quarta-feira, 18 de maio de 2016

Um mapa que explica o mundo

Sempre adorei mapas. O gosto vem desde a infância, quando levava um bom tempo observando os mapas da Europa para identificar as cidades que possuíam times nas principais ligas do continente. Essa relação de geografia com futebol levava a alguns equívocos, como acreditar que as capitais dos países eram as sedes das principais equipes do momento. Assim, Lyon substituía Paris como capital da França, Munique era a alemã e Milão a italiana. Bons tempos.

Eu não tenho dúvidas que esse interesse influenciou muito nos meus gostos de hoje. Quando passei a compreender que aquelas representações cartográficas na verdade representavam pessoas, culturas, interesses e pensamentos diferentes, foi amor à primeira vista. E hoje, em tempos de internet, as possibilidades para dissecar mapas são muitas. Páginas que acesso quase diariamente, como Amazing Maps, El Orden Mundial en el Siglo XXI e Eurasia postam verdadeiros mapas que costumam valer mais que mil palavras para entender o mundo.


E o que traz esta enrolação é um destes. Olhando rápido, pode ser simplesmente um mapa mundi com tons de marrom que representam a porcentagem que as matérias primas representam no PIB de cada país. Um olhar mais atento, ajuda em uma grande compreensão dos conflitos no mundo hoje e os que devem estar por vir, ou como costumam dizer “A Ordem Mundial”.

Primeiro as “ausências”. Sete das mais sentidas são facilmente compreendidas. Na África, a Líbia, um dos países com maiores reservas de petróleo no mundo, está destruída. A sede do governo reconhecido não fica na capital Tripoli, e boa parte dos poços de óleo estão nas mãos de milícias extremistas, inclusive o Grupo Estado Islâmico. Não tem como fazer a estimativa. Situação semelhante com a da Somália, um completo estado falido em guerra civil há décadas e que tem como uma das principais forças o Al Shabab, ligado à Al Qaeda. A área que não possui dados no Marrocos é a Saara Ocidental, envolvido em complexos imbróglios separatistas.

No Oriente Médio, o Irã, um dos maiores produtores de petróleo global, sofria com graves embargos para vender seu produto principal até o Acordo Nuclear. Difícil estimar a dependência. Depois, Cuba, Myanmar e Coréia do Norte. Três dos regimes mais fechados e com economias mais enigmáticas do mundo, apesar das aberturas nos dois primeiros. O outro dispensa comentários, até por falta de informações.

A região mais emblemática hoje é a América Latina. Brasil, Argentina e Venezuela tiveram grandes crescimentos econômicos durante a alta dos preços de matérias primas, principalmente se aproximando da China. A demanda global pelos produtos caiu, assim como o crescimento chinês, um não separado do outro. Com isso, graves crises atingiram as duas principais potências sul-americanas, que seus PIB’s dependem mais de 16% de commodities, sendo dispensável detalhar o caso brasileiro. Já na Argentina, o problema se somou a dificuldades anteriores, e levou a um cenário ainda pior. Apesar dos benefícios apontados por muitos meios da mídia estrangeira, Macri não resolveu toda a situação argentina, tendo estes, por exemplo, que conviver com enorme inflação no seu governo.

Comparar o que acontece na Venezuela com os dois países é bastante equivocado. A situação, que envolve possibilidades hoje de uma guerra civil, é imensamente mais delicada, e chavismos a parte, o mapa explica bem. A Venezuela é o único país em que seu PIB depende mais de 32% da exportação de matérias primas na região, e tendo em vista que boa parte vem do petróleo, já que os venezuelanos são detentores das maiores reservas mundiais, é mais compreensível. Durante boa parte dos últimos dez anos, o barril de óleo foi negociado a mais de 100 dólares, chegando facilmente aos 120. Neste ano, a commoditie chegou a valer menos de 30 dólares. É mais do que grave.

Equador e Bolívia são dois países preocupantes em um médio prazo. Os dois gozam de relativa estabilidade hoje, mas com o PIB dependendo mais de 16% da exportação de matérias primas, as conjunturas não podem omitir reformas necessárias. O Equador, membro da OPEP, terá problemas com o barril sendo negociado a preços mais baixos, apesar de hoje conseguir “surfar” na onda dos países que se voltaram aos acordos com o Pacífico e fugiram da queda chinesa. A Bolívia, também muito dependente de hidrocarbonetos, deve boa parte de sua estabilidade, justamente a uma estabilidade, a de Evo Moralez no poder de um país famoso pelos golpes de estado.

O país que se sobressai no Norte do mapa por conta da cor mais escura, é justamente o maior, a Rússia. Não vem de hoje que a queda no preço dos hidrocarbonetos deixa os russos com um dos piores desempenhos econômicos dentre os países mais importantes do mundo. A estratégia de Putin para lidar com o problema e manter sua popularidade entorno dos 80% é aumentar retórica nacionalista do país. O resultado são duas participações em dois dos principais conflitos da atualidade, a Crimeia e a Síria.

Apesar de peculiaridades em países como Canadá e Austrália, com populações pequenas e grande renda per capita, em geral os países mais estáveis do mundo são os mais claros no mapa. Por outro lado, o instável Oriente Médio, revela tons mais escuros e é área mais preocupante na representação.
O Iraque, por exemplo, tem mais de 65% de seu PIB relacionado com matérias primas, em especial o petróleo. Mas sua instabilidade não vem desde a queda no preço do barril, e sim de tensões anteriores. Os países do Golfo, com o caso emblemático da Arábia Saudita, conseguiram verdadeiros oásis em meio a tantas tensões, como por exemplo, alguns dos PIB’s per capitas mais altos do mundo e a Copa de 2022. Praticamente tudo com dinheiro de um petróleo caro e com alta demanda.

Estes países construíram estados de bem-estar social com a renda da commoditie, mas depender de matérias primas significa se submeter a volatilidades. Ainda mais se tratando de um combustível que em qualquer visão ambientalista, é obsoleto para o século XXI. E estes países já vêm enfrentando os custos de petróleo barato, como no caso do Bahrein. A ditadura sunita em um país de maioria xiita, normalmente conseguia conter sua população com reformas sociais caras, mas pouco inovadoras, sobrecarregando o funcionalismo público. O país tem mais de 32% de seu PIB atrelado a commodities, então com o petróleo a mais de 100 dólares o barril, a estabilidade era comprada, o que fica impossível nos atuais preços, e o país é provavelmente o foco da próxima grande tensão do Oriente Médio.

Alguns países entenderam a necessidade de mudança e saíram na frente, antes de virar um foco de tensão em um futuro não muito distante. O SaudiVision 2030 é um ambicioso programa que visa diversificar a economia do maior exportador de petróleo do mundo até 2030. A medida foi tomada depois que o FMI indicou que a atual economia saudita era insustentável dentro de cinco anos, mas convenhamos um pouco de bom senso e esse mapa poderia justificar a decisão. Aliás, bom senso, investimento em inovação e tecnologia são vitais em qualquer parte deste mapa. Fica a dica aos “abençoados por Deus e bonitos por natureza”.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

"London Calling"

É complicado para aqueles que tiveram mais contato com a obra de George Orwell não nutrir certa antipatia por Eton, a elitista escola na qual o autor se formou. E o candidato a prefeito de Londres, Zac Goldsmith, tem várias atribuições que poderiam fazer com que este endossasse a lista de altos cargos dos célebres ex-alunos do colégio. Bilionário, o político conservador vive um grande momento de seu partido, que recentemente reelegeu seu líder, David Cameron, como primeiro-ministro com um número de cadeiras bem acima dos trabalhistas, algo pouco usual no Reino Unido.

No entanto, o favorito para substituir o também conservador Boris Johnson, é o trabalhista Sadiq Khan. Paquistanês, filho de motorista de ônibus, Khan se formou em uma escola comunitária, e tem a possibilidade de se tornar o primeiro prefeito muçulmano de uma grande capital ocidental. O mandato em Londres, o terceiro maior majoritário da Europa, perdendo apenas para as presidências de França e Portugal, colocaria um muçulmano que rompe com diversos estigmas e preconceitos em um grande posto, em meio a um continente afetado pela xenofobia e a islamofobia.

Khan, que foi ministro dos transportes com Gordon Brown, é um jurista com atuação em direitos humanos, com grande destaque para os dos homossexuais. Em uma comunidade que engloba 1,5 bilhão de pessoas como a muçulmana, existem diversas correntes, e infelizmente as que costumam ganhar destaque são a de fundamentalistas como os de Bangladesh, que mataram recentemente um diretor de revista pelo simples fato deste defender os direitos LGBT. No entanto, como é observado na crescente conservadora brasileira, o fundamentalismo religioso pode ter origem em qualquer crença, e casos tão graves quanto estes já ocorreram, por exemplo, em Uganda, por influência de extremistas cristãos (God Loves Uganda é um documentário ótimo sobre o tema, tem no Netflix).

Ainda sobre religião, vale citar que Goldsmith é judeu, apesar de ter poucas ligações. E neste exato momento, uma das figuras mais vinculadas nos jornais israelenses é justamente o líder trabalhista Jeremy Corbyn, que recentemente se manifestou de maneira considerada antissemita por muitos judeus. Como dito anteriormente, os trabalhistas não vivem um bom momento, e seu líder é criticado frequentemente por posturas vistas como radicais em excesso. Por outro lado, os conservadores estão fragmentados pelos posicionamentos quanto ao chamado Brexit, o referendo que, em junho, vai definir a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia.

O atual prefeito de Londres, Boris Johnson, é o maior defensor dentro do partido de uma saída dos britânicos da união. Seu maior adversário interno é justamente o primeiro-ministro David Cameron, que acredita ser vital, principalmente para a economia, a permanência. Goldsmith é favorável à saída, o que o afastou da importante figura do líder e tudo indica que isto terá efeitos nas urnas contra o conservador. Os trabalhistas neste caso estão mais unidos, e esta é uma das principais plataformas de política de fato que Khan, favorável à manutenção, diverge de Goldsmith.

E é esta Europa unida que a vitória de Khan representa. O continente da pluralidade, com algumas das mais cosmopolitas cidades do planeta, e que tem uma tradição fantástica em acolher e integrar outras culturas. A Europa que dá a oportunidade de um filho de imigrante vencer democraticamente um bilionário representante de uma das principais elites globais, não aquela que fecha a porta para refugiados desesperados por uma mínima condição de sobrevivência. É a Europa que dá a Mahrez, um argelino muçulmano, o prêmio de melhor jogador em sua principal liga nacional, não aquela liderada por Viktor Orban que constrói muros e esquece o Tratado de Schengen.


E que Goldsmith seja tratado sem estigmas. Não é por vir de uma das escolas mais elitistas do planeta que isso seja um demérito, afinal de contas um dos maiores autores da história também estudou lá, apesar de ter ficado longe de ser bilionário. E que a crítica às políticas de Khan sejam absolutamente isentas do que sua posição representa, sendo feitas de maneira idônea e pelo que ele fizer não por quem é ou foi. Mas essa história ficará pra sempre registrada. Teria o autor de “1984” imaginação para antecipá-la? Ah, teria. Maldita tuberculose.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Os números do Senado

A votação pelo prosseguimento do processo de impeachment no Senado se aproxima, e o temor de um espetáculo que coloque o Brasil novamente em situação constrangedora é natural. A consulta no Congresso, que na sua cobertura internacional contou com ironia e espanto até de publicações mais tradicionais, como a revista The Economist, não deve ser parâmetro para a próxima.
A série de constrangimentos no dia 17 de abril, que contou com apologia a um torturador, cusparadas, confetes, inúmeras menções a Deus, e até a paz de Jerusalém, abalada no dia seguinte por um atentado a um ônibus, dificilmente deve se repetir no Senado. O caso do senador Cristovam Buarque é emblemático, já que o político se colocou plenamente a disposição para expor os argumentos para seu voto, inclusive em entrevista para a GloboNews. Situação bem diferente da ocorrida na outra casa, na qual, retratada na ironia dos meios internacionais, sobraram argumentos, mas não relacionados ao objeto da votação.
Ainda assim, o singular momento da política brasileira contará com marcos na história mundial. Segundo diversas pesquisas, pela primeira vez um chefe de estado que sofreu impeachment terá a chance de julgar outro processo do mesmo porte. Além disso, teremos o primeiro homem a ultrapassar a barreira dos 1000 gols votando a permanência de alguém no cargo máximo de um executivo democrático. Sabendo das qualidades de placares de jornais como Estadão e Folha de São Paulo, fomos atrás de outros números sobre a votação no Senado.
(Todas as indicações abaixo foram conferidas em veículos da imprensa ou nas mídias dos próprios políticos. O VPC se isenta de juízo de valor sobre o divulgado, achando melhor assim, não destacar quais números pertencem a cada senador)
-Um impeachment                                                                    
-1002 gols na carreira
-Um filho nos Panama Papers
-Uma Copa do Mundo
-455 kg de cocaína apreendidos em helicóptero da família
-12 senadores investigados na Operação Lava Jato
-Uma mãe do Supla
-Um aeroporto construído em terreno da família durante mandato de governador
-6 votos para Assembleia Legislativa antes de assumir como suplente
-Uma citação da frase: “Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém”
-Dois condutores do reconhecimento do Genocídio Armênio na casa
-Um estado em que nenhum senador declara o voto
-Duas acusações de uso de trabalho escravo em propriedades da família
-Um delator na Operação Lava Jato
-Uma propaganda em que dizia “Como a mãe dele” e “Como a Dona Maria”
-Um vice da Libertadores como presidente do clube
-Duas casas pichadas por vândalos 
-Um filho exonerado de cargo na Câmara por nepotismo
-Uma citação da frase: “Relaxa e goza” durante crise da aviação
-Uma conta da família em Liechstein
-85 dias detido
-Três sem partido
-Uma música em que repete ser “Maluco por Jesus”
-Uma acusação de peculato arquivada por prescrição do crime
-Um presidente da casa investigado na Operação Lava Jato
-Um xaveco na Cléo Pires


São muito bem vindas sugestões de outros números. Principalmente as que se referirem a números de acusações e condenações por crimes eleitorais, além das trocas de partido, já que as limitações da equipe dificultaram estas apurações.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Me ajuda a te ajudar

As Colinas de Golã se localizam no nordeste do que hoje é controlado pelo Estado de Israel, e é uma das regiões ocupadas pelos israelenses após a vitória na Guerra dos Seis Dias em 1967. O território passou ao domínio sírio após a criação de Israel no fim da década de 40 e ficou sobre a tutela destes até a guerra de 67. Assim como no caso dos outros territórios, a ONU diz que é ilegal a ocupação israelense, e como na situação envolvendo a Península do Sinai, integrada ao Egito que sofreu intervenção militar dos israelenses após a guerra, Israel negociou a devolução do território, em troca da aceitação da existência do estado. No caso egípcio, deu certo e a solução ganhou um Nobel, no sírio, líderes no poder até hoje, como Netanyahu e os Assad chegaram bem perto de se entenderem, mas o entrave continua.

O parlamento israelense votou favorável em 81 uma resolução que determinava o domínio de Israel sobre as Colinas de Golã, o que foi prontamente rechaçado pela comunidade internacional. Aos olhos do restante do mundo, a ocupação israelense dos territórios após 67 é ilegal, e Israel deve buscar uma solução, assim como ocorreu com os egípcios, para seus problemas na região. No entanto, a Síria, devastada por uma guerra civil, não vê a questão como uma prioridade, além de haver um senso comum de que atualmente a devolução do território colocaria ainda mais em risco a segurança da região. Na Síria lutam três dos maiores inimigos de Israel hoje: Irã, Hezbollah e o Grupo Estado Islâmico. A anexação de Golã ao território sírio seria uma grande oportunidade para os três, declaradamente contra Israel, atacarem os israelenses. É de consenso que a questão seja resolvida após a tragédia síria, menos para Netanyahu e seu Likud.

Após escancarar algo que muitos já desconfiavam: que Israel havia atacado o Hezbollah em território sírio durante a guerra, criando um desgaste com o regime de Assad, que tem no grupo um de seus maiores aliados, o governo de Netanyahu realizou um ato visto como uma afronta, a primeira reunião oficial israelense em Golã desde 1967. Em declarações, Netanyahu indicou que Israel nunca devolverá o território aos sírios, além de citar um plano de colonização, assim como em territórios palestinos, que segundo o primeiro-ministro, já conta com “50 mil judeus e drusos e só vai aumentar”.

Claro que o caso faz parte da estratégia nacionalista do Likud, que segue construindo assentamentos ilegais e se isolando da opinião pública internacional. No entanto, dessa vez, como não poderia deixar de ser, até aliados se manifestaram contra o israelense. A Liga Árabe, que hoje faz uma oposição bem velada a Israel, já que tem como um dos principais membros a Arábia Saudita, parceira pontual dos israelenses, fez uma representação contra o ato. O Egito, desde os anos 80 um dos principais aliados de Israel, também se pronunciou contrário. E é claro, o maior parceiro do Estado de Israel, os EUA, ficaram mais uma vez em uma saia justa, já que apesar de ser contrário ao atual governo sírio, teria enorme desgaste junto á comunidade internacional apoiando uma ação ilegal do ponto de vista da ONU. Preferiu a omissão.

Além dos infinitos inimigos tradicionais dentre os árabes e muçulmanos, hoje Israel tem um inimigo interno que é muito mais perigoso que boa parte destes: seu próprio governo. A opinião pública cada vez se volta mais contra Israel, e a União Europeia, por exemplo, aliada histórica, hoje já acena com movimentos pró-palestinos como o BDS. Defender o Estado de Israel hoje em boa parte das universidades do mundo pode ser quase um atestado de suicídio junto à dita intelectualidade, cada vez mais tomada pelo antissemitismo, refletido de maneira ainda mais forte na comunidade em geral. Os EUA nunca estiveram tão longe dos israelenses, chegando ao ponto de Netanyahu ter melhores relações pessoais com Putin do que com Obama. O governante e seu Likud parecem não ter entendido que as certezas na região mais complexa do mundo tem prazo de validade, o que foi refletido em sua insana campanha contra o acordo nuclear com o Irã, que para eles seria um eterno inimigo norte-americano.

Falando em Putin, o nacionalismo expansionista é uma das principais características que ligam Netanyahu ao russo. No entanto, parece que o israelense não tem a consciência de que não comanda um antigo vasto império que pode agir de acordo com suas intenções e esquecer a comunidade internacional. Netanyahu lidera um país que precisou de amplo apoio global na sua fundação, e principalmente para se sustentar contra os inimigos durante os 67 anos de sua história. E é fundamental entender isso para continuar existindo.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O Brasil maquiavélico

A autoria da máxima “os fins justificam os meios” por Nicolau Maquiavel é questionada ao longo dos anos, no entanto que as ideias do autor de “O Príncipe” indicam que o resultado final deve ficar acima da moral com que ele foi alcançado é inegável. E em tempos de crise, a sociedade brasileira dá mostras que os pensamentos do antigo filósofo vigoram como leis que regem até hoje.

Sendo ou não ainda, “o país do futebol”, o esporte continua como uma grande mostra social do Brasil. Portanto, é sintomático um jogador da equipe de maior torcida do país, após vencer um campeonato com um gol irregular, declarar em entrevista que “roubado é mais gostoso”, pensamento compartilhado por milhões de pessoas sobre o ocorrido. Este episódio aconteceu na final do Campeonato Carioca, na mesma cidade em que seu outro símbolo, o Carnaval, foi vítima de polêmicas quanto às origens do financiamento da campeã Beija-Flor no ano de 2015. A resposta do principal membro da escola, Neguinho da Beija-Flor foi a de que a contravenção deveria receber agradecimentos. A participação de criminosos relacionados com o "jogo do bicho" na realização do Carnaval Carioca é de conhecimento comum, e muitos a defendem por uma “festa mais bonita”. No caso de 2015, a situação envolvia dinheiro oriundo de uma ditadura africana pouco conhecida no Brasil e o endossamento do regime por parte da escola de samba, o que foi esquecido pouco tempo depois.

Ainda sobre desconhecimento e ditaduras, recentemente foi publicada na revista “Época” uma reportagem sobre o uso de gás lacrimogênio brasileiro de forma letal, na repressão de protestos no regime do Bahrein. A matéria abordava inclusive a morte de um bebê por conta da utilização, além de demonstrar o descaso do fabricante quanto ao destino final de seu produto. A história que pode surpreender muitos causa ainda mais espanto com o grande número de comentários, que questionavam até a ocupação do autor da matéria. Muitos defendiam o fabricante, que “pelo menos estaria gerando emprego”.

E o descaso com a moral e a ética por trás dos objetivos alcançados só tende a aumentar na medida em que o sucesso destes seja mais relevante na vida do brasileiro. Pela manutenção de uma relativa estabilidade social, o clichê de que “bandido bom é bandido morto” ecoa por ruas e programas sensacionalistas quando o assunto abordado é a violência urbana. O resultado é uma sociedade que endossa publicamente uma polícia que é criticada no âmbito internacional por conta do alto número de execuções. Além disso, há o absurdo de analisar uma ação policial com X mortos, sendo X-3 “bandidos” sem julgamento, como um sucesso que infelizmente deixou “algumas vítimas”. O ciclo interminável de violência, com aval social, deixa o Brasil com cerca de 60 mil assassinatos por ano e 32 cidades entre as 50 com maior taxa de homicídio no mundo.

Na política, alguns defensores do atual governo apresentam contra as denúncias e condenações por corrupção os “avanços sociais” conquistados nos últimos anos. Além do fato surreal de contra argumentar crimes por conta das melhorias trazidas por eles à sociedade, algo que poderia, por exemplo, inocentar Pablo Escobar e “Chapo” Guzmán, há uma completa falta de questionamento sobre com base em quê foram conquistados estes avanços. A lista de abordagens que podem ser tomadas é imensa, mas ainda sobre armas no Oriente Médio: o Brasil é o quarto maior exportador de armas de pequeno e médio porte do mundo, e boa parte dessa expansão da indústria bélica ocorreu nos últimos governos. Sem praticamente conhecimento nenhum pela população, o Brasil aumentou quase 200% no último ano a venda de armas para a Arábia Saudita. Boa parte delas é usada na Guerra do Iêmen, iniciada ano passado e que matou milhares de civis. Nosso país exporta inclusive munições recriminadas internacionalmente.

As duas maiores empresas brasileiras privadas, em lucro, são a Vale e a JBS. Mineradoras, agronegócio e alto lucro não costumam ser propriamente grandes parceiros das questões ambientais. Apesar de algumas reduções nos índices de desmatamento, a destruição de biomas brasileiros teve um nível bastante acelerado durante os últimos anos por conta principalmente da expansão do cultivo de soja e da pecuária. Por outro lado, o dano ambiental que a mineração traz em longo prazo para rios e solos é difícil de ser calculado, por ser enorme. O completo desastre de Mariana e suas condenações falam por si só. Mas não é de admirar o descaso ambiental por parte de um governo que teve a frase “o Brasil não pode ficar a serviço de uma perereca” como uma das mais marcantes sobre o meio ambiente.

E quais são as reais intenções e atribuições morais daqueles encarregados por julgarem os escândalos do último governo? O principal juiz é idolatrado no país dos maquiavélicos, e deixa claro em um artigo escrito sobre a “Operação Mãos Limpas” na Itália a importância do Judiciário estar associado aos meios de comunicação e a opinião pública para condenar um esquema de corrupção como a Lava Jato. Isso no Brasil, país no qual a maior rede de comunicação é acusada sistematicamente de ter manipulado um debate presidencial que levou a derrota do ex-presidente investigado, além de a revista de maior circulação no país ser, de forma clara, contrária ao governo.

Não é nenhuma surpresa a opinião pública brasileira se colocar ao lado das investigações que vazaram grampos telefônicos na imprensa. No entanto, o que deve ser questionado de maneira imparcial é a validade deste ato, já que a justiça em um sistema pleno de direito como o brasileiro deve levar em conta mais que o clamor popular, ou provavelmente estaria aplicando a pena de morte. 
É gravíssima a divulgação das escutas telefônicas de um chefe de estado, sendo que esta pode claramente interferir em interesses nacionais. E sendo “petralha”, “coxinha” ou qualquer denominação que a insanidade da atual situação possa gerar, é cabível sim a indagação sobre o que ocorreria se o mesmo fosse feito nos EUA.

É imoral condenar de maneira seletiva os acusados de corrupção. Se o resultado final for “colocar os bandido na cadeia” como praticamente todos queremos, este fica bastante comprometido caso tenha havido interesses políticos e partidários durante as condenações, além de permitir que criminosos fiquem impunes.

Em nenhum lugar do mundo nasce uma classe diferente de seres humanos chamada “políticos” ou “eles”. As lideranças surgem, e refletem de maneira bastante precisa a sociedade que representam. E como é repetido incessantemente que o Brasil vive uma “crise de representação”, esta é uma grande oportunidade para questionar se são somente os governantes que não se importam com os meios pelos quais conseguiram suas posições, ou se “nós” teríamos tanta moral para não distribuirmos alguns ministérios para seguir no comando.

Cada vez mais no mundo há uma diferenciação entre “preço” e “custo”. O “preço” seria aquele aparente ao consumidor final, já o “custo” adiciona tudo aquilo demandado no processo. Ver somente os resultados exclui muitos valores fundamentais, já que um país ético, moralizado, justo, e com desenvolvimento sustentável custa muito caro.

domingo, 6 de março de 2016

Isso "cê" não conta...

O Grupo Estado Islâmico, ou Daesh, ataca um asilo no Iêmen e mata 16 pessoas. A reação de boa parte das pessoas no Brasil passa por mais uma vez lamentar um triste episódio que aconteceu “naqueles lados lá”. Realmente, é bastante infeliz mais uma atrocidade cometida pelo grupo, mas em um mundo globalizado, cada vez as questões se definem menos entre “aqui” e “lá”, e no caso da catástrofe que vive esse pequeno país no Golfo Pérsico, a relação do Brasil é bem maior do que muitos podem imaginar.

Aqui, eu explico um pouco mais a guerra civil que ocorre no Iêmen, mas simplificando a situação: o Oriente Médio vive uma espécie de Guerra Fria entre as duas potências, Arábia Saudita, sunita, e o Irã, xiita. As convulsões trazidas pela Primavera Árabe levaram ao fim do regime corrupto e ditatorial de Saleh no Iêmen, aliado dos sauditas. Saleh havia unificado Iêmen do Norte, capitalista, e Iêmen do Sul, socialista, durante os anos 90. O país ainda sofre com ondas separatistas no sul. A divisão sectária tem uma minoria da sua população de cerca de 30% seguindo uma vertente xiita, e uma parcela desse grupo, aproveitou o suporte financeiro do Irã, interessado em expandir sua influência e compõe as chamadas milícias houthis que desejam governar o Iêmen.

É lógico que esses elementos levariam uma tragédia ao mais pobre dos países árabes. A Arábia Saudita organizou em março de 2015 uma coalizão para combater os houthis, fazendo ataques aéreos e com ações terrestres. O resultado foi um país esfacelado, mais de 5 mil mortos, boa parte de civis, o crescimento da Al Qaeda da Península Arábica (autora do Charlie Hebdo) e do Daesh, que era praticamente inexistente no país antes da guerra.

Agora a relação com o quarto maior exportador de armas de pequeno e médio porte, amplamente utilizadas na guerra, Brasil. Seguindo na contramão de países como a Suécia, que cancelou algumas exportações de armas para a Arábia Saudita por conta dos desrespeitos aos direitos humanos cometidos pelo regime, o valor das exportações bélicas do Brasil aos sauditas em 2015 chegou a quase 110 milhões de dólares, segundo informações do próprio governo brasileiro. O aumento da arrecadação com o negócio da Avibrás, grande responsável pelas exportações, foi de quase 140 vezes na comparação de 2014 com 2015, ano em que a Arábia Saudita passou a intervir no Iêmen.

Além disso, denuncias de que armamentos utilizados pelos sauditas e que são desaprovados por convenções internacionais, caem sobre a empresa, que tem dificuldades em desmentir que forneceu as armas. As acusações são endossadas por grupos como a Anistia Internacional e Human Rights Watch, no entanto os grupos têm problemas em conseguir maiores detalhes e confirmações por conta das dificuldades impostas pela guerra no país que condena, por exemplo, milhares de pessoas a terem acesso à água e comida muito restrito.

Enquanto a guerra na Síria conta com enorme apelo nos noticiários, seja por de fato ser a maior tragédia humanitária do século XXI, ou por motivos menos nobres como envolver interesses estratégicos das grandes potencias e os refugiados do conflito incomodarem uma parte destas, a situação no Iêmen passa quase pelo esquecimento. Evidentemente, quando os atores não tem interesse em resolver a crise, e a comunidade internacional não tem ali seu foco, soluções são distantes e a possibilidade da impunidade para aqueles que desrespeitam os direitos humanos é eminente.

O crescimento no faturamento da indústria bélica brasileira, extremamente fundamentada durante o regime militar, mas que se baseou bastante em exportações nos últimos anos é um tema pouquíssimo tratado e discutido no Brasil. Quando essa grande força pouca conhecida passa a ser acusada de desrespeitar direitos humanos em um conflito pouco abordado, é vital que a sociedade civil haja no sentido de buscar esclarecer os fatos e caso tenham ocorrido infrações, que os culpados sejam punidos. São questões importantes de serem abordadas em mundo cada vez mais integrado, principalmente para que antes de pensar em mortes como distantes, lembrar que a munição pode ser “made in Brazil”.


https://medium.com/@jnascim/como-armas-brasileiras-vendidas-%C3%A0-ar%C3%A1bia-saudita-ajudam-a-matar-civis-no-i%C3%AAmen-3acbbf3303f7#.110uwphse

http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/13/opinion/1447441086_369498.html

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Foi bom o acordo para a Síria?

Depende. O acordo em Munique foi feito com uma participação muito pequena da oposição síria, determinando termos muito vagos e evidentemente sem os importantíssimos elementos terroristas, a Al Nusra (Al Qaeda na Síria) e o Daesh (Estado Islâmico). O acerto foi o “fim das hostilidades”, algo muito menos específico do que um cessar-fogo e o principal: definições para a chegada de ajuda humanitária em áreas ocupadas por rebeldes e cercadas pelo regime.

A primeira parte, apesar de parecer muito importante, não é tanto. No mesmo dia em que o resultado das negociações foi anunciado, Assad, de longe o maior causador de mortes no país, deu uma entrevista à agência AFP em que reafirmou o compromisso de recuperar todo o território e que isso poderia custar muito por vários anos. Por outro lado, a oposição mais moderada que concordou com a diminuição das hostilidades hoje é muito enfraquecida, esfacelada entre as mais de 1000 milícias que lutam na Síria e que cada vez perde mais força para os grupos extremistas, tendo a Al Nusra junta a uma grande parcela destas.

Os ataques aéreos russos iniciados no fim de setembro fortaleceram muito o regime, sendo parte importante das ações de retomada de Assad, que agindo por terra com seus aliados conseguiu dar uma guinada a seu favor na guerra. O outro evento que favoreceu o ditador foram os ataques em Paris no 13 de novembro, quando o Ocidente, em parte de maneira mais explícita e outra menos, passou a aceitar o presidente como uma espécie de mal menor, frente aos bárbaros terroristas. Em uma boa analogia com a Segunda Guerra, Assad passou a figurar como um aliado pontual e sanguinário como Stálin, mas contra genocidas como os nazistas e o Daesh.

O fortalecimento do regime levou ao enfraquecimento dos resquícios de uma oposição moderada, hoje em extinção na Síria. Aqueles contrários ao regime passaram então a serem mais extremistas, com uma parte importante aderindo a Al Nusra, outra menor ao Daesh, e com grupos radicalizando suas ações. Por isso a resolução deve ser vista com desconfiança: por um lado quem aceitou hoje já não é tão forte e o outro é um ditador sanguinário responsável pela morte de centenas de milhares e sem nenhum pudor para manter-se no poder.

O acordo de certa forma legitima o governo de Assad, colocando suas ações no mesmo patamar das da oposição. O ditador está prestes a tomar Aleppo, segunda cidade do país e até pouco controlada pelos rebeldes, e não há indícios de que o resolvido em Munique o fará recuar.

Por isso, o mais importante é a questão humanitária. O presidente sírio já demonstrou ao longo dos quase cinco anos de guerra civil que para manter-se no poder não terá os menores escrúpulos, seja para isolar uma cidade inteira ou para ordenar ações que matem inocentes. Nos últimos meses o mundo assistiu incrédulo à situação em Mandaya, onde crianças estavam morrendo de fome e pessoas tinham como única opção às vezes comerem terra. As cenas chocaram todos e a pressão internacional fez com que o regime deixasse que a ajuda chegasse a estes isolados pela guerra. O mesmo ocorre em vários outros locais da Síria dominados por rebeldes, onde a estratégia de Assad, condenada no Tribunal Penal Internacional, é isolar populações inteiras.

O acordo prevê que o regime permitirá a entrada de ajuda nestes lugares (normalmente um pouco de comida, água e remédio para algumas semanas) e ao menos aliviar um pouco a crise vivida por estas pessoas, que normalmente não conseguem sequer fugir destas localidades por conta dos bloqueios. Pouco, mas deve evitar as cenas chocantes por um tempo e poupar desagrados em jantares de famílias no Ocidente. Melhor que as negociações frustradas até agora.

Obs: a guerra contra o Daesh segue a mesma.