Seguindo
o contexto do Egito pós-Primavera Árabe, chegamos à tomada do poder pelo
militar Al-Sisi. Com eleições questionáveis, no entanto pouco contestadas no Ocidente, o atual presidente obteve quase 100% dos votos, e o Egito passou
a ter um governo que prometia linha dura contra as ameaças terroristas, resgate
das tradicionais alianças e o retorno de um estado laico.
As duas
primeiras coisas foram mais fáceis. Retomando a aliança principalmente com os
EUA, o Egito voltou a receber a tradicional mesada paga por Washington com o pretexto de combater o terrorismo na região. As críticas na mídia Ocidental ficaram mais
escassas, e a situação financeira do país melhorou um pouco. Então faltava a
terceira parte.
Al-Sisi
decidiu colocar o maior partido do país, que havia vencido todas as eleições
legislativas e executivas da história egípcia até então, na ilegalidade. Os
membros da Irmandade Muçulmana passaram a sofrer perseguição e a serem presos
aos montes. As acusações variavam das justas, como pelos abusos cometidos
durante o regime anterior, de Mohamed Mursi, até absurdos como terrorismo e
espionagem a favor do Irã, por parte de componentes pouco graduados do governo.
As
sentenças vinham em bando e a revolta começou a se espalhar pelo Egito quando
tribunais sujeitos ás intenções do governo passaram a condenar diversos membros
da Irmandade á morte. Os protestos, organizados ou não pelo partido, eram
duramente reprimidos pela junta militar o que gerava mais radicalismo por parte
dos partidários mais extremos. Atos como a invasão de delegacias para libertar
os condenados passaram a ser comuns e foram usados como justificativa para
ainda mais condenações. Para conseguir apoio, as acusações eram acrescidas de
que a motivação para a invasão das prisões era a de libertar membros do Hamas e
do Hezbollah, grupos considerados terroristas pelo Ocidente, o que aumentou o
apoio dos aliados internacionais aos atos do governo.
Enquanto
Al-Sisi buscava condenar ainda mais a Irmandade Muçulmana, como em entrevista
recente ao jornal espanhol El Mundo, na qual o presidente afirmou que o partido mais tradicional do islamismo era tão
perigoso quanto a Al Qaeda e o ISIS, o Estado Islâmico ganhava mais força no
país, principalmente na Península do Sinai. O local, famoso pelas disputas com
Israel até a década de 80, passou a contar com células do grupo que lutam
contra as poucas forças militares egípcias deslocadas até a região e impõe seu
terror principalmente aos cristãos cooptas, maior comunidade cristã do Egito,
com sequestros e execuções.
A
situação do governo parecia estável, com a repressão continuando e uma relativa aceitação na comunidade internacional. As criticas não apareciam com
frequência e o país foi ficando de fora das manchetes, apesar dos absurdos cometidos, afinal de contas como
Al-Sisi disse na mesma entrevista, compare as cifras de mortos do Egito com a Síria e o Iraque. A declaração, que
tem o mesmo valor de: “Claro que alguém não pode ser esfaqueado no Rio de
Janeiro, mas olha quantas pessoas foram esfaqueadas em Maceió e Fortaleza nesse
ano” foi superada em relação ao surrealismo quando Mohamed Mursi, primeiro presidente eleito da história do Egito foi
condenado à morte em primeira instância.
O resultado, que pode ser alterado no dia 2 de junho, derivou de
acusações como a relação do ex-presidente com os ataques ás prisões e teor terrorista destes atos, além de crimes durante seu mandato.
A mídia
estrangeira passou a questionar o fato de um presidente democraticamente eleito ser condenado á
morte menos de três anos depois do pleito, em pleno século XXI. A repercussão
no Egito não foi das mais positivas, com apoiadores e opositores da Irmandade
Muçulmana se juntando para protestar contra a decisão. A instabilidade se dá no
momento mais critico das relações de Al-Sisi com o Ocidente, já que o governo
egípcio se posicionou claramente contra o acordo nuclear com o Irã, encabeçado
pelos EUA.
O acordo
é prioridade no governo Obama e deve definir a política dos EUA para o Oriente
Médio em um futuro próximo. Do lado do Egito, estão Israel e Arábia Saudita,
que se opõe ao acordo temendo que o fim das sanções ao Irã aumente o poder do
país na região, e o que acontecerá após o fim dos 10 anos de congelamento do
desenvolvimento nuclear iraniano. Sabendo da dependência que seu regime tem em
relação ao Ocidente, Al-Sisi foi mais tímido na oposição que sauditas e
israelenses. Netanyahu, primeiro ministro de Israel, por exemplo, fez um
discurso no congresso norte-americano criticando o acordo. O resultado foi uma
deterioração entre Israel e EUA como poucas vezes foi visto na história.
O clima de instabilidade obviamente afetou e muito o turismo no país das famosas pirâmides, que com uma economia pouco desenvolvida, depende muito da atividade. Outro fator que ficou ainda mais escancarado com a crise no país é a violência contra as mulheres, sendo raríssimos os relatos de alguma que andou pelas ruas do Egito e não sofreu assédio. Estudos indicam que 83% das mulheres egípcias disseram já ter sofrido algum tipo de agressão. A sensação de frustração dos jovens e as vertentes tradicionais que minimizam o papel feminino na sociedade são os principais culpados pelo fato de o mesmo estudo dizer que 63% dos homens assumiram já ter cometido assédio e isso não ser visto como um absurdo pela maioria.
A maior nação árabe, berço do Islamismo moderno e dona de uma história milenar ser guiada por interesses de fora, muitas vezes pouco voltados ás reais ambições dos locais, e a disputas internas em que políticos democraticamente eleitos podem ser condenados á morte no próximo governo, ajuda a explicar a situação de deterioração do mundo árabe.
E esse é
o Egito depois da Primavera Árabe. Saber o que deve acontecer no país em um
futuro próximo é tão complicado quanto descobrir o passado da terra dos faraós.
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