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domingo, 31 de maio de 2015

O Caos Faraônico no Egito (Part. II)

Seguindo o contexto do Egito pós-Primavera Árabe, chegamos à tomada do poder pelo militar Al-Sisi. Com eleições questionáveis, no entanto pouco contestadas no Ocidente, o atual presidente obteve quase 100% dos votos, e o Egito passou a ter um governo que prometia linha dura contra as ameaças terroristas, resgate das tradicionais alianças e o retorno de um estado laico.
As duas primeiras coisas foram mais fáceis. Retomando a aliança principalmente com os EUA, o Egito voltou a receber a tradicional mesada paga por Washington com o pretexto de combater o terrorismo na região. As críticas na mídia Ocidental ficaram mais escassas, e a situação financeira do país melhorou um pouco. Então faltava a terceira parte.
Al-Sisi decidiu colocar o maior partido do país, que havia vencido todas as eleições legislativas e executivas da história egípcia até então, na ilegalidade. Os membros da Irmandade Muçulmana passaram a sofrer perseguição e a serem presos aos montes. As acusações variavam das justas, como pelos abusos cometidos durante o regime anterior, de Mohamed Mursi, até absurdos como terrorismo e espionagem a favor do Irã, por parte de componentes pouco graduados do governo.
As sentenças vinham em bando e a revolta começou a se espalhar pelo Egito quando tribunais sujeitos ás intenções do governo passaram a condenar diversos membros da Irmandade á morte. Os protestos, organizados ou não pelo partido, eram duramente reprimidos pela junta militar o que gerava mais radicalismo por parte dos partidários mais extremos. Atos como a invasão de delegacias para libertar os condenados passaram a ser comuns e foram usados como justificativa para ainda mais condenações. Para conseguir apoio, as acusações eram acrescidas de que a motivação para a invasão das prisões era a de libertar membros do Hamas e do Hezbollah, grupos considerados terroristas pelo Ocidente, o que aumentou o apoio dos aliados internacionais aos atos do governo.
Enquanto Al-Sisi buscava condenar ainda mais a Irmandade Muçulmana, como em entrevista recente ao jornal espanhol El Mundo, na qual o presidente afirmou que o partido mais tradicional do islamismo era tão perigoso quanto a Al Qaeda e o ISIS, o Estado Islâmico ganhava mais força no país, principalmente na Península do Sinai. O local, famoso pelas disputas com Israel até a década de 80, passou a contar com células do grupo que lutam contra as poucas forças militares egípcias deslocadas até a região e impõe seu terror principalmente aos cristãos cooptas, maior comunidade cristã do Egito, com sequestros e execuções.
A situação do governo parecia estável, com a repressão continuando e uma relativa aceitação na comunidade internacional. As criticas não apareciam com frequência e o país foi ficando de fora das manchetes, apesar dos absurdos cometidos, afinal de contas como Al-Sisi disse na mesma entrevista, compare as cifras de mortos do Egito com a Síria e o Iraque. A declaração, que tem o mesmo valor de: “Claro que alguém não pode ser esfaqueado no Rio de Janeiro, mas olha quantas pessoas foram esfaqueadas em Maceió e Fortaleza nesse ano” foi superada em relação ao surrealismo quando Mohamed Mursi, primeiro presidente eleito da história do Egito foi condenado à morte em primeira instância.  O resultado, que pode ser alterado no dia 2 de junho, derivou de acusações como a relação do ex-presidente com os ataques ás prisões e teor terrorista destes atos, além de crimes durante seu mandato.
A mídia estrangeira passou a questionar o fato de um presidente democraticamente eleito ser condenado á morte menos de três anos depois do pleito, em pleno século XXI. A repercussão no Egito não foi das mais positivas, com apoiadores e opositores da Irmandade Muçulmana se juntando para protestar contra a decisão. A instabilidade se dá no momento mais critico das relações de Al-Sisi com o Ocidente, já que o governo egípcio se posicionou claramente contra o acordo nuclear com o Irã, encabeçado pelos EUA.
O acordo é prioridade no governo Obama e deve definir a política dos EUA para o Oriente Médio em um futuro próximo. Do lado do Egito, estão Israel e Arábia Saudita, que se opõe ao acordo temendo que o fim das sanções ao Irã aumente o poder do país na região, e o que acontecerá após o fim dos 10 anos de congelamento do desenvolvimento nuclear iraniano. Sabendo da dependência que seu regime tem em relação ao Ocidente, Al-Sisi foi mais tímido na oposição que sauditas e israelenses. Netanyahu, primeiro ministro de Israel, por exemplo, fez um discurso no congresso norte-americano criticando o acordo. O resultado foi uma deterioração entre Israel e EUA como poucas vezes foi visto na história.
O clima de instabilidade obviamente afetou e muito o turismo no país das famosas pirâmides, que com uma economia pouco desenvolvida, depende muito da atividade. Outro fator que ficou ainda mais escancarado com a crise no país é a violência contra as mulheres, sendo raríssimos os relatos de alguma que andou pelas ruas do Egito e não sofreu assédio. Estudos indicam que 83% das mulheres egípcias disseram já ter sofrido algum tipo de agressão. A sensação de frustração dos jovens e as vertentes tradicionais que minimizam o papel feminino na sociedade são os principais culpados pelo fato de o mesmo estudo dizer que 63% dos homens assumiram já ter cometido assédio e isso não ser visto como um absurdo pela maioria.
A maior nação árabe, berço do Islamismo moderno e dona de uma história milenar ser guiada por interesses de fora, muitas vezes pouco voltados ás reais ambições dos locais, e a disputas internas em que políticos democraticamente eleitos podem ser condenados á morte no próximo governo, ajuda a explicar a situação de deterioração do mundo árabe.  
E esse é o Egito depois da Primavera Árabe. Saber o que deve acontecer no país em um futuro próximo é tão complicado quanto descobrir o passado da terra dos faraós.

terça-feira, 26 de maio de 2015

O Caos Faraônico no Egito

Era o momento que todos aguardavam. O começo de 2011 trazia o fim da corrupção, da repressão, e da falta de liberdade que atormentaram o Egito pelas quase três décadas de Hosni Mubarak no comando. Era mais um reflexo da Primavera Árabe, que tirou o poder de Ben Ali na Tunísia e representava a esperança para o Oriente Médio.
Os meses que seguiram a saída de Mubarak, claramente não foram fáceis, como nunca é fácil reerguer um país depois que uma figura política tão importante sai do poder. A junta militar que assumiu o Egito foi acusada de reprimir diversas manifestações que tomavam conta do Cairo e se concentravam principalmente na tradicional Praça Tahrir.
Os analistas não viam o cenário político como ideal para a realização das primeiras eleições da história do Egito, já que os anos de repressão não haviam possibilitado a ascensão de nenhum grupo político forte, restando assim apenas a Irmandade Muçulmana como real expressão política do país. O grupo, que já entrou na ilegalidade algumas vezes desde a sua fundação em 1928, é baseado no Islã Político, e era visto como uma ameaça às liberdades religiosas principalmente dos quase 20% de cristãos que vivem no Egito.
A força da Irmandade Muçulmana, um dos principais partidos islâmicos do mundo, aliada a ansiedade pelo primeiro pleito eleitoral da história egípcia, levou a população ás urnas no ano de 2012 mesmo com os diversos avisos de que o país não estava pronto. O resultado das apressadas eleições foi o de uma abstenção próxima de 50%, e o candidato Ahmed Shaqif, que fazia parte do governo deposto de Hosni Mubarak, perdendo as eleições por uma margem muito pequena para o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohamed Mursi, demonstrando assim a enorme falta de representação dos egípcios com o pleito.
Aqueles que apoiavam o partido islâmico, apoio pelo qual muitos foram inclusive presos nos anos de Mubarak, viam na vitória eleitoral o começo de um novo Egito. Do outro lado se encontrava aqueles que acreditavam em um país secular, e que temiam o que o governo de Mursi poderia trazer.
Pouco tempo depois, e os opositores da Irmandade Muçulmana se mostraram certos. O fato de o governo de Mursi ir contra tradicionais aliados egípcios, em especial os EUA, por conta seguir um caminho iraniano: fortalecendo relações com grupos considerados terroristas pelo Ocidente, como o Hamas e o Hezbollah, complicou a situação do país. O Egito se deteriorou economicamente e perdeu apoio internacional.
A situação complicada do país veio acompanhada de uma enorme centralização do poder por Mursi, para muitos maior que a dos tempos de Mubarak, o que lhe rendeu a alcunha de faraó. O governo religioso tirou diversos direitos dos cristãos e reprimiu violentamente aqueles que se manifestaram contra.
O cenário foi se deteriorando até que em 2013, seculares muçulmanos, cristãos, membros da Irmandade Muçulmana que não concordavam com o governo, e boa parte das outras camadas da sociedade egípcia, se juntaram para manifestar contra o Mursi. Os protestos se arrastaram e as estimativas dão conta que o ápice destes mobilizou cerca de 25 milhões de pessoas (alguns dados apontam até 40 milhões) nas ruas do Egito, o que é considerado a maior manifestação da história e surpreende ainda mais ao se levar em conta que se trata de um país com 90 milhões de habitantes.
A pressão tirou Mohamed Mursi do poder, mas não resolveu os problemas do Egito. O que se seguiu foi a chegada ao poder do militar Al-Sisi, que enfrenta avanços do Estado Islâmico na Península do Sinai e tem uma deterioração de suas relações com os EUA, por conta das negociações do programa nuclear iraniano. Assuntos do nosso próximo post.
Obs: The Square, ótimo documentário do Netflix falando sobre os protestos na Praça Tahrir