domingo, 22 de novembro de 2015

Homer Simpson e o terrorismo

Em um dos brilhantes episódios de Simpsons, infelizmente não me lembro qual, Homer parecia em uma situação desfavorável, até que solta a seguinte frase: "Você só não contava com uma coisa: a minha indiferença com a vida humana." Isso serve bem para definir a volta das atenções à Al Qaeda depois do último ataque em um hotel no Mali.

Diversas pessoas depois dos atentados de Paris desmereceram a capacidade da Al Qaeda em detrimento do Daesh (ISIS). A questão é que quando se lida com gente que acredita que não tem nada a perder, as análises não podem ser comuns como, por exemplo, dizer que o Reino Unido não tem o mesmo poder de antes ou que a China virou um grande ator global. Basta a oportunidade para um tipo de ação como a atentado em Bamako, que matou 27 pessoas, que pronto, um grupo volta a ter destaque.

É fato que a Al Qaeda não é tão forte quanto na última década, quando além do 11 de setembro, o grupo cometeu ainda grandes atentados em Londres, Madri (o maior da Europa) e Bali. Ainda assim, com suas ramificações, consegue ser um ator fundamental em pelo menos quatro grandes conflitos: Al Qaeda do Magreb Islâmico no Mali, Al Qaeda da Península Arábica no Iêmen, Al-Shabab na Somália e Frente Al Nusra na Síria. Além disso, há diversos grupos que já pelo menos declararam se aliar aos ideais destes terroristas em muitos locais, como Afeganistão e Filipinas.

O Mali reúne praticamente todos os elementos perfeitos para a ascensão de uma ramificação radical como a Al Qaeda. País paupérrimo é palco de grande instabilidade desde a chamada Revolução Tuaregue em 2012, que foi sufocada com tropas francesas. Ou seja, possui diversos jovens frustrados e indignados dispostos a morrer por uma causa aparentemente justa. O ataque ao hotel visava matar estrangeiros, que nesse tipo de situação, são vistos apenas como ocidentais e a nacionalidade de fato faz pouca diferença.

O que vale para a enfraquecida Al Qaeda, vale para a preocupação do momento, Daesh. Ações contra estes grupos podem surtir efeitos importantes contra o terrorismo, como vimos no caso da rede de Osama Bin Laden, que alguns chegaram até a pensar que estivesse acabada. A intervenção na Síria e no Iraque provavelmente vai diminuir muito o poder do Daesh, mas enquanto a ideia de jihadismo destes terroristas não for derrotada, o cenário será apenas a morte de mais jihadistas.

O caminho para isso passa por uma discussão sobre quem de fato financia o terrorismo pelo mundo, além de colocar em pauta a vertente wahabista do islã que vem sendo exportada há anos pelo regime saudita e é a base de grande parte dos grupos extremistas islâmicos. Mas estes são temas que uma hora ou outra vão ter de ser abordados.

O foco é que a análise de grupos extremistas não pode ser feita de maneira simples, já que a grande arma destes normalmente é a total indiferença com a vida humana, o que como estamos assistindo, pode ser mais valioso que um serviço de inteligência de qualidade e um exército bem armado.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O texto do Estadão que nos denunciou

Não é o tipo de momento que me sinto mais a vontade para escrever sobre o tema da atualidade, e felizmente não depender disso hoje profissionalmente permite meu silêncio. Acho que visões complexas ficam perdidas em meio à infinidade de informação que recebemos depois de uma tragédia como a do último dia 13, e prefiro então tentar absorver o que tem de mais útil.

Eu fazia isso no domingo até me deparar com o texto “Por que a França” no Estadão. A opinião do correspondente na França, Gilles Lapouge, tinha bons elementos, dos quais eu concordo bastante. Tudo ia muito bem, em uma análise que saia da obviedade dos principais motivos do ataque ter se direcionado à França que ouvimos no noticiário, até a seguinte frase: “O EI não perdoa a França por ter assinado, em 1916, o acordo de Sykes-Picot, que desmantelou o Império Otomano e dividiu seus despojos entre a França, que recebeu o Líbano, e a Inglaterra, que ficou com a Síria.”. Eu concordo com a ideia, e voltaremos nela, mas há algo grave e vou explicar.

Não é demérito nenhum não conhecer o acordo de Sykes-Picot. A questão é que as fronteiras artificiais definidas por ele são fundamentais para entender os conflitos de hoje no Oriente Médio. Há um enorme ranço de parte das populações dominadas pelo Império Britânico (termo bem melhor que “Inglaterra” usado) e a França. Agora, o acordo previa que a Síria ficaria sobre influência francesa, enquanto Jordânia, Palestina, Iraque e uma parte do Kuwait ficariam com os britânicos (só por curiosidade, ai se dá a escalada do conflito árabe-israelense). Tudo bem o autor do texto ter errado, quem sabe pode até ter sido algo na tradução. O ponto que quero chegar se refere aos comentários.

Imagine um texto sobre o Tratado de Tordesilhas, mas nele há a informação de que o ocidente ficaria com Portugal e o oriente com a Espanha. Seria algo completamente incorreto e que inverteria a intenção do tratado. Foi isso o que aconteceu com o texto sobre Sykes-Picot. Qualquer pessoa que tivesse de fato interessada em saber um pouco mais sobre a origem de conflitos no Oriente Médio teria feito uma simples pesquisa sobre o acordo, notado a falha gigantesca e feito referência a ela. Procurei bastante e ninguém havia feito isso.

Em compensação, teóricos da conspiração sobravam nos comentários criticando o imperialismo atual das grandes nações. Os solidários por Mariana, que podem fazer doações além de falar na internet, questionavam o imenso espaço dado à tragédia francesa. Islamofobia, xingamentos a Dilma Rousseff e outras coisas típicas dos comentários recentes, também tinham seu lugar. Não sei se fiquei acostumado com o Globoesporte, mas senti falta de menções ao campeão de 87.

O que essa situação simbólica demonstra é que podemos até estar dispostos a sermos todos Mariana, Paris, Beirute, Maiduguri e onde mais alguém estiver sofrendo. Mas enquanto seguir faltando a hashtag #SomosMenosIgnorantes, o desconhecimento e o preconceito vão seguir reinando até o próximo momento de comoção, seja com grande atenção da mídia ou não.

Foi algo como eu disse bastante simbólico e que infelizmente representa boa parte de nós, seja neste caso especifico ou em outros assuntos. Mas em contrapartida gostei da quantidade de pessoas pesquisando e perguntando sobre os contextos da tragédia. Acredito que apesar de problemas como o caso aqui retratado, muitas pessoas vêm buscando conhecer mais sobre termos tão discriminados hoje em dia como árabes, Oriente Médio, Islã, muçulmanos e o mais importante: descobrir que não são nem um pouco sinônimos de terrorismo.

E sim, concordo muito na influência que o Sykes-Picot tem na escolha da França como alvo. Mas é assunto pra depois.

                                                                Acordo de Sykes-Picot