segunda-feira, 29 de maio de 2017

Sobre Bolsonaro: sem "mito", nem "minions"

Sim, esta é uma era de notícias falsas. Mas não é a única. O que é inédito em nosso tempo é a forma na qual clichês ganharam força para se propagar e explicar fenômenos extremamente complexos. O grande caso é a eleição de Trump. Thomas Friedman, colunista do New York Times, provou isto com “A Road Trip Through Rising and Rusting America”. É um relato no qual grande parte dos chavões que serviram para explicar a eleição do novo presidente dos EUA foi desmitificada. A ideia de que o país é hoje separado entre as costas liberais e desenvolvidas e o centro atrasado é reducionista. Uma das conclusões da viagem.

As pesquisas erraram mais na França do que nos EUA. Clinton venceu no voto popular, o que era previsto pelos institutos. A vitória de Macron por 66% foi seis pontos acima do previsto, portanto, acima da margem de erro. Mas o sistema norte-americano prevê a eleição por colégio eleitoral, ou seja, 50 pesquisas paralelas deveriam ser realizadas. E a imensa maioria acertou dentro da margem de erro, com exceção de Michigan, que tinha problemas nas amostras, o que foi alertado o tempo todo pelo excelente Guga Chacra. Variando de acordo com a base, dá para se dizer que menos de 2% das pesquisas dos EUA erraram. Valor irrisório perto do alarde.

E aí, chegamos às autocríticas da mídia. “A exposição de Trump foi desmedida”, “não ouvimos os eleitores do interior”, “fizemos falsa equivalência com os escândalos de Trump e Clinton”. Críticas válidas, mas que não servem para explicar a eleição como um todo. Enquanto isso, o relato de um militante de Bolsonaro à BBC Brasil pode fazer muito bem este papel: “Os jornalistas pensam diferente da massa brasileira. Eles publicam essas posições achando que o pessoal vai ficar indignado, mas a grande massa pensa que ‘bandido bom é bandido morto’ e é isso que Jair prega”.

Claro que a afirmação é reducionista e não abarca as teorias aprendidas nas faculdades de Comunicação, sendo uma afronta à “Teoria da Agulha Hipodérmica”, Adorno, Horkheimer, Habermas e tantos outros que nos mostram que a mídia é indissociável da opinião popular. Mas se a eleição de Trump deveria nos ensinar muitas lições, e deveria por conta das semelhanças com o fenômeno Bolsonaro, uma é a de que devemos escutar mais o público.  E neste caso, o autor da frase tem muita razão.

Tenho grandes amigos que gostam de Bolsonaro. A despeito do atual manual brasileiro de boa convivência, que prevê excluir a discussão política, gosto de ouvir suas motivações. E vejo que assim como os eleitores de Trump, há críticas pertinentes em suas ideias.

Existe uma posição ideológica predominante nas faculdades, sobretudo das áreas de humanas. Enquanto grandes educadores explicam com eloquência teorias progressistas logo que os estudantes saem da escola, ainda com as visões maniqueístas de mundo comuns à idade, quem não concorda com as posições dominantes se vê órfão. É muito raro que um grande pensador conservador seja apresentado a estes alunos na faculdade. Há um vácuo que faz com que ideólogos rasos ou extremistas ganhem espaço junto a estes. Noto que alguns são sim competentes, mas tendem a adotar discursos mais radicais para ganhar espaço. Outros são simplesmente fracos.

Neste vácuo existe um incômodo com as batalhas por direitos civis. A imensa maioria destas é válida, e merece apoio. Mas no sentido maniqueísta e reducionista de uma sociedade que opina com base em manchetes, o extremismo encontra terreno fértil. Daí a surgirem casos surreais como a “polêmica” sobre apropriação cultural. A resposta dos incomodados, em um país ainda muito conservador, tende a ser extrema. E dalhe #Bolsomito2018 para lá.

O Brasil lidera o ranking global de homicídios, com quase 60 mil assassinatos ao ano. Destes, menos de 10% terminam com o responsável preso. Quando este é o destino, um sistema carcerário criticado internacionalmente não reabilita o criminoso, que volta às ruas para se deparar com uma reincidência de aproximadamente 70%. Este é o cenário dos que não podem pagar caros advogados, ou não possuem o foro privilegiado, que abarca entre 20 e 50 mil de brasileiros, variando de acordo com a fonte, mas sem paralelos em qualquer outra parte do mundo, independente do valor. Um sistema penal que não inibe que crimes sejam cometidos e não reabilita perpetradores. A sensação de injustiça é generalizada, surgindo daí o terreno fértil para o apelo de “lei e ordem”.

Em uma sociedade que maltrata a palavra, e os termos perdem sentido, adjetivos como “fascista”, “opressor” e a corrente de “ismos”, muita das vezes incongruentes, acabam fazendo com que estas graves acusações se tornem vazias, e até mesmo apropriadas pelos acusados. O paralelo entre Bolsonaro e Trump é a apropriação do termo “opressor” por parte dos apoiadores, em uma semelhança com os “deploráveis” trumpistas, palavra utilizada pela candidata Clinton para designar seus opositores, em seu pior momento na campanha.

Portanto, quando o melhor jornalista possível, ou o veículo mais respeitável faz criticas a Bolsonaro, o apoiador faz uma falsa equivalência de que a opinião expressa ali tem o mesmo valor de um dos opositores mais rasteiros. Neste cenário surgem as expressões de que New York Times, CNN, Folha de S. Paulo, El País Brasil, todos fazem parte de um conglomerado liberal-esquerdista da mídia que hoje não tem mais valor. O caso é muito semelhante nos EUA e no Brasil.

Então, como desaconselhar o voto em alguém que representa um perigo, sem citá-lo? Esta é a grande questão. E aí, cabe sair do lugar comum. Ao invés de classificar uma série de “ismos” para um candidato, que, de fato, não tem acusações importantes de corrupção ao seu cargo em um momento em que descalabros sobre a classe política vêm em velocidade incompreensível para o brasileiro comum, convide à reflexão.

Nenhuma reforma política mudará o sistema no Brasil que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão” antes de 2018. Por meio deste, o presidente tem o poder, mas tem de exercer o mandato oferecendo condições favoráveis a uma base aliada, correndo o risco de sofrer um processo de impeachment caso perca esta articulação. Bolsonaro pertence a um partido pequeno, o PSC, e por um muito provavelmente concorrerá às eleições. A votação da legenda deve ser baixa para o Congresso, o que levaria um presidente a ter de fazer uma coalizão com uma série de partidos. Isso indica que para governar, Bolsonaro terá de se aliar a um dos grandes, quem sabe até dois, entre PMDB, PSDB e PT.

Diferente de outros presidentes que não tinham propostas tão específicas, a situação de Bolsonaro é especial. Assim como Trump, caso assuma, teria de mostrar serviço, já que não pode deixar a sensação de ser como os outros, o que iria enfurecer seu eleitorado. Sem pragmatismo e com votações específicas para serem levadas à casa, o custo pago seria alto pelo minoritário presidente. A chance das barganhas serem ainda maiores que em mandatos anteriores é grande, e lá se vai o trabalho da Lava Jato.

O Congresso é só um dos desafios com os quais o futuro presidente do Brasil terá de lidar. O eleito irá assumir um país após sua mais grave crise econômica da história recente, e não podemos nos dar ao luxo de votar em uma eleição com base em ofensas rasteiras como as que vemos hoje na internet. Precisa-se, e talvez como nunca antes, discutir os grandes aspectos para colocar a nação com quase 14 milhões de desempregados nos eixos. Como mudar a carga tributária com desoneração do consumo? Um Banco Central independente pode valer à pena? Como incentivar a inovação no país, facilitando patentes privadas ou fomentando as universidades públicas? Como superar o gargalo da infraestrutura? Este é o tipo de questão que deve ser respondida, não se um congressista está certo ao cuspir em outro, já que foi ofendido.

A eleição de Bolsonaro é um cenário provável? Acredito que não. O sistema eleitoral americano é único, e a exemplo da França, nosso pleito tende a rechaçar candidatos mais extremos. Nota-se que não disse impossível. Mas uma votação expressiva de Bolsonaro é um grande retrocesso. O apoio que o pré-candidato deu a um torturador da ditadura é terrível. Expressões como as suas referentes aos quilombolas são muito negativas. A lista é enorme e há muitos bem mais familiarizados com ela para dissertá-la. Mas uma votação expressiva mostraria que parte da sociedade não está bem representada, e tem anseios reais, não podendo ser tachada com “deploráveis”. O filme se repete, mas dessa vez temos como apertar “pause”.

Até mesmo encontrar uma foto que não represente polarização é complicado (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)

sábado, 6 de maio de 2017

Judeus e muçulmanos contra inimigo em comum: a Frente Nacional

O relato “Why My Father Votes for Le Pen” publicado no New York Times nesta semana traz um excelente retrato sobre aqueles que sucumbem a fenômenos como o “Brexit”, Trump e Marine Le Pen. Antes de quaisquer rotulações pejorativas há de se ressaltar que grande parte destes eleitores compõe os mais afetados, ou mesmo excluídos, pelas mudanças ocorridas nos últimos anos. Portanto, quando uma candidata do sistema responsável por estas mudanças como Hillary Clinton chama estes de “deploráveis” há uma prova explicita de que o governo não está funcionando de maneira igual para todos.

Diferentemente do “Brexit” e de Trump, a Frente Nacional acumula apoio há muitos anos, não se tratando de um fenômeno efêmero. O pai de Marine Le Pen e fundador do partido, Jean-Marie Le Pen, participou das eleições presidenciais entre 1982 a 2012, quando sua filha disputou o pleito. Em 2002 o candidato extremista chegou inclusive ao segundo turno. No caso norte-americano, Trump apareceu como um ponto fora da curva no partido republicano, conhecido pela sigla G.O.P, para Grand Old Party, agremiação que ostenta com orgulho ser “o partido de Abraham Lincoln”. Por sua vez na França, Marine Le Pen busca amenizar o histórico de seu partido, o que a levou a afastar até mesmo seu pai da Frente Nacional em 2015.

A postura de Marine Le Pen é eleitoralmente acertada. A rejeição a seu pai na França é quase unânime, prova disso são os 82% dos votos para seu opositor Jacques Chirac no segundo turno das eleições de 2002. Jean-Marie Le Pen é um antissemita explícito, chegando a declarar que o Holocausto, a maior atrocidade de que se tem registro na atividade humana, teria sido um “detalhe” na História. O político é visto como próximo à França de Vichy, regime chamado de colaboracionista pelos franceses, que governou o país em acordo com os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, inclusive entregando dezenas de milhares de judeus aos alemães, e que seriam mortos no “detalhe” de Jean-Marie Le Pen.

Na tentativa de amenizar a visão sobre a Frente Nacional, nos últimos meses Marine Le Pen afastou do partido uma série de integrantes que fizeram afirmações antissemitas, ou que tivessem ligação com grupos neonazistas. Mas para muitos esta não passava de uma maquiagem com fins eleitorais e a candidata acabaria em algum momento externando as raízes do partido. E este momento ocorreu pouco antes do primeiro turno, quando Le Pen negou as atribuições colaboracionistas do França de Vichy, que terminaram com dezenas de milhares de judeus em Auschwitz. A declaração causou pânico na comunidade judaica, e muitos já planejam a migração para Israel em caso de vitória da Frente Nacional.

Outra comunidade aflita com a possibilidade de vitória de Le Pen é a muçulmana. A candidata comparou muçulmanos rezando nas ruas francesas com a ocupação nazista. Uma das principais plataformas políticas da Frente Nacional é contra a imigração, e como grande parte dos imigrantes na França têm origem em países de maioria muçulmana, muitos temem os reflexos que um governo de Le Pen pode causar. Outro ponto importante para sua campanha é o combate ao terrorismo “islâmico” e faz alusões a cercear direitos dos muçulmanos para tal.

Enorme parcela da comunidade muçulmana francesa tem origem argelina, antiga colônia da França que alçou independência em 1962 após um sangrento conflito. Entre os franceses, assim como em outras antigas metrópoles, há um sentimento de revisionismo pelos abusos cometidos contra os locais durante o período colonial. A retratação junto aos argelinos é um ponto da campanha de Macron extremamente rechaçado por Le Pen. Jean-Marie Le Pen combateu na Guerra de Independência da Argélia, na qual é acusado de tortura.

Por mais que sejam válidas as argumentações de que indivíduos devem ser separados do legado de seus parentes, o caso da Frente Nacional é único. A legenda foi criada por Jean-Marie Le Pen com um traço do que há de pior no antissemitismo europeu, que tem origens muito anteriores ao nazismo, servindo como base para este. Jean-Marie conquistou apoio de parte da população mais excluída dos franceses culpando judeus e imigrantes por conta de seus problemas. Sua declaração de que o Ebola poderia conter os problemas de imigração é uma das mais repugnantes de um líder público nos últimos anos. E por sua vez Marine, a versão soft da xenofobia, apresenta uma Frente Nacional como um partido diferente do fundado por seu pai, no entanto baseia uma campanha eleitoral no medo dos franceses por meio da islamofobia e em culpar a imigração pelos problemas de seu país. Macron não é essa Coca-Cola toda. Mas a Frente Nacional é indefensável.

Marine e seu pai, que a mesma expulsou do seu próprio partido. Imagina o almoço em família (FOTO: Reuters)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Coreia do Norte: mais geopolítica do que pânico

A despeito do que é amplamente divulgado na imprensa, a principal questão da Física relacionada ao regime norte-coreano não é a nuclear, mas a “Lei da Inércia”. O atual status quo da complexa equação geopolítica na Coreia do Norte é favorável aos cinco principais atores envolvidos, e para isto, é vital a visão de que o regime é dominado por um lunático disposto a explodir o mundo a qualquer momento. Evidentemente, não é bem assim.

As fake news em relação ao regime norte-coreano são divulgadas há muito tempo, e com um potencial sem comparações, já que não há porta-vozes na comunidade internacional para defender o contraditório. Uma mentira é amplamente divulgada, o mundo acredita, e se por um acaso for falsa, há a sensação “ah, mas nada impede que fosse verdade”.

Alguns fatos: a Coreia do Norte possui embaixada no Brasil, retribuída com uma representação brasileira em Pyongyang. A capital norte-coreana vive um boom imobiliário, e bem nascidos no regime vão ampliando seu poder de compra. O principal destino de exportação da Coreia do Norte é a China, sua principal aliada, mas em segundo lugar vem a longínqua Argélia e em terceiro a Coreia do Sul, com quem, em tese, o norte continua em guerra, já que em 1953 apenas um armistício foi assinado. O país é membro da ONU.

As ameaças militares da Coreia do Norte são a maior justificativa para os EUA manterem cerca de 35 mil soldados na Península Coreana, região cada vez mais importante para o comércio global com o crescimento chinês. Com a onda recente de tensões, os norte-americanos estão instalando a estrutura antimísseis Thaat na Coreia do Sul, o que é criticado pela China, que teme um aumento do poder dos EUA na região. O Thaat é um dos principais assuntos da campanha eleitoral sul-coreana, antecipado por conta do impeachment da presidente conservadora Park Geun-Hye, favorável ao escudo. Na liderança das pesquisas para a eleição do próximo 9 de maio está um liberal, contrário ao Thaat, e seus adversários usam a ameaça do norte para criticá-lo.

A possibilidade de o Japão ser atacado é uma das poucas justificativas que o governo tem para um tom belicista. O país, que a exemplo da Alemanha adquiriu uma guinada pacifista após a derrota na Segunda Guerra, nos anos recentes sob o comando de Shinzo Abe vem sendo levado por um tom nacionalista, retomando algumas posturas históricas. Até a Segunda Guerra Mundial, o Japão ocupava a Península da Coreia e regiões da China.

Com o regime norte-coreano a China tem um importante contraponto em meio aos aliados norte-americanos no Pacífico. Fiel incondicionalmente aos chineses, a ditadura de Kim Jong-un serve como um tampão a quaisquer expansões dos EUA na região. Para a crescente economia chinesa, os subsídios dispendidos à pequena Coreia do Norte são mais em conta do que investiduras militares. Além do mais, um colapso da ditadura levaria milhões de refugiados a cruzarem a fronteira para o país que já é o mais populoso do mundo.

A Coreia do Norte quer ser um país com arsenais nucleares, e faz alusão às outras oito nações que possuem ogivas, que totalizam mais de 13 mil pelo mundo, para justificar as suas. Os EUA não reconhecem, fazem jogo duro e afirmam que somente a desistência de possuir armas nucleares pode levar ao fim das sanções, que castigam principalmente a população no interior. Por meio da filosofia “Juche” o governo controla seu povo para servir sua pátria contra a ameaça “imperialista” a todo custo. Os norte-coreanos acreditam durante toda vida estar a cargo do bem maior do “Rei Sol”, Kim Il-sung, avô do atual ditador, e que fundou a nação. Desta forma, todos os homens têm de servir ao exército, o quinto maior do mundo e, proporcionalmente, por sua população de cerca de 25 milhões de habitantes, a maior força armada global.

Kim Jong-un tem motivos para temer abandonar seu programa nuclear. Já no exercício do poder viu a OTAN invadir a Líbia para depor o ditador Muammar Khadafi, que sempre almejou armamentos nucleares, em 2011. Em 2003 viu os EUA invadirem sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, ao qual a China tem poder de veto, o Iraque para dar fim à ditadura de Saddam Hussein. Não é impossível que Kim Jong-un aceite um acordo, bem mais difícil do que o alcançado com o Irã, para pôr fim a suas armas nucleares, mas será necessária muita diplomacia chinesa e concessões ao regime.

O ponto fora da curva neste momento é Trump. O inexperiente e midiático presidente é imprevisível, e pode, sim, colocar à prova esta verdadeira aula de pragmatismo geopolítico. À frente de seu Departamento de Estado está Rex Tillerson, mais contido, mas com pouca experiência diplomática. A expectativa pela prudência fica a cargo dos ex-militares, em especial o Secretário de Defesa, Jim Mattis, e o conselheiro de Segurança Nacional, general McMaster.

Qualquer passo em falso seria trágico. Um ataque preventivo dos EUA levaria a Coreia do Norte a atacar o sul, com potencial de atingir Seul, a apenas 50  km da fronteira, no que pode ser a maior tragédia da história, na cidade com cerca de 10 milhões de habitantes. O regime norte-coreano não é suicida. Sobrevive no poder há 69 anos, se manteve após o fim da URSS, o que levou o país a uma das maiores fomes coletivas na história recente, quando inclusive teve de contar com ajuda da comunidade internacional. Perpassou pelas mudanças chinesas, país maoísta a principio, mas que gradualmente se integrou ao capital global com as reformas de Deng Xiaoping e a adesão à OMC. E do outro lado, Trump, que balança com 100 dias de mandato.

Palpitaço
Até aqui, análise. Mas neste caso acho justo não me eximir, e tentar traçar os possíveis panoramas. Em curto prazo, a situação deve aumentar em tensões, com um tom mais beligerante dos dois lados e cercado de ameaças. Mais sanções ao regime serão impostas pela ONU, mas sem grande impacto. Em médio, é possível que a Coreia do Norte tenha êxito em seu sexto teste nuclear, obrigando os EUA a uma reação mais significativa. Nada muito sério deve ocorrer, mas será preciso intensa diplomacia chinesa. Em longo, não acredito que o regime resista. Em um mundo extremamente conectado, cada vez menos norte-coreanos estarão dispostos a passar fome para manter uma ditadura com propósitos ultrapassados, enquanto a alguns quilômetros ao sul tem a sua disposição os benefícios da pujante economia sul-coreana. Não me arrisco além.

Boa parte do comércio global hoje passa por esta região

Obs: Para o mínimo de entendimento com isenção sobre a Coreia do Norte, o documentário “The Propaganda Game” é necessário. O filme perpassa o país sem juízo de valor. Tem no Netflix.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

"O maior viral da história" é só isso

Crianças, uma narrativa simplista com o “grande vilão”, aparente proximidade com o público e muito espetáculo. Estes elementos ajudam a explicar como “Kony 2012”, um documentário de 30 minutos, conseguiu se tornar o chamado “maior viral da história”, apesar de mais longo que os vídeos de habitual sucesso, ultrapassando 100 milhões de visualizações (mesma marca que em 2015).

No vídeo, um pai norte-americano conta a seu filho as atrocidades que Joseph Kony, líder do movimento Lord Resistency Army (LRA), cometeu em Uganda, sobretudo a crianças da mesma idade do ouvinte. Comportamento utilizado por milícias em regiões pobres em todo o mundo, o LRA sequestrou milhares de jovens no centro da África, e cometeu as maiores atrocidades inimagináveis, com parte destes sendo obrigados a matarem seus próprios pais. Em 2005, a Corte Penal Internacional apresentou contra Kony as seguintes acusações: crimes contra humanidade, assassinato, violação, escravidão e escravidão sexual, crimes de guerra, trato cruel a civis, ataque a civis, pilhagem e recrutamento forçado de menores. Indefensável.

À época, celebridades que vão desde Justin Bieber e Lady Gaga as engajadas Oprah Winfrey e Angelina Jolie se manifestaram sobre o vídeo. O viral conclama uma ação da comunidade internacional, sobretudo Obama, para que Kony seja encontrado e receba a punição adequada. Ao fim do vídeo, têm se a impressão de que Hitler está solto e que nós não estamos fazendo nada, mas podemos ajudar. A questão é que em 2011, um ano antes, Obama já estava agindo ativamente contra o LRA.

O que a efemeridade de um viral não dá conta são as circunstâncias envolvidas na formação do LRA. O grupo surge no norte de Uganda, região devastada durante o governo de Idi Amin, o presidente do país em “O Último Rei da Escócia”. Durante o regime de Amin, que tinha como seu principal aliado Muammar Khadafi, por conta dos ideais de pan-africanismo do líbio, massacres eram comuns no norte de Uganda, inclusive com muitos sendo jogados a crocodilos. Neste cenário surge uma gama de milícias, em especial uma radical religiosa que quer instaurar um governo com base nos preceitos básicos de sua fé. No caso, não o Corão, mas os Dez Mandamentos. Seu líder não é Osama Bin Laden nem Abu Bakr Al-Baghdadi, mas Joseph Kony, que acredita ter várias almas e que ele e seus seguidores não podem ser atingidos por balas.

Um grupo extremista religioso não consegue financiamento e AK’s47 em uma das regiões mais isoladas do mundo só com a ajuda divina. O governo do Sudão viu no LRA uma oportunidade de expandir sua influência geopolítica, em meio a uma instável Uganda. À frente deste, Omar Al-Bashir, também conhecido nos Tribunais Internacionais. Neste caso, por conta do genocídio cometido no Sudão, especialmente em Darfur, outra causa que chegou a aparecer no noticiário internacional e que reuniu de Jolie a George Clooney. Em Uganda, Amin deixava o poder para o retorno de Obote, seu antecessor. Obote fica no poder até 85, quando é substituído por Museveni, há 32 anos à frente do país. Nenhuma das trocas sem derramamento de sangue.

Na relativa estabilidade de governo atingida com Museveni, a prioridade passou a ser derrotar o LRA. Em Uganda, a missão foi relativamente atingida. O problema é que nas redondezas, o grupo encontrou terreno fértil. O Congo é marcado há anos por sua instabilidade, e em 2012 e 2013, a República Centro-Africana (RCA) e o Sudão do Sul, respectivamente, foram tomados por conflitos civis, étnicos e religiosos, que não se solucionaram até hoje. Qualquer semelhança com a ida do Estado Islâmico para a Síria não é mera semelhança. Em linhas gerais o conflito na RCA se dá por cristãos contra muçulmanos e contou recentemente com a mediação do Papa Francisco em uma visita à capital do país, Bangui.

Analistas e militares não convergem sobre onde está Joseph Kony hoje. Provavelmente não estará em Uganda, mas pode estar no Sudão do Sul, na RCA ou no Congo. Quem sabe já tenha até mesmo padecido, e, a mensagem, por termos estratégicos, não tenha sido divulgada, assim como o Mulá Omar, líder do Talibã, supostamente morto em 2013, com informação divulgada em 2015, mas analistas acreditando que o fato tenha ocorrido antes disso. A questão é que, com pragmatismo e o deslocamento correto de tropas, os esforços em conjunto de Obama com o governo de Uganda e alguns aliados locais fizeram o LRA cair de 2000 membros para cerca de 100 atualmente.

As estimativas são de que a “caça a Kony” no centro da África tenha custado até US$ 800 milhões aos EUA. O valor é próximo a 10% do PIB do Sudão do Sul, orçado em US$ 9bi em 2015. O país mais novo do mundo é o mais provável refúgio hoje de Kony, e vive uma intensa guerra civil com mais de 200 mil mortos, com um grande número de cidadãos em risco alimentar. Pra mim já basta. Mas dá outro viral...

O problema e o espetáculo. Basta escolher (a trilha sonora é sensacional)




quinta-feira, 13 de abril de 2017

"Sim" ou "não" ao "Sultão" na Turquia

Itália e Reino Unido provaram em 2016 que os efeitos de um referendo vão muito além da consulta que é feita diretamente à população. Nos dois casos, a pergunta central era a aprovação ou não de uma série de reformas constitucionais, e a saída ou não da União Europeia, respectivamente. No entanto, a derrota de Matteo Renzi e David Cameron, que haviam proposto os referendos, causou ingovernabilidade e ambos foram obrigados a renunciar. Na Turquia, que Erdogan governa desde 2002 junto a seu AKP, não será diferente.

Os elementos centrais do referendo turco do próximo domingo, 16, dizem respeito ao aumento do poder do presidente, na prática eliminando a figura do primeiro-ministro, e a possibilidade da prorrogação do mandato, o que permitiria Erdogan permanecer no poder até 2029. O governo que propõe as mudanças argumenta que estas tornariam a governança turca mais sólida, já que não sujeitaria o executivo à instabilidade do parlamento. Além disso, o AKP afirma que o novo modelo dará mais independência ao legislativo, que poderia investigar o presidente. Ao lado do AKP estão os nacionalistas do MHP, desde a tentativa de golpe em julho de 2016 favoráveis ao governo.

Para grande parte da Turquia o voto no “sim” representa um voto em Erdogan e no AKP. Desde quando foi prefeito em Istambul na década de 90, o atual presidente se postou como alguém ligado aos mais pobres, e que atende aos anseios destes. Nas regiões menos favorecidas do país, o voto no AKP é visto como uma retribuição ao desenvolvimento levado pelo partido que tem em sua sigla uma referência ao desenvolvimento e justiça, e mesmo em uma consulta referente a termos de governabilidade, esta população não deve distinguir o voto de estradas e hospitais criados por Erdogan.

Na Anatólia, mais distante da Europa e que conta com importante apoio à islamização crescente no governo de Erdogan, o “sim” ganha com folga nas pesquisas. Nas últimas eleições legislativas, 87% da Anatólia Oriental votou no AKP. A principal oposição vem do Oeste da Turquia, banhado pelo mar Egeu e tradicionalmente mais voltado à Europa. Esta região conta com respaldo do CHP, partido dos kemalistas, responsáveis pela laicização do Estado Turco desde sua constituição em 1923. Ao CHP soma-se o HDP, sigla composta pelos curdos, grupo étnico que vem em constantes conflitos com Erdogan nos últimos anos, e que teve seu líder preso após a tentativa de golpe do ano passado.

Vantagem grande do "sim" na Anatólia


O governo de Erdogan deu uma guinada radical após a tentativa de golpe de 2016. Jornalistas e a imprensa como um todo passaram a ser perseguidos, com a Turquia ostentando o número de país com mais membros da profissão presos no mundo. Somam-se a estes professores, juízes, militares e funcionários públicos, que compõe o número de 41 mil presos em menos de um ano. As acusações são da relação destes com o gulenismo, movimento liderado pelo clérigo Fethullah Gulen, e que é responsabilizado pelo governo pela tentativa de golpe. Gulen nega as acusações, e suas ramificações, que vão de áreas como universidades a jornais, padecem na Turquia.

O cenário fez com que a Turquia passasse da pontuação de 53 em 2016 para 38 em 2017 no relatório Freedom House, que avalia de 0 a 100 as liberdades em cada país, a segunda maior queda no mundo. As restrições fizeram com que a Europa aumentasse suas críticas ao país, que é candidato desde 2004 a entrar na União Europeia. A tensão ficou ainda maior quando Holanda e Alemanha não permitiram que ministros do governo turco fizessem comícios a favor do “sim” em seus territórios, que contam com uma grande comunidade apta a votar no referendo. Em contrapartida Erdogan fez alusão às práticas nazistas, o que criou uma crise diplomática e afastou a Turquia do bloco.

As pesquisas demonstram um empate técnico no resultado do referendo. Em caso de derrota, Erdogan continuará no poder, e tem a possibilidade de dissolver o parlamento para buscar mais força e legitimidade. No entanto, desde a repressão a tentativa de golpe do ano passado a Turquia já não representa os ideais kemalistas e gulenistas. O país que no começo do século aparentava ser um modelo para os em desenvolvimento, assim como o Brasil, hoje caminha mais para uma ditadura como outras no Oriente Médio, ou mesmo para o modelo russo de Putin, que vem cada vez mais se aproximando de Erdogan.

Ainda assim, como nos casos citados no começo, um referendo nunca é só um referendo. A vitória do “não” pode colocar limites aos expurgos de Erdogan, e mostrar que a população não deve aceitar eternamente quaisquer abusos de seus políticos, em troca do que estes deram a esta, o que não é favor, e sim obrigação. O presidente que vem sendo chamado de “Sultão do Bósforo” teria assim uma aula de democracia, aceitando ou não. No relatório Freedom House, com seus 38 pontos, a Turquia ainda é considerada “parcialmente livre”. A vitória do “sim” pode mudar isto.

"Sim" ou "não" ao "Sultão"? FOTO: Chris McGrath / Getty Images

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Brasil não virou uma Venezuela, mas criou algumas

Durante o governo Dilma, não era incomum acusações de que os petistas estivessem tentando transformar o Brasil em “uma Venezuela”. A crise no país vizinho já se arrastava há algum tempo nesta época, e determinados setores temiam que esta pudesse se repetir aqui. E em partes, se repetiu como nos mostram as tensões no Espírito Santo e no Rio de Janeiro envolvendo, sobretudo, a segurança pública.

A Venezuela conta com as maiores reservas de petróleo do mundo. Os hidrocarbonetos representam 95% das exportações do país, e correspondem a cerca de 25% de seu PIB. Quando o barril de petróleo chegou próximo aos 150 dólares, o governo chavista aumentou exponencialmente os gastos públicos. Com a queda no valor da commoditie, que chegou a custar menos de 30 dólares em 2016, os venezuelanos passaram a conviver com uma crise que se alastra até hoje. Índices como a ausência de 70% dos produtos em supermercados e a maior inflação do mundo marcaram a gravidade da situação. A violência se alastrou, levando Caracas ao posto de cidade mais violenta da Terra, com 119 homicídios a cada 100 mil habitantes em 2015.

Em 2017, o posto de município mais perigoso poderia ser tomado por alguma cidade do Espírito Santo, em caso de prolongamento da crise da segurança pública. Em uma semana no Estado, 121 pessoas foram mortas, número que supera mais de 90 países em um ano inteiro. Estima-se que o Espirito Santo, segundo maior beneficiário dos royalties do petróleo, tenha sofrido uma queda recente no PIB de 19%, situação que se agravou por conta da tragédia envolvendo a Samarco.

No Rio de Janeiro, grande receptor dos fundos oriundos do petróleo, a queda estimada no PIB foi de 7%, mas em determinadas cidades a situação é bem mais grave. Em 2012, com o barril ainda em alta, a “Capital Nacional do Petróleo”, Macaé (RJ), recebeu repasses do governo federal de cerca de 605 milhões de reais, destes quase 90% relativos aos royalties. Em 2016, os recursos ficaram entorno de 266 milhões, menos da metade do recebido quatro anos atrás. Campos dos Goytacazes (RJ), que conta com cerca de 500 mil habitantes, mas graças aos royalties é um dos principais beneficiários de recursos da União, recebeu desta cerca de 1,625 bilhão em 2012, com 82% oriundos dos royalties. Em 2016 os royalties representaram aproximadamente 352 milhões para a cidade, pouco mais de 20% de quatro anos atrás.

Apesar de ter parte importante de sua economia centrada no turismo, Cabo Frio (RJ) sentiu o impacto da queda acentuada no preço do barril. Em 2012, 80% dos recursos federais provinham dos royalties, uma quantia de aproximadamente 318 milhões de reais. Em 2016, o governo repassou entorno de 82 milhões pela commoditie. Mesmo que a participações dos royalties nas transferências para o município tenha caído substancialmente no período, certamente a queda teve grande impacto no orçamento da cidade com menos de 200 mil habitantes.

A grave crise levou ao desemprego. Cerca de 20% dos postos de trabalho fechados no Brasil foram no Rio de Janeiro. A capital do Estado registrou o maior número de novos desempregados em 2016. Além da situação quantitativa, um percurso ao redor do Rio de Janeiro apresenta cenas dignas do Cinturão da Ferrugem nos Estados Unidos, por exemplo, em Itaboraí (RJ), que seria uma das grandes beneficiadas com os royalties, mas que conta hoje com uma “manada de elefantes brancos”, como um grande shopping sem movimento e prédios abandonados.

Assim como na Venezuela, o componente de crise econômica e desemprego gerou um aumento na violência. Em média, em todo o estado do Rio de Janeiro 16 pessoas são assassinadas por dia. No ranking mundial encabeçado por Caracas, que leva em conta homicídios em cidades com mais de 300 mil habitantes, figuram Vitória (ES) na 31º posição e Campos dos Goytacazes (RJ) na 39º, com 42 e 36 homicídios a cada 100 mil habitantes respectivamente.


A lista de países produtores de petróleo no mundo abrange situações bem distintas para continuar sendo reproduzida a ideia de “maldição do ouro negro”. Em nações como Venezuela e Angola, a corrupção e a incompetência generalizaram por todo território a crise oriunda pela queda do preço do barril. No Brasil, país que depende muito menos de um preço alto da commoditie para equilibrar as contas, a má distribuição do pacto federativo gerou um colapso para dois estados, que se veem em falência, e sem garantir sequer a segurança da população. No caso do Espírito Santo, a falta de reajuste salarial deixou os policiais militares com um dos menores salários do país, enquanto no Rio de Janeiro, que não figura entre os melhores ordenados para a categoria, a falta de pagamentos há meses gerou a crise. A propósito, os maiores salários para estes profissionais estão no Distrito Federal, onde o “efeito dominó” da greve não ameaça chegar. Ali, nada de Venezuela. Nem mesmo para se pronunciar sobre a crise no país vizinho.

Situação em Vitória (ES) se descontrolou com greve, mas já não era tranquila /FOTO: (Paulo Whitaker/Reuters)

sábado, 4 de fevereiro de 2017

A "Recessão Geopolítica" na África será uma "marolinha"?

“Recessão geopolítica” foi o termo utilizado pela agência de classificação de risco político Eurasia para definir 2017. Assim como os ciclos econômicos apresentam recessões, a geopolítica a partir desta ideia não seria sempre progressiva, e estaríamos em um momento de retrocesso, não visto desde o fim da Segunda Guerra. Os princípios que moldaram a atual Ordem Mundial, como o livre-comércio, as alianças multilaterais, as organizações internacionais, e a expansão da democracia e dos direitos humanos, não estiveram tão em tanto risco desde 1945.

Dois fenômenos são em grande parte os responsáveis pela ideia de “geopolítica em recessão”: Trump e Brexit. Com o segundo, a União Europeia perdeu sua segunda maior economia, viu movimentos eurocéticos se proliferarem por seus países, e experimenta o momento de maior risco do projeto europeu, principal caso de sucesso de uma aliança multilateral. Com Trump, o livre-comércio se vê cada vez mais ameaçado, simbolizado com a rejeição à Parceria do Pacífico e as provocações ao NAFTA. A ONU sofreu ameaças de corte de financiamentos, e a OTAN, chamada de obsoleta pelo presidente, corre mais riscos do que nunca. O conceito de “American First” e os primeiros dias de mandato são boas mostras de que Trump não focará na expansão da democracia e dos direitos humanos.

Outra organização internacional que vem passando por maus momentos é o Tribunal Penal Internacional (TPI). A fragilidade da instituição se dá por conta das ameaças de boicote e até mesmo abandono da Corte por parte de países africanos, que acreditam sofrer perseguição do órgão. A grande maioria dos condenados até hoje pelo TPI são de origem africana, enquanto crimes de guerra em variados países, que vão desde a Colômbia até à Palestina estão sem veredictos.

A perseguição que os países da África acreditam sofrer por parte do TPI é uma das razões que explicam a relevância que teve a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, em maio de 2016. A prisão perpétua decretada ao ditador foi o primeiro caso de um chefe de Estado condenado em outro país dentro do continente africano, no caso, Senegal. A sentença foi expedida pelo tribunal africano extraordinário, criado pela União Africana (UA), e é vista como uma contraposição do continente ao passado colonial e ao paternalismo, além de estabelecer precedentes para que outros líderes possam ser julgados na própria África.

A própria UA é outra prova da força que os órgãos internacionais vêm conseguindo estabelecer no continente. Nesta semana, o Marrocos, único país do continente que não fazia parte da União, anunciou que voltará a ingressar o grupo. Os marroquinos ficaram de fora por 33 anos da UA, por conta da presença da região separatista do Saara Ocidental no órgão, que é o único organismo internacional a reconhecer a independência do território. Outro importante fator foi a sucessão no cargo de presidente da UA, até então ocupado por Robert Mugabe, o ditador zimbabuano desde 1980, e que tenta a reeleição com seus 93 anos.

A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A ausência de Barrow o impediu, por exemplo, de acompanhar o funeral de seu filho de sete anos, morto por uma mordida de cachorro no período.

O cenário que se desenhava para Gâmbia era de uma sangrenta guerra civil. Os turistas estrangeiros foram evacuados do país, que via suas ruas desertas cercadas de apreensão. A comunidade internacional, focada com as repercussões da vitória de Trump, pouco fez além de condenar a insistência de Jammeh. Neste cenário, e com respaldo da UA, a CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. Barrow tomou posse na embaixada de Gâmbia em Dakar, e foi poucos dias depois para Banjul, levando ao festejo uma multidão que o aguardava no aeroporto.

A transição democrática em Gâmbia, sem nenhuma gota de sangue derramado, é uma das grandes histórias deste 2017 que já começou tão turbulento. Em meio à “recessão geopolítica”, uma organização de países africanos desconhecida de grande parte do mundo conseguiu evitar uma trágica guerra civil. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. Mas enquanto as antigas metrópoles estão se voltando cada vez mais para dentro, os africanos entenderam o significado de “juntos somos mais fortes”.
                                         Países da CEEAO. De pouco conhecida a vital para a paz

Excelente fonte de informação sobre o que acontece de bom na região (espanhol): http://elpais.com/agr/africa_no_es_un_pais/a/