segunda-feira, 27 de julho de 2015

O Prêmio das Delações

É bem complicado falar sobre a política de um país em que o resultado de uma investigação tem mais impacto do que as próprias peças do cenário. Soma-se a isso a clara divisão criada no país desde as eleições do ano passado em que comentários um pouco mais críticos ao governo podem levar a uma sentença de golpismo e em contrapartida um elogio já é quase uma nota fiscal para demonstrar que você foi comprado pela situação. Se alguém ainda não percebeu isso, faça o seguinte exercício: abra uma notícia sobre política de um jornal estrangeiro e leia os comentários. Há discussões e argumentos e poucas vezes vi Angela Merkel ser chamada de vaca ou Isaac Herzog ser acusado de golpista.
Claro que o cenário de crise política deriva em grande parte dos fracassos econômicos recentes do Brasil e que enquanto inflação e desemprego estavam controlados, os nomes do vice, do presidente da câmara e do ministro da Fazenda sequer eram de fato conhecidos pela maioria. A partir do momento que uma eleição termina com a oposição fortalecida e o mais alto escalão do governo sob suspeita em uma investigação, o cenário se faz perfeito para a disputa pelo poder.
O PMDB soube explorar isso muito bem, exemplo foi a articulação política ter ficado com Michel Temer com menos de seis meses de novo governo. Uma movimentação que deixou claro que desta vez o partido seria protagonista. A presidência da câmara foi a grande vitória do PMDB que se aliou a oposição e se impôs sobre um governo enfraquecido e que tinha cada vez menos apoio. Medidas de grande apelo popular, junto a uma enorme quantidade de votações que dão a impressão de que a câmara está de fato trabalhando, levaram a Eduardo Cunha uma popularidade alcançada poucas vezes por alguém em seu cargo na história do Brasil. Junto a isso, a alcunha de primeiro-ministro, que se fez cada vez mais verdadeira com a apatia da presidente, o que levou a até comparações desta com a Rainha da Inglaterra.
Tudo indicava que Cunha só esperava o momento certo para romper de vez com o governo, e com sua enorme base de apoio, de fato se consolidar como a principal força política do país, dominando a câmara enquanto a presidente ficava com uma aprovação abaixo dos 10%. Eis que uma delação colocou o político em uma situação complicada, com indícios de que teria recebido 5 milhões de dólares nos esquemas que assolam o país. Cunha agiu rápido e rompendo sua ligação com o governo, conseguiu uma manchete que ofuscou a acusação. Ainda assim a perda de capital político foi enorme e boa parte dos quadros que o apoiavam incondicionalmente não vão querer ter seus nomes ligados a um caso de corrupção. É cedo para decretar seu fim político, ainda assim o primeiro-ministro de sucesso meteórico vai ter que segurar suas aspirações por um tempo.
Com o PT se desgastando cada vez mais, a alternativa para muitos políticos com medo de arranhar sua imagem foi atacar o partido, óbvio, criticando a corrupção e ganhando apoio popular. Marta Suplicy encabeçou o movimento e inclusive rompeu com o PT. Lula, visto como o Dom Sebastião brasileiro, na lenda o rei português que retornaria depois de anos para salvar o país, cada vez mais se distância do governo e já dá mostras de que pode se inspirar em José Mujica e criar uma Frente Ampla de esquerda. Tudo isso, claro, contando que os resultados das investigações permitam a carreira do Dom Sebastião tupiniquim, assim como seu estado de saúde.
O esgotamento do PT fragmentou o principal partido da oposição (a maior oposição é interna, sem dúvidas), o PSDB vê 2018 como momento ideal para vencer as eleições e evidentemente o quadro paulista liderado por Alckmin e Serra não está satisfeito com o candidato natural do partido, Aécio Neves para as eleições. A disputa interna pode dificultar a campanha do partido, assim como a participação de um candidato do PMDB, que é praticamente garantida.
30%. Segundo a agência de classificação de risco Eurasia, uma referência no mundo, essa é a chance de Dilma Rousseff não terminar o mandato. O número é muito alto principalmente levando em conta que ainda faltam mais de três anos para a presidente. A agência demorou muito para aumentar de 20% para 30% a possibilidade e há grandes indícios políticos de que a oposição, apesar de resistência interna, se movimente para um impeachment, e não, isso não tem nada com golpe. Todo este cenário depende do prosseguimento das investigações da Lava Jato e que CPI’s como a do BNDES não sejam abertas, já que estas podem tornar tudo ainda mais complicado para o governo.
Há chances para Dilma e o PT? Acredito que sim, apesar de vencer 2018 sem Lula ser praticamente impossível, uma recuperação econômica pode colocar o partido a ser de novo uma força importante, ainda que não para cargos majoritários. O rompimento de Eduardo Cunha junto às denúncias ao deputado pode ter sido a primeira boa notícia para os governistas em muito tempo. O fato é que 2018 está muito longe e quando o juiz Sérgio Moro passa a ser uma figura mais ativa politicamente que Dilma Rousseff e suas mandiocas, alguma coisa não está certa. A justiça tem seu preço.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

É a Economia, estúpido

O título é uma referência à campanha de Bill Clinton em 1992, que buscava mostrar que os problemas dos EUA no geral começavam com o mau momento econômico do país. No Brasil em 2014, excetuando aqueles que dizem não ver a crise e que vão achar tudo isso sem sentido, os problemas políticos não podem ser dissociados do difícil momento econômico que o país atravessa. Incompetência administrativa, gastos públicos excessivos e a corrupção aparecem como os principais vilões, mas há questões além dessas.
As dificuldades começaram a aparecer no meio do governo Dilma, um grande marco para entender como o desempenho econômico de um país é visto no estrangeiro são as referências a este na The Economist. Em meados daquele ano, uma capa da revista foi a do Cristo Redentor desgovernado no céu do Rio de Janeiro. Quatro anos antes, quando as medidas do governo viviam seu auge e como Lula disse, a crise financeira mundial havia atingido o Brasil apenas como uma “marolinha”, a capa da mesma revista era a mesma estátua, decolando. O interessante é que as mesmas apostas que salvaram o Brasil do momento delicado em 2008 nos colocaram neste.
Externamente o PT aplicou uma ousada aproximação com a China e um consequente distanciamento dos EUA, tradicional parceiro. A isso, somou-se a união entre os vizinhos que faziam parte do MERCOSUL, e que assim como o Brasil, possuíam uma estratégia de distância dos ianques. A estratégia deu certo durante o auge do crescimento chinês, salvou a Argentina da enorme crise de 2001, levou grande desenvolvimento social a Venezuela e Brasil e ajudou Paraguai e Uruguai. Vender principalmente commodities à China para sustentar sua invejável infraestrutura se mostrou um grande negócio. O problema é que os governos de imenso apelo populista não reinvestiram dinheiro em infraestrutura por aqui, deixando seus países altamente dependentes de vender matéria prima aos chineses.
Por outro lado no continente, Peru, Colômbia e Chile não deixaram de exportar para a China, ainda assim, sem o que ficou conhecido como “amarras do MERCOSUL”, estes países buscaram ampliar seu comércio, principalmente para o promissor mercado do Pacífico. Só para se ter uma ideia, o país que mais deve crescer este ano é Papua Nova-Guiné, com os assustadores 15%, sendo um bom representante do que investir nas economias pouco desenvolvidas dessa região do mundo pode render. Colômbia e Peru lideram com sobras o crescimento na América do Sul, com médias entorno de 4% de aumento no PIB nos últimos anos, enquanto vale lembrar que Brasil, Argentina e Venezuela beiram a recessão.
O ciclo de crescimento absurdo chinês começou a dar mostrar de estar saturado. Com a adesão da paupérrima Bolívia recentemente, o que restou no MERCOSUL para o Brasil foi uma Venezuela absolutamente arrasada pela baixa do petróleo, uma Argentina em grave crise, um Paraguai que sequer conta com saída para o mar. A melhor condição fica com o Uruguai, um país com uma população equivalente a da Grande Salvador e que não pode ser considerado um grande parceiro para sustentar a sétima economia do mundo.
Internamente, apostar em crédito fácil e concessões como a redução do IPI, resolveu em um primeiro momento. O Brasil não sofreu com o desemprego, as indústrias seguiram em um bom nível e o país não foi fortemente afetado. O problema é que não dá para apostar para sempre que a população seguirá comprando carros e os chamados eletrodomésticos da linha branca todos os anos, o que acarreta que em um momento de desconfiança como este, as compras começam a cair, o resultado é crise no setor e o enorme número de demissões a que assistimos diariamente.
Altas da taxa de juros e do dólar são dois dos principais remédios para o problema. Apesar de poder atrapalhar planos em curto prazo, é graças à desvalorização do real que não temos nem chances de virar uma Grécia. O fato da moeda grega não poder ficar mais barata, e, portanto as exportações ficarem mais competitivas, sem aprovação da Zona do Euro talvez tenha sido o grande vilão do atual momento grego. Os juros ajudam a atrair investimento estrangeiro, e usando o parâmetro dos principais veículos internacionais do assunto, o Financial Times e a The Economist, parece que o Brasil vai retomando a confiança. No começo do ano, o FT chegou a inclusive a publicar um artigo que listava dez motivos pelos quais Dilma não terminaria o mandato. Os elogios a Joaquim Levy, chamado de “Chicago Boy” por conta de sua formação acadêmica também são frequentes nas publicações.
A medida é difícil de aceitar, mas tem de ser a austeridade. Voltando ao começo do texto, realmente há enormes gastos no governo e só o corte de muitos podem colocar o país na reta do crescimento e trazer de volta a confiança internacional. O problema são os desdobramentos políticos disso e o que ainda não veio à tona. Assunto para logo.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

O Estado Islâmico pode ajudar a resolver a Questão Palestina?

O fenômeno político recente, que divide a Palestina, deixou este conflito tão complexo ainda mais complicado e com uma resolução parecendo cada vez mais longe. Desde a escalada de violência no começo dos anos 2000 e a morte de Yasser Arafat, líder da Autoridade Nacional Palestina, em 2004, palestinos passaram a se dividir na disputa pelo poder.
O resultado de diversos conflitos internos foi um grupo considerado pelo Ocidente como terrorista, o Hamas, assumindo o controle na Faixa de Gaza, enquanto a chefia da Cisjordânia ficou com a ANP sob o comando de Mahmoud Abbas. A instituição é reconhecida internacionalmente como a representante dos interesses palestinos, cabendo a Abbas a máxima responsabilidade pelas negociações de paz com os israelenses. Já o Hamas é visto como um grupo terrorista por Israel e desde que assumiu o poder na Faixa de Gaza, em 2006, se envolveu em duas guerras com o país, a última no meio do ano passado.
O grupo tem uma ideologia islâmica, e desde a sua fundação é adepto do tudo ou nada para os palestinos, ou seja, uma luta até o fim de Israel e a retomada completa do lugar pelos árabes. A ANP negocia uma solução de dois estados, na qual Israel e Palestina coexistiriam dividindo Jerusalém como capital. Obviamente o crescimento do Hamas como representante dos palestinos deixou Israel mais longe das negociações para ceder seu território, o que pode mudar com o surgimento de adeptos do Estado Islâmico em Gaza.
Uma parte importante dos muçulmanos apoia a ideologia do Hamas, que é respaldada na Irmandade Muçulmana, maior e mais tradicional partido árabe, fundado em 1928 no Egito. Além disso, diversos governos têm boas relações com o Hamas, como Irã e Catar. No entanto a situação na Faixa de Gaza é caótica, com uma das maiores densidades demográficas do mundo e a maior taxa de desemprego do globo. Há uma grande parcela de jovens que se questionam o que o governo fez por eles, sendo ainda mais suscetíveis a ideias radicais do que iraquianos e sírios que gozavam, por incrível que pareça de condições melhores quando aderiram ao ISIS.
O ISIS não entrou oficialmente na Palestina, ainda assim diversas brigadas vem cometendo atentados ou contra oficiais do Hamas e da Jihad Islâmica, outro grupo importante, ou contra o Sul de Israel, e dizendo que fazem estes em nome da ideologia do Estado Islâmico, repreendida por praticamente todo muçulmano. O fato dos ataques terem origem em Gaza faz com que Israel culpe o Hamas por todos, já que o grupo tem responsabilidade pelo território.
O lado bom disso é que na tentativa de conter os radicais que atacam inclusive o próprio Hamas, o governo pode se tornar menos extremo, sendo mais tolerante inclusive a uma ajuda israelense. Do outro lado, Israel pode ver que o governo islâmico que sempre foi visto como a pior opção na Palestina, conta ainda com variações mais perigosas, já que a tendência de extremistas surgirem é enorme em condições difíceis como a vivida em Gaza. Desta maneira, quem sabe o ISIS não contribua para que, sendo um inimigo comum, dois adversários se aproximem.
Claro que há um risco. Se o ISIS realmente crescer na Palestina, Israel não medirá esforços para conter o ataque, o que seria péssimo para todos. Além disso, vale lembrar que o governo do Hamas tem graves problemas, como as dificuldades impostas a vida dos cristãos. Mas a alternativa, como verificamos em outras partes do Oriente Médio com a crucificação de seguidores do cristianismo, prova que pior do que está, fica sim.


terça-feira, 14 de julho de 2015

Acordo para quem?

Enfim a paz chegou ao Oriente Médio? Não. Foi um erro histórico que tornou o mundo um lugar mais inseguro? Provavelmente não. Mas o acordo nuclear do G5+1 (Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha) com o Irã foi um dos maiores acontecimentos desde o fim da Guerra Fria.
Primeiro pelas opções sugeridas ao invés dele: mais sanções ao Irã ou uma intervenção militar. A segunda provavelmente iria causar a maior guerra do mundo desde as duas grandes, tornaria o Oriente Médio um completo caos, atacando um país riquíssimo com quase 80 milhões de habitantes. A humanidade já deu grandes lições de sua estupidez , mas essa ainda assim surpreenderia. A outra dificilmente impediria a fabricação de armamento nuclear pelo Irã e apenas dificultaria ainda mais a vida de sua população, além de não aumentar a oferta de petróleo. Cada um escolhe o que acha pior.
Quem não gostou do acordo, que torna o mundo um lugar mais seguro por pelo menos dez anos, foram os países árabes sunitas, liderados pela Arábia Saudita, além de Israel. A resolução era o principal tema da campanha do primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que usou o medo da sua população de um vizinho que sequer reconhece Israel como país desenvolver armas nucleares. Apesar das estratégias propostas por ele serem absurdas, como a intervenção militar no Irã, somadas a uma postura israelense hipócrita, já que o país desenvolveu secretamente armas nucleares, Netanyahu usou bem eleitoralmente o temor de sua população e conseguiu se reeleger. E fez isso mesmo com uma das piores avaliações externas de um primeiro ministro israelense na história. Sem dúvidas ele e seu Likud não gostaram do acordo.
O outro lado é mais complicado e pode sim ser o principal ponto de discussão sobre o quanto o acerto é positivo. O mundo ficou mais seguro, já o Oriente Médio em futuro próximo talvez não, mesmo que o Irã não tenha condições de fabricar os armamentos. O regime iraniano dos aiatolás já influencia pelo menos cinco países com populações xiitas. Líbano e Bahrein possuem uma estabilidade maior, fato que não ocorre nas disputas entre sunitas e xiitas pelo poder na Síria, Iêmen e Iraque. É difícil dizer se governos financiados pelo regime ditatorial saudita e seus aliados do golfo são melhores que os que agora terão mais dinheiro iraniano envolvido, com a retirada das sanções sobre o petróleo do país. O fato é que olhando para um espaço de tempo breve, estabilidade na região não deve ser um legado do acordo. Ainda assim, não ter um governo hostil por tanto tempo com armamento nuclear naquela região não pode ser visto como um retrocesso de paz.
Os dois grandes interessados no acordo foram o governo Obama e os próprios iranianos. Uma metáfora que ficou comum nos Estados Unidos comparava o acerto com o Irã à baleia Moby Dick. Obama sabia que apostar todas as suas fichas naquele acordo poderia afundar de vez o seu governo, criticado pela ineficiência. Vale lembrar que duas promessas de campanha, a retirada total de tropas do Afeganistão e o fechamento de Guantánamo ficaram bem longe de serem cumpridas.
Aparecia ali a grande oportunidade para salvar o legado de um presidente que chegou prometendo bastante, levou até um Nobel da Paz por isso, mas ficou bem aquém. As negociações começaram em 2013, quando os democratas ainda tinham maioria na Câmara e no Senado, e na medida em que a situação política começava a virar, inclusive com a perda das duas casas no ano passado, Obama passou a ter pressa. Se houver uma votação contrária ao acordo, ainda caberá o veto presidencial, que por conta do tipo de negociação feita, só pode ser retirado por dois terços do senado. Praticamente impossível. Se um republicano vencer no próximo ano, algo no mínimo difícil, este poderá até tentar invalidar o acordo, mas ainda seria uma tarefa muito complicada.
A pressa de Obama só ajudou o grande beneficiado com o acordo, o próprio Irã. Logo quando o presidente Rouhani fez o anúncio, já ressaltou que o poder de negociação dos iranianos foi formidável. A primeira proposta paralisaria os avanços nucleares do Irã nesta área por 25 anos e obrigaria o reconhecimento do Estado de Israel pelo regime. O final foi um acordo complicado, que diverge entre oito e dez anos de paralisações, mas nada em relação aos israelenses. 
Nas ruas de Teerã o anúncio foi comemorado como um título de futebol. A popularidade do governo que agora terá um grande incremento financeiro está muito alta. Vale lembrar que diferente de boa parte dos países árabes que têm boas relações com os EUA, mas suas populações odeiam os americanos, o governo do Irã vê americanos como inimigos, no entanto principalmente entre os jovens, os ianques são vistos com bons olhos.
É difícil prever se a aproximação se dará também em áreas como o combate ao ISIS, inimigo comum, mas é provável que após a guinada liberal no governo de Rouhani, o Irã melhore suas relações com o Ocidente.

E nós com isso? Bom, pela lei básica da oferta e da procura mais petróleo no mercado faria o preço da gasolina cair. Por outro lado estamos tratando de Oriente Médio e fazer previsões é mais difícil que desenvolver bombas nucleares. É possível que sauditas e aliados cortem a produção para aumentar o preço do combustível e terem ainda mais dinheiro para financiarem milícias na luta contra as xiitas? Sim. Mas vamos esquecer a gasolina dessa vez. Finalmente estamos mais seguros.

domingo, 31 de maio de 2015

O Caos Faraônico no Egito (Part. II)

Seguindo o contexto do Egito pós-Primavera Árabe, chegamos à tomada do poder pelo militar Al-Sisi. Com eleições questionáveis, no entanto pouco contestadas no Ocidente, o atual presidente obteve quase 100% dos votos, e o Egito passou a ter um governo que prometia linha dura contra as ameaças terroristas, resgate das tradicionais alianças e o retorno de um estado laico.
As duas primeiras coisas foram mais fáceis. Retomando a aliança principalmente com os EUA, o Egito voltou a receber a tradicional mesada paga por Washington com o pretexto de combater o terrorismo na região. As críticas na mídia Ocidental ficaram mais escassas, e a situação financeira do país melhorou um pouco. Então faltava a terceira parte.
Al-Sisi decidiu colocar o maior partido do país, que havia vencido todas as eleições legislativas e executivas da história egípcia até então, na ilegalidade. Os membros da Irmandade Muçulmana passaram a sofrer perseguição e a serem presos aos montes. As acusações variavam das justas, como pelos abusos cometidos durante o regime anterior, de Mohamed Mursi, até absurdos como terrorismo e espionagem a favor do Irã, por parte de componentes pouco graduados do governo.
As sentenças vinham em bando e a revolta começou a se espalhar pelo Egito quando tribunais sujeitos ás intenções do governo passaram a condenar diversos membros da Irmandade á morte. Os protestos, organizados ou não pelo partido, eram duramente reprimidos pela junta militar o que gerava mais radicalismo por parte dos partidários mais extremos. Atos como a invasão de delegacias para libertar os condenados passaram a ser comuns e foram usados como justificativa para ainda mais condenações. Para conseguir apoio, as acusações eram acrescidas de que a motivação para a invasão das prisões era a de libertar membros do Hamas e do Hezbollah, grupos considerados terroristas pelo Ocidente, o que aumentou o apoio dos aliados internacionais aos atos do governo.
Enquanto Al-Sisi buscava condenar ainda mais a Irmandade Muçulmana, como em entrevista recente ao jornal espanhol El Mundo, na qual o presidente afirmou que o partido mais tradicional do islamismo era tão perigoso quanto a Al Qaeda e o ISIS, o Estado Islâmico ganhava mais força no país, principalmente na Península do Sinai. O local, famoso pelas disputas com Israel até a década de 80, passou a contar com células do grupo que lutam contra as poucas forças militares egípcias deslocadas até a região e impõe seu terror principalmente aos cristãos cooptas, maior comunidade cristã do Egito, com sequestros e execuções.
A situação do governo parecia estável, com a repressão continuando e uma relativa aceitação na comunidade internacional. As criticas não apareciam com frequência e o país foi ficando de fora das manchetes, apesar dos absurdos cometidos, afinal de contas como Al-Sisi disse na mesma entrevista, compare as cifras de mortos do Egito com a Síria e o Iraque. A declaração, que tem o mesmo valor de: “Claro que alguém não pode ser esfaqueado no Rio de Janeiro, mas olha quantas pessoas foram esfaqueadas em Maceió e Fortaleza nesse ano” foi superada em relação ao surrealismo quando Mohamed Mursi, primeiro presidente eleito da história do Egito foi condenado à morte em primeira instância.  O resultado, que pode ser alterado no dia 2 de junho, derivou de acusações como a relação do ex-presidente com os ataques ás prisões e teor terrorista destes atos, além de crimes durante seu mandato.
A mídia estrangeira passou a questionar o fato de um presidente democraticamente eleito ser condenado á morte menos de três anos depois do pleito, em pleno século XXI. A repercussão no Egito não foi das mais positivas, com apoiadores e opositores da Irmandade Muçulmana se juntando para protestar contra a decisão. A instabilidade se dá no momento mais critico das relações de Al-Sisi com o Ocidente, já que o governo egípcio se posicionou claramente contra o acordo nuclear com o Irã, encabeçado pelos EUA.
O acordo é prioridade no governo Obama e deve definir a política dos EUA para o Oriente Médio em um futuro próximo. Do lado do Egito, estão Israel e Arábia Saudita, que se opõe ao acordo temendo que o fim das sanções ao Irã aumente o poder do país na região, e o que acontecerá após o fim dos 10 anos de congelamento do desenvolvimento nuclear iraniano. Sabendo da dependência que seu regime tem em relação ao Ocidente, Al-Sisi foi mais tímido na oposição que sauditas e israelenses. Netanyahu, primeiro ministro de Israel, por exemplo, fez um discurso no congresso norte-americano criticando o acordo. O resultado foi uma deterioração entre Israel e EUA como poucas vezes foi visto na história.
O clima de instabilidade obviamente afetou e muito o turismo no país das famosas pirâmides, que com uma economia pouco desenvolvida, depende muito da atividade. Outro fator que ficou ainda mais escancarado com a crise no país é a violência contra as mulheres, sendo raríssimos os relatos de alguma que andou pelas ruas do Egito e não sofreu assédio. Estudos indicam que 83% das mulheres egípcias disseram já ter sofrido algum tipo de agressão. A sensação de frustração dos jovens e as vertentes tradicionais que minimizam o papel feminino na sociedade são os principais culpados pelo fato de o mesmo estudo dizer que 63% dos homens assumiram já ter cometido assédio e isso não ser visto como um absurdo pela maioria.
A maior nação árabe, berço do Islamismo moderno e dona de uma história milenar ser guiada por interesses de fora, muitas vezes pouco voltados ás reais ambições dos locais, e a disputas internas em que políticos democraticamente eleitos podem ser condenados á morte no próximo governo, ajuda a explicar a situação de deterioração do mundo árabe.  
E esse é o Egito depois da Primavera Árabe. Saber o que deve acontecer no país em um futuro próximo é tão complicado quanto descobrir o passado da terra dos faraós.

terça-feira, 26 de maio de 2015

O Caos Faraônico no Egito

Era o momento que todos aguardavam. O começo de 2011 trazia o fim da corrupção, da repressão, e da falta de liberdade que atormentaram o Egito pelas quase três décadas de Hosni Mubarak no comando. Era mais um reflexo da Primavera Árabe, que tirou o poder de Ben Ali na Tunísia e representava a esperança para o Oriente Médio.
Os meses que seguiram a saída de Mubarak, claramente não foram fáceis, como nunca é fácil reerguer um país depois que uma figura política tão importante sai do poder. A junta militar que assumiu o Egito foi acusada de reprimir diversas manifestações que tomavam conta do Cairo e se concentravam principalmente na tradicional Praça Tahrir.
Os analistas não viam o cenário político como ideal para a realização das primeiras eleições da história do Egito, já que os anos de repressão não haviam possibilitado a ascensão de nenhum grupo político forte, restando assim apenas a Irmandade Muçulmana como real expressão política do país. O grupo, que já entrou na ilegalidade algumas vezes desde a sua fundação em 1928, é baseado no Islã Político, e era visto como uma ameaça às liberdades religiosas principalmente dos quase 20% de cristãos que vivem no Egito.
A força da Irmandade Muçulmana, um dos principais partidos islâmicos do mundo, aliada a ansiedade pelo primeiro pleito eleitoral da história egípcia, levou a população ás urnas no ano de 2012 mesmo com os diversos avisos de que o país não estava pronto. O resultado das apressadas eleições foi o de uma abstenção próxima de 50%, e o candidato Ahmed Shaqif, que fazia parte do governo deposto de Hosni Mubarak, perdendo as eleições por uma margem muito pequena para o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohamed Mursi, demonstrando assim a enorme falta de representação dos egípcios com o pleito.
Aqueles que apoiavam o partido islâmico, apoio pelo qual muitos foram inclusive presos nos anos de Mubarak, viam na vitória eleitoral o começo de um novo Egito. Do outro lado se encontrava aqueles que acreditavam em um país secular, e que temiam o que o governo de Mursi poderia trazer.
Pouco tempo depois, e os opositores da Irmandade Muçulmana se mostraram certos. O fato de o governo de Mursi ir contra tradicionais aliados egípcios, em especial os EUA, por conta seguir um caminho iraniano: fortalecendo relações com grupos considerados terroristas pelo Ocidente, como o Hamas e o Hezbollah, complicou a situação do país. O Egito se deteriorou economicamente e perdeu apoio internacional.
A situação complicada do país veio acompanhada de uma enorme centralização do poder por Mursi, para muitos maior que a dos tempos de Mubarak, o que lhe rendeu a alcunha de faraó. O governo religioso tirou diversos direitos dos cristãos e reprimiu violentamente aqueles que se manifestaram contra.
O cenário foi se deteriorando até que em 2013, seculares muçulmanos, cristãos, membros da Irmandade Muçulmana que não concordavam com o governo, e boa parte das outras camadas da sociedade egípcia, se juntaram para manifestar contra o Mursi. Os protestos se arrastaram e as estimativas dão conta que o ápice destes mobilizou cerca de 25 milhões de pessoas (alguns dados apontam até 40 milhões) nas ruas do Egito, o que é considerado a maior manifestação da história e surpreende ainda mais ao se levar em conta que se trata de um país com 90 milhões de habitantes.
A pressão tirou Mohamed Mursi do poder, mas não resolveu os problemas do Egito. O que se seguiu foi a chegada ao poder do militar Al-Sisi, que enfrenta avanços do Estado Islâmico na Península do Sinai e tem uma deterioração de suas relações com os EUA, por conta das negociações do programa nuclear iraniano. Assuntos do nosso próximo post.
Obs: The Square, ótimo documentário do Netflix falando sobre os protestos na Praça Tahrir

terça-feira, 5 de maio de 2015

Pelo Caminho Mais Longo

Nesse feriado aproveitei para assistir ao ótimo Selma e ao ótimo, para quem gosta do Tarantino, Django Livre. Claro que no meio disso, a atenção realmente ficou nos protestos em Baltimore, que já vinham se arrastando, e no domingo, nos de Tel Aviv.
Apesar da violência impactante de Tarantino e a bela história contada em Selma, ainda assim os protestos me chamaram mais a atenção, por um motivo: o quanto o mundo se tornou complexo.
Em Django, ser a favor dos direitos humanos significava ser contra a escravidão. Em Selma, defender a justiça e a igualdade representava apoiar a luta pelos direitos civis e reconhecer a diferença existente entre negros e brancos. Mas como se posicionar diante da morte de um negro por três policiais negros? E da discriminação de judeus em Israel?
Simplificar os movimentos da última semana em apenas batalhas de negros contra brancos é tão grave quanto direcionar a política atual meramente em disputas de esquerda contra direita. Dizer que Freddie Grady foi morto em Baltimore meramente por ser negro, em uma cidade em que a prefeita é negra, o chefe de polícia é negro, o presidente da câmara dos deputados é negro e dois terços da população são negros, não é meramente simples, é perigoso.
Baltimore sofreu com um processo semelhante ao de Detroit com a fuga das indústrias no século passado, mas ao invés do Robocop comandando as ruas, quem assumiu foi uma polícia extremamente repressiva. A diminuição de postos de emprego fez com que a classe média fosse embora da cidade, junto aos bons negócios. O cenário foi de legítimos bolsões de pobreza, uma taxa de desemprego entre jovens que se aproxima de 50% e a opção a estes de competir por empregos de baixa qualificação ou o tráfico de drogas.
A consequência da sexta maior cidade do país passar a ser a vigésima quinta em um espaço de tempo tão breve, deixando a população tão desamparada, não poderia ser outra que não a explosão da violência. Segundo estudo do Washington Post, Baltimore tem nove bairros com expectativa de vida menor do que na Síria. A taxa de homicídios na cidade beira os 34 por 100 mil habitantes, maior que a brasileira e cerca de três vezes a de São Paulo. Todos sofrem em Baltimore.
Com menos alarde da imprensa, mas com grande importância, tivemos no domingo manifestações de judeus etíopes em Jerusalém, e principalmente em Tel Aviv. Os 2% da população israelense de origem do país africano são, sobretudo descendentes de uma grande onda de imigração no final do século passado, fugindo da miséria que a Etiópia enfrentava.
Os pais e avós desses judeus, seja por conformação, ou por real convicção, não se destacaram por questionar as condições de vida superiores legadas aos brancos em Israel. No entanto a atual geração participou de manifestações que acabaram em violência nos principais centros do país. Os protestos começaram depois do vídeo da agressão de um soldado etíope-israelense por dois agentes do governo.
O vídeo foi a gota d’água para desencadear os questionamentos de uma situação que incomoda esses cidadãos, que alegam serem vistos como inferiores em Israel. A porcentagem de suicídios nessa comunidade é cinco vezes a média do país. Em algumas cadeias, chega ao número de 40% das detenções de jovens serem de etíopes. O desemprego entre eles é o dobro da população geral.
Normalmente associada a um contexto de judeus e árabes em Israel, a discriminação racial se apresenta como absolutamente complexa na região. As desigualdades entre negros e brancos não impedem, por exemplo, que os mesmos etíopes que sofrem com as condições no país apoiem ideias e candidatos que discriminam os árabes. Prova disso é o Likud, partido no poder em Israel, ter um deputado de origem etíope-israelense, eleito com amplo apoio desta comunidade. O partido busca a consolidação do país como lar do povo judeu, o que colocaria os cerca de 20% de árabes-israelenses que vivem ali em uma situação muito delicada.
Recriminar o abuso de policiais contra negros nos EUA é necessário. Denunciar a atual postura do governo israelense de discriminação aos árabes é igualmente vital. Mas dizer que as questões nos EUA se baseiam simplesmente em negros contra brancos, e que em Israel se trata de judeus contra árabes, são atalhos. Seja resumindo em esquerda-direita, brancos-negros, judeus-árabes, estadunidenses-latinos, nós-eles. É sempre o jeito mais fácil.
É impossível distinguir o quanto a cor de pele influência nestes dois contextos. Mas basear-se somente nesse aspecto em detrimento da análise de um âmbito maior, é um absurdo. É tão errado quanto grupos de extrema esquerda e direita que radicalizaram as manifestações em Tel Aviv e além de enfraquecer os justos protestos, fizeram com que vários apoiadores pacíficos ficassem feridos.
Radicalizar é sempre um atalho. Normalmente para o mau caminho. Como mostra Selma, Martin Luther King percorreu, literalmente, o caminho mais longo e conseguiu direitos inéditos para os negros pelos meios mais difíceis, mas que se mostraram os melhores. Não vamos nos esquecer de que o seu sonho ainda vive.