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quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O outro lado na eleição dos EUA


É a primeira vez que o blog trata das eleições norte-americanas de 2016. No Twitter e no programa semanal de rádio, o assunto é abordado com frequência há pelo menos um ano, mas o propósito aqui é diferente. Por questões de logística e recursos, a ideia deste espaço é trazer assuntos menos abordados pelos meios de comunicação, ou ao menos tratar uma perspectiva diferente destes, o que se pode verificar no primeiro post do Vale do Paraibuna Connection, ainda em 2013, que é uma contrapartida aos que execram por completo o chamado bullying.

Desde que Donald Trump anunciou, em 2015, que concorreria à presidência o candidato virou o centro das atenções. A cada vez que sua candidatura parecia mais surreal, seja insultando mexicanos, propondo o banimento de muçulmanos dos EUA, ou ofendendo mulheres, grande parte da mídia e os analistas reagiam em contrapartida, no sentido de conter o chamado “bufão fascista”. O fato é que durante as primárias republicanas a estratégia da imprensa falhou, já que Trump derrotou favoritos como Jeb Bush e Marco Rubio, e por fim fez com que o extremista Ted Cruz parecesse uma alternativa viável para frear o fenômeno grotesco. Para deixar claro, já que este parágrafo resume quase um ano de intensas movimentações, Cruz é parte do Tea Party, a ala mais radical dos republicanos e nunca foi, de fato, alguém moderado, caso de John Kasich, a melhor opção que o partido tinha nas primárias.

A questão é que a cada editorial criticando Trump, assim como a cada político de relevância que se posicionava contra o candidato, sendo o sensato Kasich um dos primeiros a fazê-lo dentro do partido republicano, uma parcela nada desprezível deste fenômeno ficava de lado, seus apoiadores. Sempre que o bilionário parecia mais grotesco, as análises faziam com que seus eleitores também parecessem, e logo estes passaram a ser insultados quase da mesma forma com que Trump faz com aqueles que não o apoiam.

O perfil é tradicional: o homem branco, com pouca educação, interiorano, e que foi atropelado pelo fenômeno da globalização, não conseguindo se estabelecer na nova ordem mundial. Além disso, ele sente seus privilégios ameaçados por minorias que teoricamente tomariam seus empregos e direitos. 
O discurso de Trump, dito “politicamente incorreto” contra “tudo o que está ai”, aliado a xenofobia que promete trazer de volta estes empregos para os EUA, “making America great again”, como diz seu slogan, é uma espécie de musica nos ouvidos destes atrasados provincianos que não pegaram o bonde da história. Esta é uma síntese de boa parte das explicações do fenômeno Trump. O que se suprime é como estes “atrasados” se sentem quando são chamados assim.

Alguns analistas chegaram ao ponto de classificar esta parcela nada irrelevante da população norte-americana de “white trash”, que realmente tem o mesmo teor de se chamar alguém de lixo branco no Brasil. Mesmo que menos pejorativos, os veículos de comunicação passaram a tratar os eleitores de Trump de maneira parecida, como se fossem uma parcela indesejável do país. Ninguém gosta de ser marginalizado, e quando isto se dá com pessoas que se sentem cada vez mais excluídas e frustradas, o efeito pode ser catastrófico.

Trump não é um imbecil, mesmo que seja difícil acreditar nisso. Quando disse publicamente que poderia atirar em alguém na Quinta Avenida, em Nova Iorque, e que mesmo assim não perderia votos, sabia que tinha alguma razão naquilo. O motivo pelo qual grande parte dos cerca de 40% dos EUA, segundo as últimas pesquisas, votarão em Trump não é pelo que ele é nem pelo que diz, e sim por ele não ser Hillary Clinton, o que foi indicado pelo Pew Research com 33% dos argumentos. Quando o bilionário tomou plena consciência disso, a campanha passou a cair ladeira abaixo, se assemelhando a disputas entre garotos de quarta série.

E foi neste cenário que Hillary Clinton cometeu seu grande erro na campanha até aqui. Em um discurso a candidata indicou que “você pode colocar metade dos simpatizantes de Trump no que eu chamo de cesta dos deploráveis”. Ou seja, disse acreditar que cerca de 20% das pessoas que ela provavelmente vai liderar a partir de 2017 são deploráveis. A expressão é gravíssima, e torna quase impossível que estes eleitores que não confiam nela passem a fazê-lo, o que é fundamental para a democracia norte-americana no sentido de rechaçar demagogias e populismos, e que se evite mais um “contra tudo o que está ai”. Ainda mais que o próximo pode não ser tão nefasto como Trump, ou ainda pior, em um cenário que se deteriore tanto nestes quatro anos: um bufão pior que o bilionário assumindo a Casa Branca.

Assim como no caso do Brexit, a mídia tem papel fundamental no sentido de amenizar os ressentimentos. A votação britânica mostrou que difamar um eleitorado frustrado por conta de suas opiniões não é a melhor estratégia de uma imprensa normalmente vista por estes como parte da causa de seus problemas.

Quem rechaça Trump seguirá rechaçando Trump, agora o que nenhum país precisa é de uma presidente considerando 20% do eleitorado como deplorável, ou que analistas chamem estas pessoas de “white trash”. É possível e justificado fazer um texto criticando cada um dos aspectos demonstrados por Trump durante a campanha, mas é realmente necessário neste momento? E o principal, subjugar uma parcela da população frustrada é realmente uma boa estratégia? A votação pelo Brexit provou que não para as duas perguntas.


Valendo-me de uma expressão que vem sendo utilizada sobre Trump, o candidato é “pós-moderno” nos seus conceitos de verdade. Clinton pode ser mentirosa, mas a campanha do bilionário se dissipa de qualquer conceito de realidade. Em um dos poucos artigos críticos à cobertura da mídia sobre as eleições, a The Economist questionou um dos protagonistas jornalísticos nesta campanha, o fact-checking. A revista indicou que, depois de tudo o que Trump já disse verificar a veracidade de seus discursos não parece nada mais do que arrogância para muitos de seus eleitores. Em uma campanha que tamanho do pênis e acusações de abusos sexuais foram mais relevantes do que os planos para a nação mais importante do mundo, nada surpreende que a verdade apareça para muitos como mero detalhe arrogante. As análises da mídia também.

                                                                Motivo? Ele não é Clinton

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Enquanto os russos não competem...

Em meados de 2015, a situação era complicada para o regime de Bashar Al-Assad na Síria. As mais diversas frentes de oposição, que incluem desde o Exército Livre da Síria, até grupos terroristas como a Frente Al Nusra e o Grupo Estado Islâmico ganhavam território, e a saída do ditador, para alguns, se daria em questão de tempo. Assad fora do poder seria um duro golpe para os russos, um dos seus principais aliados, além de ser uma grande vitória para o Ocidente e seus parceiros regionais, em especial turcos e sauditas, que sempre apoiaram a oposição a Assad.

Mas em dado momento os ventos começaram a soprar em favor do ditador sírio. A Rússia coordenou uma grande ação militar no país, contestada no exterior, que visava os grupos considerados terroristas, o que para russos e sírios engloba alguns dos apoiados por ocidentais, turcos, sauditas e catarís na Síria. O dia 13 de novembro, marcado pelos atentados do Grupo Estado Islâmico em Paris mudou a prioridade do Ocidente para a guerra civil síria, já que a partir do momento em que este se sentiu atacado, Assad, assim como Stálin na Segunda Guerra, passou a ser visto como um mal menor que os jihadistas, ou na analogia, os nazistas. A Rússia se retirou da Síria após seis meses de ação com grande êxito. Praticamente todos os grupos de oposição sofreram enormes perdas, e o regime conseguiu recuperar boa parte de seu território de antes da guerra. Na cena internacional, Assad começou a ser visto como um mal necessário, com o Ocidente cada vez mais omisso sobre seu governo.

No fim de 2015 o Reino Unido fazia parte da União Europeia; Trump não era visto como um candidato real à presidência dos EUA; Rússia e Turquia haviam rompido relações, se temendo até mesmo um conflito; e Erdogan apesar de criticado, tinha legitimidade na Turquia. Ocorreu o Brexit, uma das maiores derrotas pós-guerra fria para o Ocidente; Trump tem grandes chances de chegar à Casa Branca; Erdogan reconheceu que errou ao abater um avião russo e se aproximou de Putin; a Turquia sofreu uma tentativa de golpe militar, seguida de uma reação extremamente autoritária de Erdogan que foi criticada pela União Europeia.

A posição em que se encontra a Turquia sempre lhe proporcionou grande cobiça de potências e relações bastante complexas, afinal de contas não é fácil ser a chamada ponte entre a Ásia e a Europa. Os turcos são membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e inimigos, por exemplo, dos armênios, o que lhes faz apoiar o Azerbaijão no conflito de Nagorno-Karabach. Por sua vez, a proximidade com a Rússia sempre propiciou uma relação benéfica entre os dois países, que até as tensões do último ano, compartilhavam projetos juntos, como um gasoduto e uma usina nuclear, que devem ser retomados. Como legado da Guerra Fria, os russos são grandes adversários da OTAN, além de serem os maiores parceiros da Armênia.

A Turquia sofreu enormes perdas com o corte de relações com a Rússia, após o abatimento do avião militar russo no ano passado, o que matou duas pessoas. Os danos financeiros foram importantes, já que o comércio entre os dois países caiu 43%, e o fluxo de turistas russos para a Turquia, vital para a economia turca, teve queda de 93%. Mas além disso, governo de Erdogan ficou exposto, por conta da retaliação russa de denunciar as ligações dos turcos com o contrabando de petróleo do Grupo Estado Islâmico, algo que já se suspeitava há tempos sem grandes provas concretas. O pedido de desculpas turco veio logo após a inesperada saída do Reino Unido junto à União Europeia, um dos momentos de maior fragilidade do bloco que a Turquia sempre desejou entrar.

Tão oportuno para os turcos quanto, foi o momento escolhido por Erdogan para restabelecer formalmente as relações com Putin. A visita à São Petersburgo foi a primeira do presidente turco após a tentativa de golpe, e ocorreu com Erdogan sempre ressaltando a solidariedade incondicional que Putin prestou após o evento. O gesto é uma demonstração clara de crítica à postura dos membros da OTAN, EUA e União Europeia, que desagradou Erdogan. Os EUA sequer cogitam extraditar Fethullah Gullen, turco que reside na Pensilvânia e que é junto de seu movimento acusado por Erdogan de ter orquestrado o golpe no país. Por sua vez, a União Europeia criticou duramente as prisões e demissões de diversos grupos, parte atrelada ao gulenismo, ou simplesmente opositores ao atual governo turco. O episódio distancia a Turquia dos requisitos mínimos democráticos para entrar no bloco.

Por sua vez, Donald Trump declarou o que é um receio de muitos países da OTAN desde o fim da Guerra Fria: os EUA não estão mais tão engajados com a aliança, que tinha uma oposição clara aos soviéticos quando foi criada. Mas o candidato republicano foi além, e disse que em caso de invasão de um país membro, não se sentiria pressionado em seguir a cláusula básica do tratado que prevê que nestas situações todos devem enviar tropas para auxiliar o aliado violado. O gesto foi visto como uma clara falta de compromisso com uma proposta do século XX de validade duvidosa no mutável século XXI.

Depois da falta de compromisso do maior contingente da OTAN, muitos no país com o segundo maior número de militares da organização passaram a enxergar a aliança como uma amarra. Em alusão ao Brexit, o Turkexit passou a ser visto como uma opção, já que não vincularia a Turquia a gastos e compromissos de pouco custo-benefício, e que lhe restringe grandes oportunidades em um país extremamente estratégico. Uma dessas possibilidades é justamente a Organização da Cooperação de Xangai, que além da China, conta com a Rússia de Putin, próxima geograficamente e agora em relações com a Turquia.

A saída do segundo país mais rico, e que por conta de suas peculiaridades, representava uma das maiores vitórias do projeto europeu, foi um duríssimo golpe para a União Europeia e o Ocidente que vão demorar a se adaptar a esta. A saída da segunda maior força militar da OTAN, e por se tratar do país mais distinto da aliança em diversos aspectos, seja o continente ou a religião, seria dramática para o Ocidente. O Brexit foi uma vitória clara para Putin, que vinha há tempos disputando com a União Europeia a zona de influência ao Leste da Europa, chegando ao ápice das tensões na Ucrânia. A saída da Turquia seria uma vitória ainda mais importante para o homem de Moscou, que veria uma OTAN esfacelada, e de quebra provavelmente ganharia um dos aliados mais importantes do mundo.


Apesar do que o clima olímpico e o escândalo de doping podem apontar, Putin não tem do que reclamar. Além da colossal crise do Ocidente proporcionada pelos próprios ocidentais, a reunião com Erdogan representou mais uma vitória, na própria Síria. A Turquia passou a ter uma posição bem mais branda sobre a saída de Assad, priorizando um cessar fogo no país, em postura semelhante a do Ocidente após o 13 de novembro. A situação antagônica para os curdos no país foi pouco discutida, e o conflito de Nagorno-Karabach, que renasceu em abril quando os dois países estavam afastados foi excluído da conversa. Mas a julgar pelo momento de Putin, curdos e armênios, os lados apoiados pela Rússia nos dois casos, têm ótimas perspectivas.




(FOTO: AP)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Teve Golpe

“Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace

You may say
I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope some day
You'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world

You may say
I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope some day
You'll join us
And the world will live as one”
(LENNON, John)

Os britânicos não vão passar fome, e o Reino Unido tampouco será uma nova Grécia. Apesar das turbulências que o país terá de enfrentar, sobretudo a sucessão do primeiro-ministro David Cameron que renunciou após o resultado da votação e a possibilidade de uma saída da Escócia, o Reino Unido vai se recompor. Há exatos um século o país travava uma duríssima guerra, e poucas décadas depois ainda teve de lutar bravamente para se manter longe dos avanços das tropas nazistas. Eles vão sobreviver a isso.

O mau clima em Londres, região que expressava grande apoio pelo “remain” prejudicou o apoio à permanência, já que muitos não tiveram sequer a possibilidade de votar. Mas agora já não há mais nada o que se fazer senão olhar para o Reino Unido em uma perspectiva longe dos outros 27 componentes da União Europeia. E é pra justamente para ela que atenções têm que se voltar. Seja com políticos mais famosos, como Marine Le Pen na França, ou menos, como Hofer na Áustria, eurocéticos parabenizaram a decisão dos britânicos logo que o resultado foi anunciado. O nacionalismo, que nas palavras de Borges: “só permite afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez” ganhou sua primeira grande batalha contra o projeto europeu, e a mobilização tem de ser para que o avanço seja contido, já que, por exemplo, uma vitória da Frente Nacional nas eleições francesas do ano que vem seria muito mais danosa do que o Brexit, e provavelmente incorreria na França fora da União Europeia, declarando praticamente o fim do bloco.

O projeto europeu e tudo que ele representa de uma Europa que superou os traumas das duas grandes guerras e se tornou um grande marco de estabilidade foi duramente golpeado. A utopia que John Lennon descreve em Imagine fica cada vez mais distante com o projeto europeu se enfraquecendo, em um momento que valores como o nacionalismo que já levaram europeus a tantas tragédias voltam a se sobrepujar a questões mais importantes como a solidariedade, o que é exemplificado no bárbaro espetáculo da crise dos refugiados. Se existe um consolo? Sim, John Lennon, você nunca foi e nunca será “the only one”.

Agora é aqui

quarta-feira, 22 de junho de 2016

"Apocalypse Now"? Talvez não

Costumam dizer que toda unanimidade é burra. Reuters, The Economist, Financial Times, WSJ, El País, Le Monde, NYT, DW, Al Jazeera. Estes são alguns dos veículos que verifiquei ao longo dos últimos tempos, e que se prontificaram (a maioria por editoriais) de maneira bastante crítica contra a saída do Reino Unido da União Europeia, o chamado Brexit, e compõe uma unanimidade que eu não me atreveria a chamar de burra.

Normalmente as análises continham semelhanças das posturas do Brexit com as apresentadas por outros fenômenos políticos, especialmente o isolacionismo e a xenofobia, que sem dúvidas não fazem parte dos maiores avanços dos últimos tempos, dentre eles: Trump, Frente Nacional (França), AfD (Alemanha), FPO (Áustria), Viktor Orban (Hungria), associados a ofensas e a uma extrema-direita em ascensão, assim como o partido de Nigel Farange, o UKIP, principal defensor do Brexit e que tem já em sua sigla um apelo pela independência do Reino Unido.

De um lado as mais sensatas mídias e opiniões do mundo, nos mais diferentes espectros políticos; do outro, os mais criticados fenômenos eleitorais dos últimos tempos, normalmente relacionados à intolerância e demagogia, e por vezes até ao fascismo. O tom nos meios costuma ser bastante apocalíptico, explicitando as enormes derrotas econômicas e políticas que o Reino Unido sofreria, assim como o desastre para o projeto europeu que tanto fez pelo continente desde a última grande guerra. A instabilidade se instauraria logo que o Brexit fosse vencedor no plebiscito e as consequências de longo prazo seriam terríveis, com veículos citando o “apocalipse”, e a DW com uma destacada opinião que indicava que em 30 anos seria possível até o retorno de navios militares atravessando o Canal da Mancha.

Desta forma, o mundo e parte dos britânicos passaram a acompanhar a própria existência do plebiscito como um absurdo. Não parece fazer sentido que cerca de metade da população tenha intenções de uma separação com danos tão terríveis para o Reino Unido, o que automaticamente, fez parte dos que votarão de maneira “sensata” a se voltarem contra os outros, questionando inclusive a capacidade de raciocínio destes diante de tamanhas evidências. E é ai que a notória unanimidade do começo passou a não corresponder para as mais razoáveis das posições.

Existem pessoas que acreditam que o Reino Unido fora da União Europeia melhorará suas vidas. Boa parte destas é composta por operários, especialmente do norte da Inglaterra, a mais pobre e estigmatizada região do país. Assim como os eleitores de Trump e Le Pen, são pessoas que não conseguiram se adaptar da melhor maneira possível com a globalização e passaram a ver fenômenos como a imigração como uma ameaça, seja a sua estabilidade social e normalmente ao seu emprego. 
Boa parte destas pessoas é frustrada, se considera longe das decisões de seus países, no caso americano tomadas pelas criticadas elites, e no europeu por Bruxelas. Neste cenário não veem alternativa para retornar seus padrões que senão isolar seus países, repelindo aquilo que remeta a globalização, seja isto os mexicanos, refugiados ou no caso do Brexit, o próprio projeto europeu.

Assim, não é de se admirar que quando estas pessoas isoladas da nova ordem mundial e que se julgam longe das decisões, quando começam a ter inclusive sua capacidade de raciocínio criticada, não tenham boas reações. E foi exatamente isto que ocorreu no Reino Unido. O temor do mundo de que o país pudesse se desligar da Europa foi tão grande, que criou um cenário de verdadeira polarização, em que os habitantes de grandes centros urbanos, normalmente mais estudados, defendiam o “remain”, enquanto os já frustrados interioranos com menos estudo apoiavam o “leave”. A panaceia criada pela mídia internacional alimentou os dois lados, um que passou a considerar cada vez mais o Brexit como absurdo, e o outro que se viu ainda mais afastado.

A melhor exemplificação foi um relato trazido pela DW de um morador de Glasgow: “Eu adoraria ver um político dizer 'nós deveríamos permanecer, mas se sairmos da UE, o país continuará existindo', em vez de 'o mundo vai acabar'".

Infelizmente a polarização terminou em tragédia. Jo Cox, deputada do partido trabalhista com trajetória impecável, esteve em Gaza recentemente e apoia a causa dos refugiados, foi morta em um comício exatamente quando fazia campanha a favor do “remain”. O assassino pediu morte aos traidores do Reino Unido quando foi levado ao tribunal. Neste caso burrice e até crime é ficar contra a unanimidade.

As pesquisas demonstram empate técnico e faltando apenas um dia para a votação é impossível definir o que ocorrerá. O fato é que aconteça o que acontecer, o Reino Unido saíra ferido e polarizado da agressiva disputa. Espero que seja junto à União Europeia e ao projeto europeu. Desculpa, não aguentei.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

"London Calling"

É complicado para aqueles que tiveram mais contato com a obra de George Orwell não nutrir certa antipatia por Eton, a elitista escola na qual o autor se formou. E o candidato a prefeito de Londres, Zac Goldsmith, tem várias atribuições que poderiam fazer com que este endossasse a lista de altos cargos dos célebres ex-alunos do colégio. Bilionário, o político conservador vive um grande momento de seu partido, que recentemente reelegeu seu líder, David Cameron, como primeiro-ministro com um número de cadeiras bem acima dos trabalhistas, algo pouco usual no Reino Unido.

No entanto, o favorito para substituir o também conservador Boris Johnson, é o trabalhista Sadiq Khan. Paquistanês, filho de motorista de ônibus, Khan se formou em uma escola comunitária, e tem a possibilidade de se tornar o primeiro prefeito muçulmano de uma grande capital ocidental. O mandato em Londres, o terceiro maior majoritário da Europa, perdendo apenas para as presidências de França e Portugal, colocaria um muçulmano que rompe com diversos estigmas e preconceitos em um grande posto, em meio a um continente afetado pela xenofobia e a islamofobia.

Khan, que foi ministro dos transportes com Gordon Brown, é um jurista com atuação em direitos humanos, com grande destaque para os dos homossexuais. Em uma comunidade que engloba 1,5 bilhão de pessoas como a muçulmana, existem diversas correntes, e infelizmente as que costumam ganhar destaque são a de fundamentalistas como os de Bangladesh, que mataram recentemente um diretor de revista pelo simples fato deste defender os direitos LGBT. No entanto, como é observado na crescente conservadora brasileira, o fundamentalismo religioso pode ter origem em qualquer crença, e casos tão graves quanto estes já ocorreram, por exemplo, em Uganda, por influência de extremistas cristãos (God Loves Uganda é um documentário ótimo sobre o tema, tem no Netflix).

Ainda sobre religião, vale citar que Goldsmith é judeu, apesar de ter poucas ligações. E neste exato momento, uma das figuras mais vinculadas nos jornais israelenses é justamente o líder trabalhista Jeremy Corbyn, que recentemente se manifestou de maneira considerada antissemita por muitos judeus. Como dito anteriormente, os trabalhistas não vivem um bom momento, e seu líder é criticado frequentemente por posturas vistas como radicais em excesso. Por outro lado, os conservadores estão fragmentados pelos posicionamentos quanto ao chamado Brexit, o referendo que, em junho, vai definir a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia.

O atual prefeito de Londres, Boris Johnson, é o maior defensor dentro do partido de uma saída dos britânicos da união. Seu maior adversário interno é justamente o primeiro-ministro David Cameron, que acredita ser vital, principalmente para a economia, a permanência. Goldsmith é favorável à saída, o que o afastou da importante figura do líder e tudo indica que isto terá efeitos nas urnas contra o conservador. Os trabalhistas neste caso estão mais unidos, e esta é uma das principais plataformas de política de fato que Khan, favorável à manutenção, diverge de Goldsmith.

E é esta Europa unida que a vitória de Khan representa. O continente da pluralidade, com algumas das mais cosmopolitas cidades do planeta, e que tem uma tradição fantástica em acolher e integrar outras culturas. A Europa que dá a oportunidade de um filho de imigrante vencer democraticamente um bilionário representante de uma das principais elites globais, não aquela que fecha a porta para refugiados desesperados por uma mínima condição de sobrevivência. É a Europa que dá a Mahrez, um argelino muçulmano, o prêmio de melhor jogador em sua principal liga nacional, não aquela liderada por Viktor Orban que constrói muros e esquece o Tratado de Schengen.


E que Goldsmith seja tratado sem estigmas. Não é por vir de uma das escolas mais elitistas do planeta que isso seja um demérito, afinal de contas um dos maiores autores da história também estudou lá, apesar de ter ficado longe de ser bilionário. E que a crítica às políticas de Khan sejam absolutamente isentas do que sua posição representa, sendo feitas de maneira idônea e pelo que ele fizer não por quem é ou foi. Mas essa história ficará pra sempre registrada. Teria o autor de “1984” imaginação para antecipá-la? Ah, teria. Maldita tuberculose.