O cenário real envolve bem mais pragmatismo do que geopolítica dos anos 70. A “iminência” da queda de Maduro é algo que deve demorar mais do que parece, e a união entorno de Guaidó é bem mais de situação do que a espécie de Nobel da Paz que alguns pintaram nas últimas semanas.
Estes
dois ótimos
artigos demonstram como a premissa que acusa os EUA de agirem meramente com
o interesse imperialista no petróleo venezuelano é falsa. Dentre os muitos
fatores envolvidos, chama atenção o fato de que a Venezuela importa petróleo
norte-americano para produzir óleo de melhor qualidade e conseguir melhor
posição no mercado internacional. Por sua vez, as explorações de xisto
necessitam de um valor mais alto no mercado global do barril para serem
viáveis, e a crescente na produção por este tipo de extração nos últimos anos
nos EUA tornou as empresas lobistas poderosas, e a estas não interessa uma
queda repentina na cotação da commoditie. Além disso, com Chavéz e Maduro a
Venezuela seguiu sendo um dos maiores exportadores para os EUA. As mudanças
ocorridas na posição norte-americana no mercado internacional de petróleo,
tornando-se um dos maiores produtores mundiais, tornou obsoleta muitas das
acusações contra o país que ouvimos há anos.
Resumo: negócios sobrepõe ideologias. E analisar
geopolítica como à época da criação da OPEP pode gerar likes, mas não lucro.
Não faltam motivos que demonstrem hipocrisia no papel
dos EUA no cenário global. A grande premissa que deslegitima hoje o governo de
Maduro parte do processo fraudulento das eleições presidenciais em 2018. Como
mostra a Foreign
Police, a tática de pleitos adulterados foi a mesma utilizada no último
mês pelo governo da R.D. do Congo, mas desta vez com apoio dos EUA à vitória de
Felix Tshikendi. Se a dinâmica do petróleo mudou, a lógica atribuída a Franklin
Delano Roosevelt sobre antigo ditador da Nicarágua, “Somoza pode ser um filho
da puta, mas é o nosso filho da puta”, indica seguir presente.
Outra boa peça vem da BBC
Brasil. Hoje pouco lembrada, a Mesa de Unidade Democrática (MUD) foi
por um tempo a principal força da oposição venezuelana. Um dos grandes
problemas do grupo, sendo apontado por governistas, oposição e população, era
que de unidade a legenda não tinha nada. Correntes políticas e ego disputaram a
liderança como oposição a Maduro, e que em determinado de momento de 2019
chegou a Guaidó, com enorme apoio externo. Leopoldo López, preso desde 2014,
pode até respaldar o presidente interino por conta de pertencer à mesma
legenda, a Vontade Popular. Mas Henrique Caprilles e María Corina Machado não
devem aceitar tão facilmente a liderança do neófito. As divisões ficaram claras
em eventos importantes, como o boicote às presidenciais de 2018, que não foi
seguido por setores da oposição, e a participação destas frações é hoje
argumento de Maduro para validar o pleito.
Mas vem do apoio ao chavismo a maior razão que impede
a “queda iminente de Maduro”, profetizada desde 2014. No plano interno, milícias
servem ao regime na repressão contra protestos, como ficou marcado nas “Manifestações
dos 100 dias” em 2018, que levaram a centenas o número de mortos e feridos. De
fato, os grupos possuem uma lealdade menor à figura de Maduro, mas o chavismo
ainda exerce um poder muito forte, e que garante relatos como estes da BBC Mundo.
Bom aspecto assinalado com unanimidade é o poder que as forças armadas terão no
processo. Leal a Chávez, o exército venezuelano galgou grande poder nos últimos
20 anos, e perder a estrutura deve significar o fim de Maduro. Mas afirmar a “iminência”
do fato é achismo ou deter informação privilegiada que faria inveja aos melhores
serviços de inteligência do mundo.
No exterior, a China, que fez seus maiores
investimentos na América Latina no país caribenho é o outro grande fiel da
balança. Maduro deposita enorme confiança nos “buenos amigos chinos”, mas o
pragmatismo da realpolitik pode jogar contra o mesmo. Com débitos na casa dos
dezenas de bilhões de dólares, a “amizade” pode não resistir a um aceno de
Guaidó aos asiáticos. É sabido que o senador republicano Marco Rubio e o
assessor de Segurança Nacional, John Bolton, desejam uma espécie de resgate da doutrina
Monroe, e que a influência na Venezuela é um dos grandes planos desta ala do
governo Trump para a região. Mas o que a China investiu nos últimos anos pode
ser o gatilho de um dos primeiros grandes conflitos entre as duas maiores
economia da atualidade. Entre China, EUA, Guaidó e Maduro, quem esperar
lealdade à frente de estratégia pode sair derrotado.
A Rússia investiu militarmente no país, o que pode
garantir uma maior segurança a Maduro. No mínimo, com a experiência
internacional recente, a presença de equipamento militar russo serve para
dissuadir intentos de intervenção. Longe de seu território e com interesse
geopolítico menor do que, por exemplo na Síria, é difícil imaginar que Putin investiria
muito além para a manutenção do regime. Com menor capacidade de investimento do
que os chineses, preservar os interesses econômicos no país pode fazer com que
Maduro perca mais um aliado, e é o que já cogita o Moscow
Times. A partir de agora, o apoio deve ficar mais em esferas
diplomáticas, como o Conselho de Segurança da ONU.
Os seguidos reconhecimentos de Guaidó como presidente
interino demonstram uma enorme força, mas é preciso levar em conta também o apoio
que ainda resta a Maduro. Dois dos cinco membros permanentes do Conselho de
Segurança; uma potência petrolífera carregada de sanções que completa 40 anos
como inimigo dos EUA no plano externo, o Irã; a estratégica Turquia, membra da
OTAN; e uma série de países aliados ideologicamente que se beneficiaram do
petróleo venezuelano, com destaque para Cuba e Nicarágua. Por sua vez, o México
de Obrador é importante parceiro para uma negociação que envolva o governo,
assim como o Uruguai.
“É lamentável que o país com as maiores reservas de
petróleo do mundo, e que já foi uma potência regional na década de 70 chegue a
este estágio de penúria com 3 milhões de refugiados e uma inflação anual de
1.000.000 % no último ano. A péssima gestão populista de Maduro, seguida por
seus abusos autoritários não permitem mais chamar a Venezuela de democracia. A
repressão contra opositores configura um crime, e os responsáveis devem ser
punidos.” Não discordo de nada deste parágrafo, que escrevi em uma espécie de
agregador para qualquer editorial no mundo. Mas sem melhor contexto, estamos
fadados a repetir clichês. Hoje estes abundam mais do que o petróleo no que se
refere à Venezuela.
Sugestão
Por fim, ninguém melhor para tratar do assunto do que
Nicolás Maduro. Nas excelente série catalã Salvados
(tem na Netflix), o homem tão falado, e nem tão ouvido, deu uma longa entrevista
em 2017 a Jordi Évole em uma das melhores produções sobre Venezuela que já vi.
Cena da entrevista com Maduro em Salvados. Líder promete responder a todas perguntas. E o faz
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