sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O Holocausto e “qualquer coisa que valha”

"Auschwitz, Treblinka, ou qualquer coisa que valha". Foram estas referências que Fernanda Torres utilizou para equivaler uma unidade do sistema prisional brasileiro, em sua coluna “Treblinka”, no jornal Folha de S.Paulo. Com “qualquer coisa que valha” infere-se que a autora acredita serem identificáveis crimes que possam se comparar ao maior que a humanidade cometeu desde que se tem notícias, quando mais de 6 milhões de judeus, negros, romas, homossexuais foram mortos, em essência, meramente por o serem. Mais de 1 milhão foram assassinados somente em Auschwitz. Não, Fernanda, não há “qualquer coisa que valha” ao que os judeus chamam de “Shoá”.


O termo “genocídio” fora cunhado após o Holocausto pelo judeu polonês Raphael Lemkin, justamente no intuito de denominar o pior crime passível de ser cometido pelo homem: “genos”, do grego, algo como tribo, e “cídio”, do latim, matar, portanto, o assassinato de uma tribo. Lemkin conhece bem o crime, já que grande parte de seus familiares foram vítimas da “Shoá”, destino que o mesmo teria, caso não lograsse sua fuga aos Estados Unidos.


Não há “qualquer coisa que valha” ao genocídio perpetrado pelos colonizadores portugueses e espanhóis por séculos na América, exterminando indígenas, sob o pretexto destes serem bárbaros, quando na verdade, os mesmos que o eram, como já apontava Montaigne à época. Como não há equivalência com a diáspora forçada pelos turcos aos armênios, quando grande parte da população preferiu padecer no deserto a enfrentar os genocidas do exército, que chegaram a matar bebês os arremessando à pedras.


E nada se iguala ao regime do Khmer Vermelho, que dentre os genocídios que cometeu no Camboja, matou supostos chans muçulmanos pelo único argumento destes se recusarem a comer carne de porco. Ou aos 100 dias de assombro em Ruanda, em que vizinhos mataram outros, pelos meios mais rudimentares possíveis, meramente por diferenças étnicas em grande parte impostas por um regime imperial. E para não ficar somente nos exemplos mais antigos, a intenção genocida do Grupo Estado Islâmico junto aos yazidis no Monte Sinjar em 2014 não pode ser comparada a nada na história.


Alguns pais judeus contam que, após seus filhos aprenderem na escola sobre o Holocausto, os mesmos perguntavam aflitos pelas razões de tal atrocidade. Como explicar a uma criança que matavam membros de seu grupo pelo mero fato de sê-lo? E a explicação de que jovens, idosos, homens e mulheres foram exterminados pelo simples fato de não pertencerem a uma comunidade, mas a outra, é mais fácil para adultos? Cada um destes crimes demanda suas próprias respostas, não devendo serem comparados a nada. Como os perpetradores foram capazes? Por quais razões ninguém interviu? Qual o castigo merecem os criminosos? “É isto um homem?”, como a histórica obra de Primo Levi busca responder. Estas e outras perguntas sem resposta correta são cabíveis a cada um destes momentos, e, somente a eles.


“Genocídio é um crime cometido com o intuito de destruir, o todo ou uma parte de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, com base na Convenção das Nações Unidas de 1948. Uma das determinações da mesma convenção é “Honrar o legado das vítimas inclui dois compromissos: o de não as esquecer e o de prevenir o risco de genocídios futuros, ambos com o objetivo de criar um mundo pacífico que soube aprender com as lições do passado.” Não esquecer a dimensão do chamado “crime dos crimes”, é, portanto, uma ação vital por parte da determinação das Nações Unidas.


Primo Levi e Elie Wiesel foram dois sobreviventes ao Holocausto, e figuras vitais na missão de preservar as ações do período e “não as esquecer”. Suas obras estão disponíveis até hoje, e podem ser consultadas antes de uma menção ao crime. O legado de Lemkin também pode ser assimilado atualmente, este que dedicou sua vida a denominar o inominável e lutar contra a ocorrência de tal.


É compreensível que uma visita a um presídio brasileiro possa causar profundos impactos sobre as considerações ali refletidas. Prisões estas frequentemente anunciadas como violadoras de direitos humanos em relatórios de organizações internacionais. Mas é necessário um aprofundamento maior sobre os “crimes dos crimes” antes de o equivaler a “qualquer coisa que o valha”.


A era atual, em especial no Brasil, é dotada de um esvaziamento das palavras e designações históricas que as mesmas representam. Uma posição discordante pode servir como base para acusações de apoio ao fascismo, ao nazismo, ao comunismo, ou qualquer outra denominação, carecendo de um contexto histórico como base. As razões deste esvaziamento haverão de serem discutidas ao longo das próximas gerações. No entanto, é sempre importante ressaltar que o jurista e filólogo Raphael Lemkin antes de criar o neologismo que hoje denomina o maior crime que a humanidade pode cometer, o estudou toda uma vida. Isto também não é “qualquer coisa que valha”.

Lemkin. É desta mente brilhante que saiu um dos termos mais banalizados nos dias de hoje. História formidável

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