Crianças,
uma narrativa simplista com o “grande vilão”, aparente proximidade com o público
e muito espetáculo. Estes elementos ajudam a explicar como “Kony 2012”, um
documentário de 30 minutos, conseguiu se tornar o chamado “maior viral da
história”, apesar de mais longo que os vídeos de habitual sucesso, ultrapassando
100 milhões de visualizações (mesma marca que em 2015).
No
vídeo, um pai norte-americano conta a seu filho as atrocidades que Joseph Kony,
líder do movimento Lord Resistency Army (LRA), cometeu em Uganda, sobretudo a
crianças da mesma idade do ouvinte. Comportamento utilizado por milícias em
regiões pobres em todo o mundo, o LRA sequestrou milhares de jovens no centro
da África, e cometeu as maiores atrocidades inimagináveis, com parte destes sendo
obrigados a matarem seus próprios pais. Em 2005, a Corte Penal Internacional
apresentou contra Kony as seguintes acusações: crimes contra humanidade,
assassinato, violação, escravidão e escravidão sexual, crimes de guerra, trato
cruel a civis, ataque a civis, pilhagem e recrutamento forçado de menores. Indefensável.
À época,
celebridades que vão desde Justin Bieber e Lady Gaga as engajadas Oprah Winfrey
e Angelina Jolie se manifestaram sobre o vídeo. O viral conclama uma ação da
comunidade internacional, sobretudo Obama, para que Kony seja encontrado e
receba a punição adequada. Ao fim do vídeo, têm se a impressão de que Hitler
está solto e que nós não estamos fazendo nada, mas podemos ajudar. A questão é
que em 2011, um ano antes, Obama já estava agindo ativamente contra o LRA.
O que a
efemeridade de um viral não dá conta são as circunstâncias envolvidas na
formação do LRA. O grupo surge no norte de Uganda, região devastada durante o
governo de Idi Amin, o presidente do país em “O Último Rei da Escócia”. Durante
o regime de Amin, que tinha como seu principal aliado Muammar Khadafi, por
conta dos ideais de pan-africanismo do líbio, massacres eram comuns no norte de
Uganda, inclusive com muitos sendo jogados a crocodilos. Neste cenário surge uma
gama de milícias, em especial uma radical religiosa que quer instaurar um
governo com base nos preceitos básicos de sua fé. No caso, não o Corão, mas os
Dez Mandamentos. Seu líder não é Osama Bin Laden nem Abu Bakr Al-Baghdadi, mas
Joseph Kony, que acredita ter várias almas e que ele e seus seguidores não
podem ser atingidos por balas.
Um grupo
extremista religioso não consegue financiamento e AK’s47 em uma das regiões
mais isoladas do mundo só com a ajuda divina. O governo do Sudão viu no LRA uma
oportunidade de expandir sua influência geopolítica, em meio a uma instável
Uganda. À frente deste, Omar Al-Bashir, também conhecido nos Tribunais
Internacionais. Neste caso, por conta do genocídio cometido no Sudão,
especialmente em Darfur, outra causa que chegou a aparecer no noticiário internacional
e que reuniu de Jolie a George Clooney. Em Uganda, Amin deixava o poder para o
retorno de Obote, seu antecessor. Obote fica no poder até 85, quando é
substituído por Museveni, há 32 anos à frente do país. Nenhuma das trocas sem
derramamento de sangue.
Na
relativa estabilidade de governo atingida com Museveni, a prioridade passou a
ser derrotar o LRA. Em Uganda, a missão foi relativamente atingida. O problema
é que nas redondezas, o grupo encontrou terreno fértil. O Congo é marcado há
anos por sua instabilidade, e em 2012 e 2013, a República Centro-Africana (RCA)
e o Sudão do Sul, respectivamente, foram tomados por conflitos civis, étnicos e
religiosos, que não se solucionaram até hoje. Qualquer semelhança com a ida do
Estado Islâmico para a Síria não é mera semelhança. Em linhas gerais o conflito
na RCA se dá por cristãos contra muçulmanos e contou recentemente com a
mediação do Papa Francisco em uma visita à capital do país, Bangui.
Analistas
e militares não convergem sobre onde está Joseph Kony hoje. Provavelmente não
estará em Uganda, mas pode estar no Sudão do Sul, na RCA ou no Congo. Quem sabe
já tenha até mesmo padecido, e, a mensagem, por termos estratégicos, não tenha
sido divulgada, assim como o Mulá Omar, líder do Talibã, supostamente morto em
2013, com informação divulgada em 2015, mas analistas acreditando que o fato
tenha ocorrido antes disso. A questão é que, com pragmatismo e o deslocamento
correto de tropas, os esforços em conjunto de Obama com o governo de Uganda e
alguns aliados locais fizeram o LRA cair de 2000 membros para cerca de 100
atualmente.
As
estimativas são de que a “caça a Kony” no centro da África tenha custado até US$
800 milhões aos EUA. O valor é próximo a 10% do PIB do Sudão do Sul, orçado em
US$ 9bi em 2015. O país mais novo do mundo é o mais provável refúgio hoje de
Kony, e vive uma intensa guerra civil com mais de 200 mil mortos, com um grande
número de cidadãos em risco alimentar. Pra mim já basta. Mas dá outro viral...
O problema e o espetáculo. Basta escolher (a trilha sonora é sensacional)
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