quinta-feira, 5 de maio de 2016

"London Calling"

É complicado para aqueles que tiveram mais contato com a obra de George Orwell não nutrir certa antipatia por Eton, a elitista escola na qual o autor se formou. E o candidato a prefeito de Londres, Zac Goldsmith, tem várias atribuições que poderiam fazer com que este endossasse a lista de altos cargos dos célebres ex-alunos do colégio. Bilionário, o político conservador vive um grande momento de seu partido, que recentemente reelegeu seu líder, David Cameron, como primeiro-ministro com um número de cadeiras bem acima dos trabalhistas, algo pouco usual no Reino Unido.

No entanto, o favorito para substituir o também conservador Boris Johnson, é o trabalhista Sadiq Khan. Paquistanês, filho de motorista de ônibus, Khan se formou em uma escola comunitária, e tem a possibilidade de se tornar o primeiro prefeito muçulmano de uma grande capital ocidental. O mandato em Londres, o terceiro maior majoritário da Europa, perdendo apenas para as presidências de França e Portugal, colocaria um muçulmano que rompe com diversos estigmas e preconceitos em um grande posto, em meio a um continente afetado pela xenofobia e a islamofobia.

Khan, que foi ministro dos transportes com Gordon Brown, é um jurista com atuação em direitos humanos, com grande destaque para os dos homossexuais. Em uma comunidade que engloba 1,5 bilhão de pessoas como a muçulmana, existem diversas correntes, e infelizmente as que costumam ganhar destaque são a de fundamentalistas como os de Bangladesh, que mataram recentemente um diretor de revista pelo simples fato deste defender os direitos LGBT. No entanto, como é observado na crescente conservadora brasileira, o fundamentalismo religioso pode ter origem em qualquer crença, e casos tão graves quanto estes já ocorreram, por exemplo, em Uganda, por influência de extremistas cristãos (God Loves Uganda é um documentário ótimo sobre o tema, tem no Netflix).

Ainda sobre religião, vale citar que Goldsmith é judeu, apesar de ter poucas ligações. E neste exato momento, uma das figuras mais vinculadas nos jornais israelenses é justamente o líder trabalhista Jeremy Corbyn, que recentemente se manifestou de maneira considerada antissemita por muitos judeus. Como dito anteriormente, os trabalhistas não vivem um bom momento, e seu líder é criticado frequentemente por posturas vistas como radicais em excesso. Por outro lado, os conservadores estão fragmentados pelos posicionamentos quanto ao chamado Brexit, o referendo que, em junho, vai definir a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia.

O atual prefeito de Londres, Boris Johnson, é o maior defensor dentro do partido de uma saída dos britânicos da união. Seu maior adversário interno é justamente o primeiro-ministro David Cameron, que acredita ser vital, principalmente para a economia, a permanência. Goldsmith é favorável à saída, o que o afastou da importante figura do líder e tudo indica que isto terá efeitos nas urnas contra o conservador. Os trabalhistas neste caso estão mais unidos, e esta é uma das principais plataformas de política de fato que Khan, favorável à manutenção, diverge de Goldsmith.

E é esta Europa unida que a vitória de Khan representa. O continente da pluralidade, com algumas das mais cosmopolitas cidades do planeta, e que tem uma tradição fantástica em acolher e integrar outras culturas. A Europa que dá a oportunidade de um filho de imigrante vencer democraticamente um bilionário representante de uma das principais elites globais, não aquela que fecha a porta para refugiados desesperados por uma mínima condição de sobrevivência. É a Europa que dá a Mahrez, um argelino muçulmano, o prêmio de melhor jogador em sua principal liga nacional, não aquela liderada por Viktor Orban que constrói muros e esquece o Tratado de Schengen.


E que Goldsmith seja tratado sem estigmas. Não é por vir de uma das escolas mais elitistas do planeta que isso seja um demérito, afinal de contas um dos maiores autores da história também estudou lá, apesar de ter ficado longe de ser bilionário. E que a crítica às políticas de Khan sejam absolutamente isentas do que sua posição representa, sendo feitas de maneira idônea e pelo que ele fizer não por quem é ou foi. Mas essa história ficará pra sempre registrada. Teria o autor de “1984” imaginação para antecipá-la? Ah, teria. Maldita tuberculose.

Nenhum comentário:

Postar um comentário