sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Década perdida? Para palestinos, pode ter sido o Estado


Em 2017, o palco midiático estava montado para especiais sobre os 50 anos da ocupação israelense. A efeméride poderia mostrar a dura vida em Gaza sob bloqueio, a situação dos refugiados nos vizinhos, a vida dos palestinos em Israel. Mas 2017 foi o primeiro ano de Donald Trump na presidência dos EUA, e a Guerra Civil da Síria era o principal assunto no Oriente Médio. A Questão Palestina ainda ameaçou ganhar espaço com a transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém, o que prometia “colocar fogo no mundo muçulmano”. Apesar de alguns distúrbios de início, a representação seguiu na Terra Santa sem percalços. Mas, no geral, a data passou longe da atenção que se esperava.

A transferência inviabiliza a Solução de Dois Estados, que até a última década era vista por grande parte do mundo como a melhor para sanar o conflito que por anos foi a questão chave no noticiário internacional. No comando de Benjamin Netanyahu, desde 2009, o que se viu foi o aumento de assentamentos judeus em território que deveria pertencer a um futuro Estado palestino. Além disso, outras nações seguiram os EUA reconhecendo Jerusalém como capital israelense, o que inviabiliza a noção de uma cidade compartilhada, parte fundamental da Solução de Dois Estados.

A Guerra Civil da Síria ofuscou a Palestina em diversas frentes. Em termos de tragédia humanitária, Gaza perdeu destaque para Aleppo, ou a região que sofria na ocasião, quando o tema ganhava o efêmero protagonismo nos noticiários. A questão dos refugiados em países vizinhos, importante ponto nas negociações por conta do direito de regresso, perdeu força frente às centenas de milhares de sírios deslocados. No Líbano, de população diminuta e palco de frequentes tensões com palestinos, a leva de sírios ganhou o foco. Premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2017, “O Insulto”, que trata das relações entre palestinos e libaneses, foi um dos poucos momentos em que a situação Palestina ganhou destaque na década.

Na complexa Guerra Civil da Síria, o Hamas tomou uma posição errática contra Bashar Al-Assad, que desagradou aliados fundamentais, em especial o Irã, o que colocou o grupo em vulnerabilidade por falta de fundos. Por outro lado, o potencial rival Fatah não conseguiu ocupar o vácuo do Hamas em Gaza por enfrentar problemas internos, com duras denúncias de corrupção, que enfraqueceram também a gestão na Cisjordânia. Envelhecido, Mahmoud Abbas não fez sombra a Yasser Arafat, antecessor com grande presença no imaginário internacional.

O Acordo Nuclear com o Irã abriu oportunidades para um dos mais duros golpes à causa palestina. Ainda que com ressalvas diplomáticas, o inimigo comum uniu Israel e Arábia Saudita naquela que é uma das mais importantes guinadas geopolíticas na história recente. Os sauditas, como tradicionais líderes entre os muçulmanos, compuseram a oposição ideológica ao Estado de Israel. Agora, fazem parte dos grupos de governos árabes que aceita a existência e convive com a nação, assim como Egito e Jordânia fizeram no século passado. Além da importante proximidade militar, leva outros parceiros, em especial os Emirados Árabes Unidos para a aliança. É importante ressaltar a diferença entre governos e o povo em caso como este, já que a aceitação geralmente é bem diferente entre a população em geral.

O grupo de nações em desenvolvimento que tradicionalmente fez uma maioria para contestar Israel na ONU caiu na última década. Além de países como a Guatemala, que decidiu transladar sua embaixada, a hábil política externa israelense buscou estreitar laços com dezenas de nações. Em 2016, já havia assinalado como a postura vinha ganhando sucesso na África. Oferecendo tecnologia e parcerias estratégicas em áreas que Israel é parte da liderança global, o país também ganhou em aproximação ideológica. Assim como no caso de países latinos, que é bastante noticiado no Brasil, comunidades evangélicas veem com bons olhos o estabelecimento do Estado Judeu. O lobby foi fundamental na postura de Trump, mas também tem presença em países como Uganda, em que o governo recentemente tomou posturas próximas à religião. O potencial é ainda maior com a recentemente verificada expansão de igrejas evangélicas no continente africano.

Na política interna israelense, mesmo com número recorde de eleições por conta da paralisia em formar um governo, o tema foi menos discutido do que historicamente. Irã, corrupção, crise habitacional e o caráter do Estado foram assuntos mais determinantes para os eleitores do que a questão com os palestinos. Por sua vez, os trabalhistas viram sua relevância minguar a níveis de quase se tornarem irrelevantes. Yitzhak Rabin, signatário do Acordo de Oslo, era do partido, e foi um dos principais nomes na defesa da Solução de Dois Estados, assim como outras figuras históricas à exemplo de Shimon Peres.         

O Haaretz, um dos principais jornais israelenses, concluiu um resumo sobre a década na região sem citar os palestinos nenhuma vez. Além da Primavera Árabe, na qual se insere a Guerra Civil da Síria e outros conflitos, a publicação citou o Acordo Nuclear e o Daesh como os fatores chaves. A proporção que o autointulado Estado Islâmico ganhou fez com que os esforços internacionais se voltassem a um inimigo comum, deixando outros conflitos em segundo plano. Com sua vocação ao espetáculo e grande capacidade organizacional, o Daesh conseguiu unir rivais e deixar qualquer situação como secundária, algo que a Al Qaeda não chegou nem próxima de lograr.

Thomas Friedman, um dos principais colunistas de política externa no mundo, escreveu que a Solução de Dois Estados estava morta algumas vezes. Mas não se falar de um problema não acaba com a mesmo. É provável que a próxima década não traga um acordo, mas Israel terá de lidar com uma questão fundamental. Ou dá cidadania plena aos árabes em seu território, o que impede seu caráter judeu por conta da demografia, ou vive um regime de exclusão com cidadãos de classes diferentes, o que extingue seu caráter democrático. O palco é perfeito para extremismos. Certeza para o futuro é que perdemos a rara lucidez de Amos Oz, morto no fim de 2018, que acreditava que "a síndrome do século XXI é o choque dos fanáticos de todas as cores e o resto de nós".

Em dez anos, Netanyahu alterou o status do conflito. Mas nem isso bastou para estar entre os 50 mais influentes da década para o Financial Times. FOTO: Jack Guez/AFP 

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Portugal elege maioria com pragmatismo, mas uma história preocupa


Com resultados dentro do previsto na maioria das pesquisas, Portugal optou pela continuidade. Em uma situação bem mais tranquila do que em 2015, o PS poderá escolher os parceiros para formar uma nova coalizão. Com uma política econômica equilibrada, capitaneada pelo ministro das Finanças Mário Centeno, de excelente imagem junto aos mercados, o atual governo tirou motivos do voto à direita e conquistou um bom resultado que passou perto de uma maioria absoluta. Mas uma cadeira dentre as 230 no parlamento conta uma história que preocupa.

Até então o único país do sul da Europa imune à extrema-direita, Portugal viu chegar ao parlamento André Ventura com o seu “Chega!”. Político em Loures, cidade próxima à Lisboa, Ventura ficou famoso por suas declarações críticas à minorias, e em especial ataques contra à mais vulnerável do país, os ciganos. Enquanto as atenções se voltam, com razão, aos bons resultados alcançados na última eleição quanto a candidatos negros, os ciganos seguem em uma difícil situação em que indicadores sociais destoam muito do restante da população.

Os votos que elegeram Ventura no distrito de Lisboa vieram sobretudo de Loures, Sintra e Amadora, notórias pela grande população cigana. Há de se ressaltar que no sistema político português a criação de um partido é bastante simples, mas a chegada no parlamento, e o consequente financiamento público são bem complicados de se lograr, sendo a entrada do “Chega!” um grande feito. O resultado mostra que, enquanto Portugal ostenta prêmios de melhor destino turístico do mundo, e Lisboa se coloca como uma cidade cosmopolita, nos arredores há um grave problema social a ser levado em conta e o voto em Ventura é a expressão disso.

O deputado acusa o “politicamente correto” com frequência, e de fato, a queixa é comum em amplas camadas da sociedade portuguesa. O questionamento é uma das plataformas políticas abordadas por Antônio Sousa Lara, um dos ideólogos do partido, e que concorreu pelo “Chega!” nas últimas eleições. Longe da caricatura global da extrema-direita, Sousa Lara é um notório intelectual, sendo um dos mais prestigiados professores do país. Conservador de profunda sensatez, dentre os muitos aspectos de sua interessante biografia está o respeito pelo regime cubano, que surpreende aqueles acostumados ao maniqueísmo que tomou conta do cenário político.

Nas outras 229 cadeiras, vigorou o típico pragmatismo português. Com um governo de esquerda responsável, coube à oposição apostar nas críticas quanto à corrupção e a gestão de crises que marcaram o mandato, sem grande efeito. No último dia de campanha, Antônio Costa deu motivação aos críticos ao se destemperar e agressivamente responder a um senhor que lhe questionou no Terreiro do Paço. A reação foi criticada pelo público em geral e marcou uma campanha até então tranquila.

O PAN – Pessoas, Animais e Natureza conseguiu aumentar sua presença parlamentar e é uma opção para governar junto ao PS. O partido, criticado por não conseguir se posicionar com consistência em questões para além dos animais, é expressão de uma preocupação ambiental maior. O europeísta Livre, que tem como uma de suas principais plataformas um Green New Deal para a UE, também conseguiu representação. Se posicionar nos debates nacionais e orçamentários é um desafio que ambas as legendas terão na Assembleia da República.

Em um ambiente tranquilo e de estabilidade econômica, o PURP, partido dos aposentados sobre o qual contei a curiosa história em 2017 na Piauí, não conseguiu engrenar. Criado em meio à crise, quando os idosos no país chegaram a serem considerados como “a peste grisalha”, mas o cenário mais favorável aos reformados levou os portugueses à escolhas mais ortodoxas. O divertido líder do partido, Fernando Loureiro, chegou a dizer na campanha que em caso de fracasso, iria abandonar a política para ir pescar.      

Como bem apontado por Mathias Alencastro: "O papel irrelevante das redes sociais, e a consequente ausência de fake news, é, sem dúvida, um dado essencial para entender a qualidade da democracia portuguesa." As redes sociais, responsáveis pelo tumulto político em outros países, não tem o mesmo efeito em Portugal, beneficiando a estabilidade e soluções menos populistas escolhidas pelos portugueses. Os “coletes amarelos” no país foram um fracasso, provando a menor tentação do pragmático povo aos cantos de sereia dos bastiões da internet que buscam reinventar a roda diariamente.

Um dos debates mais interessantes que ocorre hoje no país é justamente como o governo pode beneficiar os meios de comunicação chamados de “referência”, sem que os mesmos percam independência. Portugal entende que “jornalismo de qualidade demanda recursos” e que o mesmo é um dos pilares da democracia, o que leva a discutir formas de enquadrar os subsídios no enxuto orçamento de constante escrutínio de Centeno.

A desconfiança que evita populismos tem como fruto também a alta abstenção, de 45,5% na última eleição, um recorde. Com o jargão “são todos uns corruptos”, perpetua na sociedade um clima de constante desilusão com a política. Por sua vez, a falta de paixão auxilia em um escrutínio constante, com casos de incompetência ou desvios sendo punidos a despeito de ideologias políticas. Algum português que tenha lido até aqui já deve estar me xingando e dizendo que não, “tá tudo uma merda”, e como tenho saudades de ouvir isso a “tomar uns copos”. 

   Assembleia da República, que agora passa a contar com a extrema-direita. FOTO: Wikimedia

sexta-feira, 15 de março de 2019

Ministro da Educação: teste contra "patriotice", e Brasil falhou


Em meio às repercussões das polêmicas entorno do Ministro da Educação Ricardo Vélez Rodriguez, com frequência a utilização do termo “estrangeiro”, ou algo semelhante a “colombiano que veio falar mal do Brasil”, foi ignorada. É fato que no caso referente à carta do hino nacional, e em outros, a postura do notável polemista deve ser discutida, mas utilizar o local de nascimento do mesmo para desqualifica-lo é uma canalhice, que infelizmente é comum.

Henry Kissinger e Madeleine Albiright são dois dos mais notórios secretários de Estado norte-americanos da segunda metade do século XX. Ambos fugiram do nazismo, refugiaram-se nos Estados Unidos, e construíram carreiras notórias dentro das relações internacionais. Kissinger é um dos grandes estrategistas externos do partido republicano, mas conta com amplo respeito na área internacional de todos os lados. Albiright serviu aos democratas no governo de Bill Clinton, e foi aprovada no Senado por unanimidade para seu cargo. Ambos, de origem judaica, eram acusados por antissemitas de colocarem suas raízes ashkenazis do centro da Europa acima dos interesses norte-americanos, em uma incapacidade de críticos para questionarem seus feitos.

Com uma porcentagem da população de origem estrangeira relativamente pequena, em relação ao resto do mundo, é possível contemporizar reações extremistas no Brasil. Estas questionaram a validade de alguém que nasceu fora do país ocupar o cargo de ministro, e mesmo cogitaram a expulsão de Vélez Rodriguez. No entanto, casos como os citados dos secretários de Estado norte-americanos, ou Ahmed Hussen, refugiado somali nomeado ministro da Imigração por Justin Trudeau, são comuns mundo afora, e com frequência notabilizam-se por serem grandes histórias.

Há alguns cargos que exigem desde a nascença no país à cidadania desde a origem. Por exemplo, no caso da Presidência de República de Portugal, o ocupante do cargo tem de ter sido desde sempre português, o que não necessariamente designa aquele que nasceu em território lusitano, já que a cidadania ali é definida por consanguinidade. Na prática, filhos de pais portugueses são os aptos ao cargo. Já a posição na Assembleia da República pode ser ocupada por aqueles que adquirem a cidadania no decorrer da vida, e mesmo por brasileiros residentes com direitos equiparados. Portugal é só um exemplo, e há constantes variações sobre o tema no mundo. O que costuma ser universal é a canalhice de quem se esconde atrás da pátria para atacar adversários.

Vélez Rodriguez poderia ser um dos 6 milhões de deslocados por conta do conflito na Colômbia contra as FARC. É possível que tenha fugido do país por conta da violência, cada vez mais conhecida e vulgarizada por séries de TV, ocorrida no território nas últimas décadas do último século. Ou pode ter simplesmente preferido morar no Brasil. O importante, hoje, é que desde 1997 o atual ministro da Educação é cidadão brasileiro.

No futebol, a canalhice disfarçada de patriotismo costuma ser mais escancarada. Na Copa da Rússia, viralizou um texto de Romelu Lukaku em que ficou claro que o belga tinha sua nacionalidade questionada de acordo com a circunstância e a conveniência. Note-se que o atacante sequer nasceu na R.D. Congo, sendo esta a origem de seus pais. No caso étnico, à exemplo de Albiright e Kissinger, a situação fica ainda mais complicada, e além de judeus, há o caso de ciganos, como o português Ricardo Quaresma, que pode ser chamado de “rei da trivela” ou “aquele cigano de m...” dependendo do resultado da partida.

Em excelente coluna, Contardo Calligaris trouxe a definição de “patriotice”, a mistura de patriotismo, este sozinho nada negativo, e canalhice. E fez a ótima definição do que o pertencimentos a grupos oferece: “São os grupos que nos autorizam a sermos os canalhas que, sozinhos, nós não nos autorizaríamos ser. A pátria é um desses grupos possíveis.” Ou nas palavras de J.L. Borges, a mistura entre nacionalismo intransigente e patriotismo é negativa por sua incapacidade de dialogar: “O nacionalismo só permite afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez.”.

Existem inúmeras críticas passíveis de serem feitas ao atual governo, inclusive em termos de utilizar “patriotice”, como trouxe Calligaris, sem desqualificar o interlocutor, sobretudo sua origem. Sinceramente, espero que possamos entender isto antes de o primeiro boliviano ou haitiano que estrear pela seleção brasileira perder uma bola, e termos de ouvir alguém gritar um "volta pra casa!".

Dica: Série “Cães de Berlim” no Netflix. Quem receia de produções europeias pois as acham monótonas, não precisa temer com a produção alemã. Assassinato de jogador turco-alemão na véspera de uma partida entre ambos os países desencadeia “patriotices” étnicas. Não dá para não pensar no que ocorreu com Mesut Özil após a última Copa.


Vélez Rodriguez, naturalizado e cidadão brasileiro de 1997. FOTO: (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Em baixa na exportação de petróleo, Venezuela se mantém em alta nos clichês

Em meio às acusações quanto a vilania estadunidense com interesses em surrupiar o petróleo da explorada nação, algo que nem mesmo Maduro repete, e que parte de premissas geopolíticas atrasadas em quase 40 anos, surgiu a figura de Juan Guaidó. Em uma crise de quase seis anos, surgiu de um mês para o outro uma figura aceita como presidente pela comunidade internacional, e imbuída de caráter, compostura e moderação que fariam inveja a Mandela. O fim de Maduro estaria para ocorrer a qualquer momento. Nada muito diferente do que se divulga desde 2014.

O cenário real envolve bem mais pragmatismo do que geopolítica dos anos 70. A “iminência” da queda de Maduro é algo que deve demorar mais do que parece, e a união entorno de Guaidó é bem mais de situação do que a espécie de Nobel da Paz que alguns pintaram nas últimas semanas.

Estes dois ótimos artigos demonstram como a premissa que acusa os EUA de agirem meramente com o interesse imperialista no petróleo venezuelano é falsa. Dentre os muitos fatores envolvidos, chama atenção o fato de que a Venezuela importa petróleo norte-americano para produzir óleo de melhor qualidade e conseguir melhor posição no mercado internacional. Por sua vez, as explorações de xisto necessitam de um valor mais alto no mercado global do barril para serem viáveis, e a crescente na produção por este tipo de extração nos últimos anos nos EUA tornou as empresas lobistas poderosas, e a estas não interessa uma queda repentina na cotação da commoditie. Além disso, com Chavéz e Maduro a Venezuela seguiu sendo um dos maiores exportadores para os EUA. As mudanças ocorridas na posição norte-americana no mercado internacional de petróleo, tornando-se um dos maiores produtores mundiais, tornou obsoleta muitas das acusações contra o país que ouvimos há anos.

Resumo: negócios sobrepõe ideologias. E analisar geopolítica como à época da criação da OPEP pode gerar likes, mas não lucro.

Não faltam motivos que demonstrem hipocrisia no papel dos EUA no cenário global. A grande premissa que deslegitima hoje o governo de Maduro parte do processo fraudulento das eleições presidenciais em 2018. Como mostra a Foreign Police, a tática de pleitos adulterados foi a mesma utilizada no último mês pelo governo da R.D. do Congo, mas desta vez com apoio dos EUA à vitória de Felix Tshikendi. Se a dinâmica do petróleo mudou, a lógica atribuída a Franklin Delano Roosevelt sobre antigo ditador da Nicarágua, “Somoza pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta”, indica seguir presente.  

Outra boa peça vem da BBC Brasil. Hoje pouco lembrada, a Mesa de Unidade Democrática (MUD) foi por um tempo a principal força da oposição venezuelana. Um dos grandes problemas do grupo, sendo apontado por governistas, oposição e população, era que de unidade a legenda não tinha nada. Correntes políticas e ego disputaram a liderança como oposição a Maduro, e que em determinado de momento de 2019 chegou a Guaidó, com enorme apoio externo. Leopoldo López, preso desde 2014, pode até respaldar o presidente interino por conta de pertencer à mesma legenda, a Vontade Popular. Mas Henrique Caprilles e María Corina Machado não devem aceitar tão facilmente a liderança do neófito. As divisões ficaram claras em eventos importantes, como o boicote às presidenciais de 2018, que não foi seguido por setores da oposição, e a participação destas frações é hoje argumento de Maduro para validar o pleito.

Mas vem do apoio ao chavismo a maior razão que impede a “queda iminente de Maduro”, profetizada desde 2014. No plano interno, milícias servem ao regime na repressão contra protestos, como ficou marcado nas “Manifestações dos 100 dias” em 2018, que levaram a centenas o número de mortos e feridos. De fato, os grupos possuem uma lealdade menor à figura de Maduro, mas o chavismo ainda exerce um poder muito forte, e que garante relatos como estes da BBC Mundo. Bom aspecto assinalado com unanimidade é o poder que as forças armadas terão no processo. Leal a Chávez, o exército venezuelano galgou grande poder nos últimos 20 anos, e perder a estrutura deve significar o fim de Maduro. Mas afirmar a “iminência” do fato é achismo ou deter informação privilegiada que faria inveja aos melhores serviços de inteligência do mundo.

No exterior, a China, que fez seus maiores investimentos na América Latina no país caribenho é o outro grande fiel da balança. Maduro deposita enorme confiança nos “buenos amigos chinos”, mas o pragmatismo da realpolitik pode jogar contra o mesmo. Com débitos na casa dos dezenas de bilhões de dólares, a “amizade” pode não resistir a um aceno de Guaidó aos asiáticos. É sabido que o senador republicano Marco Rubio e o assessor de Segurança Nacional, John Bolton, desejam uma espécie de resgate da doutrina Monroe, e que a influência na Venezuela é um dos grandes planos desta ala do governo Trump para a região. Mas o que a China investiu nos últimos anos pode ser o gatilho de um dos primeiros grandes conflitos entre as duas maiores economia da atualidade. Entre China, EUA, Guaidó e Maduro, quem esperar lealdade à frente de estratégia pode sair derrotado.

A Rússia investiu militarmente no país, o que pode garantir uma maior segurança a Maduro. No mínimo, com a experiência internacional recente, a presença de equipamento militar russo serve para dissuadir intentos de intervenção. Longe de seu território e com interesse geopolítico menor do que, por exemplo na Síria, é difícil imaginar que Putin investiria muito além para a manutenção do regime. Com menor capacidade de investimento do que os chineses, preservar os interesses econômicos no país pode fazer com que Maduro perca mais um aliado, e é o que já cogita o Moscow Times. A partir de agora, o apoio deve ficar mais em esferas diplomáticas, como o Conselho de Segurança da ONU.

Os seguidos reconhecimentos de Guaidó como presidente interino demonstram uma enorme força, mas é preciso levar em conta também o apoio que ainda resta a Maduro. Dois dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança; uma potência petrolífera carregada de sanções que completa 40 anos como inimigo dos EUA no plano externo, o Irã; a estratégica Turquia, membra da OTAN; e uma série de países aliados ideologicamente que se beneficiaram do petróleo venezuelano, com destaque para Cuba e Nicarágua. Por sua vez, o México de Obrador é importante parceiro para uma negociação que envolva o governo, assim como o Uruguai.

“É lamentável que o país com as maiores reservas de petróleo do mundo, e que já foi uma potência regional na década de 70 chegue a este estágio de penúria com 3 milhões de refugiados e uma inflação anual de 1.000.000 % no último ano. A péssima gestão populista de Maduro, seguida por seus abusos autoritários não permitem mais chamar a Venezuela de democracia. A repressão contra opositores configura um crime, e os responsáveis devem ser punidos.” Não discordo de nada deste parágrafo, que escrevi em uma espécie de agregador para qualquer editorial no mundo. Mas sem melhor contexto, estamos fadados a repetir clichês. Hoje estes abundam mais do que o petróleo no que se refere à Venezuela.

Sugestão
Por fim, ninguém melhor para tratar do assunto do que Nicolás Maduro. Nas excelente série catalã Salvados (tem na Netflix), o homem tão falado, e nem tão ouvido, deu uma longa entrevista em 2017 a Jordi Évole em uma das melhores produções sobre Venezuela que já vi.       

                                      
                                        Cena da entrevista com Maduro em Salvados. Líder promete responder a todas perguntas. E o faz

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Elementar, meus caros. E aí?


O ano de 2018 foi histórico e intenso. Se durante grande parte da minha vida me ressenti por estar longe dos grandes acontecimentos, não posso queixar de que o mesmo ocorreu no ano que termina. De formas diferentes, as duas cidades em que vivi estiveram com grandes atenções.

Em Lisboa, vivenciei o auge do interesse recente em Portugal exemplificado na realização de grandes eventos com presenças ilustres de nomes sobre os quais só lia nos jornais, como Emmanuel Macron e Roberto Azevedo. Já Juiz de Fora, desde que voltei, o município parece envolvido em um realismo mágico de acontecimentos bizarros que faz da cidade uma espécie de Macondo da Zona da Mata. Ano de uma boa Copa, o que já bastaria para render longas conversas. Mas o foco esteve sempre comigo, e cada vez menor quantidade.

Em maio, cortei o cabelo pela primeira vez fora de Juiz de Fora e percebi que algo péssimo havia acontecido. Foi o dia da convocação da seleção brasileira para a Copa, e eu estava preparado para qualquer corneta, de preferência Taison ou Fagner, mas não me incomodaria em algo menos ortodoxo como a pedida de Vinícius Júnior, e até mesmo um ousado resgate de Adriano, quem vai em barbeiro sabe do que falo. No ortodoxo recinto que frequento em Juiz de Fora, a corneta ao Tupi normalmente envolve o “6”, “tem muita gente na várzea aqui que joga mais”, e “eu mesmo quando jogava”. Desta vez nada disso. O único assunto do brasileiro que cortou meu cabelo naquela tarde lisboeta foi minha calvície.

Entre um comentário sobre implante e outro, o mesmo perguntou: “mas você já tá tranquilo com isso, né?” Era nítido que o assunto me incomodava mais do que minha condição capilar, e que para ele a minha condição era mais importante do que para mim, mas respondi um “é” seco, sem muita esperança de que o assunto ali terminasse, o que se concretizou.

A questão para mim já tinha terminado há quase dois anos, quando minha queda de cabelo aumentou e fui ao médico. Quis saber se era normal acordar pensando que um rato estava no travesseiro. Perguntei se havia algum hábito ou algo que poderia diminuir aquilo, ele disse que era natural, indicou uma alopecia hereditária, e que eu não poderia fazer nada a respeito. A partir daí, ao ver que eu usava uma camisa da seleção turca, começamos a falar sobre o país. O assunto no especialista que constatou a inevitabilidade da minha careca foi bem mais agradável do que uma série de outros que se seguiram em bares e barbearias.

Poderia ter escrito sobre a situação mais cedo, a questão é que enfim decreto: acabou a criatividade. Qual a resposta que alguém espera para “tá ficando careca?” Tentei ser educado, sucinto, engraçado (no que frequentemente falhei, e assumo a culpa), didático, conformado, mas o assunto não termina. Vão completar cinco anos que grande parte das conversas dos meus amigos se resumem ao que eu não tenho: antes carros e carteiras de motorista, agora meu cabelo. Queria gostar da ideia de perucas tanto quanto amo metrôs.

Vamos lá, tem bastante assunto. Prometo tentar dessa vez achar resposta para o “tá quente, né?”.

Tite era tão intocável que nem o prazer da corneta no dia da convocação cheguei a ter. Mas insistir em Jesus não tem careca que me faça calar. FOTO: CBF

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Na Guerra, a primeira vítima é a verdade. E a Guerra só começou

Num artigo na National Review (25 de outubro de 2004), Mark Steyn relatou uma história publicada no jornal londrino em língua árabe Al-Quds al-Arabi a respeito do pânico instaurado em Cartum, no Sudão, depois que um boato percorreu a cidade dizendo que se um infiel apertasse a mão de um homem, este perderia a virilidade. ‘O que me espantou nessa história”, disse Steyn, ‘foi um detalhe: a histeria se espalhou por telefones celulares e mensagens de texto. Pense nisto: é possível alguém ter um telefone celular e mesmo assim acreditar que um aperto de mão de um estrangeiro seja capaz de torná-lo impotente? O que aconteceria se esse tipo de primitivismo tecnicamente avançado fosse além das mensagens de texto?’” 

parágrafo é retirado do livro “O Mundo é Plano”, do colunista do New York Times Thomas Friedman, de 2005. Em 2018, o primitivismo dos nem tão saudosos SMSs foi substituído pela instantaneidade e capacidade de penetração do Whatsapp. Se a longínqua Cartum pode parecer uma caricatura sobre notícias falsas circulando, veja a seguinte checagem realizada pela agência Aos Fatos nesta semana: “Não é verdade que uma nova dipirona importada da Venezuela estaria contaminada com o vírus Marburg, como alardeia um áudio que se espalhou pelo WhatsApp nos últimos dias.”. 

Na mesma semana, a Folha de S. Paulo se viu obrigada a desmentir que Lula fosse o dono do jornal. Pode ser risível para alguém que já leu estes dois parágrafos, mas boa parte das inúmeras notícias falsas que circularam durante as eleições eram deste nível. Repito a indagação: e quando avançarmos deste primitivismo? E vamos. Softwares avançados já são capazes de produzir vídeos em que peritos só conseguem desmentir o conteúdo depois de dias de trabalho. Programadores conseguem deturpar e manipular com quase perfeição vozes atualmente. Hoje, o engajamento com notícias falsas é em parte relacionado ao que Eliane Brum descreveu como “autoverdade”, com bastante precisão. Acredita-se no que se quer, e normalmente a realidade fabricada nestes casos é mais interessante do que o mundo de verdade. Mas estamos prestes a romper a barreira que os separa. 

A política partidária é parte essencial de qualquer sociedade que a aplique, e é positivo que as atenções se voltem a ela. A questão é que a mesma é apenas uma fração da engrenagem social, e enquanto as atenções voltam-se às eleições brasileiras, norte-americanas, e ao Brexit, verdadeiras tragédias ocorrem sem a mesma atenção (pode ter certeza que perder perto destes casos é pouco).  

Em Myanmar, a minoria muçulmana rohingya foi perseguida a partir do fim de 2017 em um caso notório de limpeza étnica e no qual é verificável o intento de genocídio. Os números são controversos, mas estima-se que 700 mil pessoas tenham fugido para Bangladesh e que cerca de 10 mil foram mortas. Cada vez mais a negligência do Facebook quanto a postagens na rede que incitavam agressões contra os rohingyas, assim como falsos comunicados de atentados terroristas por parte de membros da minoria é latente. Em um dos últimos casos recentes de genocídio, Ruanda em 1994, especialistas convergem em como as rádios do país foram usadas pelo Poder Hutu por anos para instigar a morte de tutsis. Em um futuro próximo, podem indicar que em Myanmar bastaram meia dúzia de publicações, likes e compartilhamentos. 

Na Índia, mensagens falsas pelo Whatsapp são apontadas como responsáveis pela morte de dezenas de pessoas por conta de acusações mentirosas que envolvem desde o abate de bovinos por muçulmanos a uma das canalhices mais comuns, os falsos sequestros de crianças. Recentemente um homem foi linchado na Colômbia por conta da mesma imputação, que logo foi confirmada como falsa pelas autoridades locais. No Brasil, em casos esporádicos no interior o problema se repete. “E quando avançarmos deste primitivismo? 

No caso indiano, o Whatsapp limitou o número possível de encaminhamentos de 20 para cinco, algo que foi requerido no Brasil. No ano que vem, o país passa pelo processo eleitoral com mais participantes do mundo, em um momento de forte presença do nacionalismo hindu encabeçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi e seu partido BJP. Cerca de 900 milhões estarão aptos a votar no complexo sistema eleitoral. Na eleição de 2014, minorias denunciaram perseguições por parte dos nacionalistas. 

Na saúde, mentiras pouco fazem distinções entre nações mais ou menos desenvolvidas. A chamada onda anti-vacinas, criada por boatos como o de que as mesmas causariam autismo, é uma das grandes responsáveis pela alta nas contaminações por sarampo na Europa. Em algumas das nações mais pobres do mundo, a exemplo da Libéria, durante o surto do Ebola em 2014, mentiras causaram graves problemas para as equipes de saúde. A catástrofe poderia ter sido ainda pior se a instantaneidade do Whatsapp estivesse a serviço.

Malásia e Uganda foram além. No primeiro país, o país aprovou uma lei que torna crime as “fake news”. No primeiro caso de um condenado, a confusa história pode denotar a situação como uma acusação mentirosa levando alguém a ser preso por mentiras. Em Uganda, a solução do governo foi passar a cobrar pelo uso das redes sociais no pobre país, o que não foi muito popular. 

Acredito que quem trabalhe atualmente com fact-checking já entendeu que está envolvido em uma espécie de Mito de Sisífo. O desgastante trabalho é infinitamente menos compartilhado do que as notícias falsas que proliferam, e também não tem a mesma capacidade de influência. Eu mesmo quando fiz fact-checking nas eleições municipais de 2016 via naquilo como uma salvação. Dois anos depois, com a ideia difundida, vejo que era ingenuidade. 

O que resta é sair da zona de conforto de apontar que “educação é a solução” e trabalhar efetivamente na construção de algo que desenvolva desde cedo a capacidade de apuração individual. Afinal de contas, como no caso sudanês, o suposto nível social não é indicativo de imunidade a mentiras, e no Brasil o ensino superior tampouco serviu para impedir a ampla difusão destas. A outra solução é bastante simples, e não duvido que neste tempo de internautas que reinventam a roda constantemente já tenha sido sugerida. Será preciso pagar para alguém apurar as informações e servir como fiel da balança. Erros acontecem, mas como trouxe esta excelente coluna no Diário de Notícias, um dos grandes de Portugal, este país que consegue servir de poço de bom senso em meio à insanidade atual, “O jornalismo tem de explicar-se, as fake news nunca o farão”.
Campo de refugiados de Cox Bazar, em Bangladesh. Rohingyas podem ter sido os primeiros nesta nova era FOTO: Kevin Frayer/Getty Images