Itália e
Reino Unido provaram em 2016 que os efeitos de um referendo vão muito além da
consulta que é feita diretamente à população. Nos dois casos, a pergunta
central era a aprovação ou não de uma série de reformas constitucionais, e a
saída ou não da União Europeia, respectivamente. No entanto, a derrota de
Matteo Renzi e David Cameron, que haviam proposto os referendos, causou ingovernabilidade
e ambos foram obrigados a renunciar. Na Turquia, que Erdogan governa desde 2002
junto a seu AKP, não será diferente.
Os
elementos centrais do referendo turco do próximo domingo, 16, dizem respeito ao
aumento do poder do presidente, na prática eliminando a figura do
primeiro-ministro, e a possibilidade da prorrogação do mandato, o que
permitiria Erdogan permanecer no poder até 2029. O governo que propõe as
mudanças argumenta que estas tornariam a governança turca mais sólida, já que
não sujeitaria o executivo à instabilidade do parlamento. Além disso, o AKP
afirma que o novo modelo dará mais independência ao legislativo, que poderia
investigar o presidente. Ao lado do AKP estão os nacionalistas do MHP, desde a
tentativa de golpe em julho de 2016 favoráveis ao governo.
Para
grande parte da Turquia o voto no “sim” representa um voto em Erdogan e no AKP.
Desde quando foi prefeito em Istambul na década de 90, o atual presidente se
postou como alguém ligado aos mais pobres, e que atende aos anseios destes. Nas
regiões menos favorecidas do país, o voto no AKP é visto como uma retribuição
ao desenvolvimento levado pelo partido que tem em sua sigla uma referência ao
desenvolvimento e justiça, e mesmo em uma consulta referente a termos de
governabilidade, esta população não deve distinguir o voto de estradas e hospitais criados por Erdogan.
Na Anatólia,
mais distante da Europa e que conta com importante apoio à islamização
crescente no governo de Erdogan, o “sim” ganha com folga nas pesquisas. Nas
últimas eleições legislativas, 87% da Anatólia Oriental votou no AKP. A
principal oposição vem do Oeste da Turquia, banhado pelo mar Egeu e tradicionalmente
mais voltado à Europa. Esta região conta com respaldo do CHP, partido dos
kemalistas, responsáveis pela laicização do Estado Turco desde sua constituição
em 1923. Ao CHP soma-se o HDP, sigla composta pelos curdos, grupo étnico que
vem em constantes conflitos com Erdogan nos últimos anos, e que teve seu líder
preso após a tentativa de golpe do ano passado.
Vantagem grande do "sim" na Anatólia
O
governo de Erdogan deu uma guinada radical após a tentativa de golpe de 2016.
Jornalistas e a imprensa como um todo passaram a ser perseguidos, com a Turquia
ostentando o número de país com mais membros da profissão presos no mundo.
Somam-se a estes professores, juízes, militares e funcionários públicos, que
compõe o número de 41 mil presos em menos de um ano. As acusações são da
relação destes com o gulenismo, movimento liderado pelo clérigo Fethullah Gulen,
e que é responsabilizado pelo governo pela tentativa de golpe. Gulen nega as
acusações, e suas ramificações, que vão de áreas como universidades a jornais,
padecem na Turquia.
O
cenário fez com que a Turquia passasse da pontuação de 53 em 2016 para 38 em
2017 no relatório Freedom House, que
avalia de 0 a 100 as liberdades em cada país, a segunda maior queda no mundo.
As restrições fizeram com que a Europa aumentasse suas críticas ao país, que é
candidato desde 2004 a entrar na União Europeia. A tensão ficou ainda maior
quando Holanda e Alemanha não permitiram que ministros do governo turco
fizessem comícios a favor do “sim” em seus territórios, que contam com uma
grande comunidade apta a votar no referendo. Em contrapartida Erdogan fez
alusão às práticas nazistas, o que criou uma crise diplomática e afastou a
Turquia do bloco.
As
pesquisas demonstram um empate técnico no resultado do referendo. Em caso de
derrota, Erdogan continuará no poder, e tem a possibilidade de dissolver o
parlamento para buscar mais força e legitimidade. No entanto, desde a repressão
a tentativa de golpe do ano passado a Turquia já não representa os ideais
kemalistas e gulenistas. O país que no começo do século aparentava ser um
modelo para os em desenvolvimento, assim como o Brasil, hoje caminha mais para
uma ditadura como outras no Oriente Médio, ou mesmo para o modelo russo
de Putin, que vem cada vez mais se aproximando de Erdogan.
Ainda assim,
como nos casos citados no começo, um referendo nunca é só um referendo. A
vitória do “não” pode colocar limites aos expurgos de Erdogan, e mostrar que
a população não deve aceitar eternamente quaisquer abusos de seus políticos, em
troca do que estes deram a esta, o que não é favor, e sim obrigação. O
presidente que vem sendo chamado de “Sultão do Bósforo” teria assim uma aula de
democracia, aceitando ou não. No relatório Freedom
House, com seus 38 pontos, a Turquia ainda é considerada “parcialmente
livre”. A vitória do “sim” pode mudar isto.
"Sim" ou "não" ao "Sultão"? FOTO: Chris McGrath / Getty Images
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