hidrocarbonetos, deve boa parte de sua estabilidade, justamente a uma estabilidade, a de Evo Moralez no poder de um país famoso pelos golpes de estado.

O país que se sobressai no Norte do mapa por conta da cor mais escura, é justamente o maior, a Rússia. Não vem de hoje que a queda no preço dos hidrocarbonetos deixa os russos com um dos piores desempenhos econômicos dentre os países mais importantes do mundo. A estratégia de Putin para lidar com o problema e manter sua popularidade entorno dos 80% é aumentar retórica nacionalista do país. O resultado são duas participações em dois dos principais conflitos da atualidade, a Crimeia e a Síria.

Apesar de peculiaridades em países como Canadá e Austrália, com populações pequenas e grande renda per capita, em geral os países mais estáveis do mundo são os mais claros no mapa. Por outro lado, o instável Oriente Médio, revela tons mais escuros e é área mais preocupante na representação.
O Iraque, por exemplo, tem mais de 65% de seu PIB relacionado com matérias primas, em especial o petróleo. Mas sua instabilidade não vem desde a queda no preço do barril, e sim de tensões anteriores. Os países do Golfo, com o caso emblemático da Arábia Saudita, conseguiram verdadeiros oásis em meio a tantas tensões, como por exemplo, alguns dos PIB’s per capitas mais altos do mundo e a Copa de 2022. Praticamente tudo com dinheiro de um petróleo caro e com alta demanda.

Estes países construíram estados de bem-estar social com a renda da commoditie, mas depender de matérias primas significa se submeter a volatilidades. Ainda mais se tratando de um combustível que em qualquer visão ambientalista, é obsoleto para o século XXI. E estes países já vêm enfrentando os custos de petróleo barato, como no caso do Bahrein. A ditadura sunita em um país de maioria xiita, normalmente conseguia conter sua população com reformas sociais caras, mas pouco inovadoras, sobrecarregando o funcionalismo público. O país tem mais de 32% de seu PIB atrelado a commodities, então com o petróleo a mais de 100 dólares o barril, a estabilidade era comprada, o que fica impossível nos atuais preços, e o país é provavelmente o foco da próxima grande tensão do Oriente Médio.

Alguns países entenderam a necessidade de mudança e saíram na frente, antes de virar um foco de tensão em um futuro não muito distante. O SaudiVision 2030 é um ambicioso programa que visa diversificar a economia do maior exportador de petróleo do mundo até 2030. A medida foi tomada depois que o FMI indicou que a atual economia saudita era insustentável dentro de cinco anos, mas convenhamos um pouco de bom senso e esse mapa poderia justificar a decisão. Aliás, bom senso, investimento em inovação e tecnologia são vitais em qualquer parte deste mapa. Fica a dica aos “abençoados por Deus e bonitos por natureza”.