quinta-feira, 13 de abril de 2017

"Sim" ou "não" ao "Sultão" na Turquia

Itália e Reino Unido provaram em 2016 que os efeitos de um referendo vão muito além da consulta que é feita diretamente à população. Nos dois casos, a pergunta central era a aprovação ou não de uma série de reformas constitucionais, e a saída ou não da União Europeia, respectivamente. No entanto, a derrota de Matteo Renzi e David Cameron, que haviam proposto os referendos, causou ingovernabilidade e ambos foram obrigados a renunciar. Na Turquia, que Erdogan governa desde 2002 junto a seu AKP, não será diferente.

Os elementos centrais do referendo turco do próximo domingo, 16, dizem respeito ao aumento do poder do presidente, na prática eliminando a figura do primeiro-ministro, e a possibilidade da prorrogação do mandato, o que permitiria Erdogan permanecer no poder até 2029. O governo que propõe as mudanças argumenta que estas tornariam a governança turca mais sólida, já que não sujeitaria o executivo à instabilidade do parlamento. Além disso, o AKP afirma que o novo modelo dará mais independência ao legislativo, que poderia investigar o presidente. Ao lado do AKP estão os nacionalistas do MHP, desde a tentativa de golpe em julho de 2016 favoráveis ao governo.

Para grande parte da Turquia o voto no “sim” representa um voto em Erdogan e no AKP. Desde quando foi prefeito em Istambul na década de 90, o atual presidente se postou como alguém ligado aos mais pobres, e que atende aos anseios destes. Nas regiões menos favorecidas do país, o voto no AKP é visto como uma retribuição ao desenvolvimento levado pelo partido que tem em sua sigla uma referência ao desenvolvimento e justiça, e mesmo em uma consulta referente a termos de governabilidade, esta população não deve distinguir o voto de estradas e hospitais criados por Erdogan.

Na Anatólia, mais distante da Europa e que conta com importante apoio à islamização crescente no governo de Erdogan, o “sim” ganha com folga nas pesquisas. Nas últimas eleições legislativas, 87% da Anatólia Oriental votou no AKP. A principal oposição vem do Oeste da Turquia, banhado pelo mar Egeu e tradicionalmente mais voltado à Europa. Esta região conta com respaldo do CHP, partido dos kemalistas, responsáveis pela laicização do Estado Turco desde sua constituição em 1923. Ao CHP soma-se o HDP, sigla composta pelos curdos, grupo étnico que vem em constantes conflitos com Erdogan nos últimos anos, e que teve seu líder preso após a tentativa de golpe do ano passado.

Vantagem grande do "sim" na Anatólia


O governo de Erdogan deu uma guinada radical após a tentativa de golpe de 2016. Jornalistas e a imprensa como um todo passaram a ser perseguidos, com a Turquia ostentando o número de país com mais membros da profissão presos no mundo. Somam-se a estes professores, juízes, militares e funcionários públicos, que compõe o número de 41 mil presos em menos de um ano. As acusações são da relação destes com o gulenismo, movimento liderado pelo clérigo Fethullah Gulen, e que é responsabilizado pelo governo pela tentativa de golpe. Gulen nega as acusações, e suas ramificações, que vão de áreas como universidades a jornais, padecem na Turquia.

O cenário fez com que a Turquia passasse da pontuação de 53 em 2016 para 38 em 2017 no relatório Freedom House, que avalia de 0 a 100 as liberdades em cada país, a segunda maior queda no mundo. As restrições fizeram com que a Europa aumentasse suas críticas ao país, que é candidato desde 2004 a entrar na União Europeia. A tensão ficou ainda maior quando Holanda e Alemanha não permitiram que ministros do governo turco fizessem comícios a favor do “sim” em seus territórios, que contam com uma grande comunidade apta a votar no referendo. Em contrapartida Erdogan fez alusão às práticas nazistas, o que criou uma crise diplomática e afastou a Turquia do bloco.

As pesquisas demonstram um empate técnico no resultado do referendo. Em caso de derrota, Erdogan continuará no poder, e tem a possibilidade de dissolver o parlamento para buscar mais força e legitimidade. No entanto, desde a repressão a tentativa de golpe do ano passado a Turquia já não representa os ideais kemalistas e gulenistas. O país que no começo do século aparentava ser um modelo para os em desenvolvimento, assim como o Brasil, hoje caminha mais para uma ditadura como outras no Oriente Médio, ou mesmo para o modelo russo de Putin, que vem cada vez mais se aproximando de Erdogan.

Ainda assim, como nos casos citados no começo, um referendo nunca é só um referendo. A vitória do “não” pode colocar limites aos expurgos de Erdogan, e mostrar que a população não deve aceitar eternamente quaisquer abusos de seus políticos, em troca do que estes deram a esta, o que não é favor, e sim obrigação. O presidente que vem sendo chamado de “Sultão do Bósforo” teria assim uma aula de democracia, aceitando ou não. No relatório Freedom House, com seus 38 pontos, a Turquia ainda é considerada “parcialmente livre”. A vitória do “sim” pode mudar isto.

"Sim" ou "não" ao "Sultão"? FOTO: Chris McGrath / Getty Images

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Brasil não virou uma Venezuela, mas criou algumas

Durante o governo Dilma, não era incomum acusações de que os petistas estivessem tentando transformar o Brasil em “uma Venezuela”. A crise no país vizinho já se arrastava há algum tempo nesta época, e determinados setores temiam que esta pudesse se repetir aqui. E em partes, se repetiu como nos mostram as tensões no Espírito Santo e no Rio de Janeiro envolvendo, sobretudo, a segurança pública.

A Venezuela conta com as maiores reservas de petróleo do mundo. Os hidrocarbonetos representam 95% das exportações do país, e correspondem a cerca de 25% de seu PIB. Quando o barril de petróleo chegou próximo aos 150 dólares, o governo chavista aumentou exponencialmente os gastos públicos. Com a queda no valor da commoditie, que chegou a custar menos de 30 dólares em 2016, os venezuelanos passaram a conviver com uma crise que se alastra até hoje. Índices como a ausência de 70% dos produtos em supermercados e a maior inflação do mundo marcaram a gravidade da situação. A violência se alastrou, levando Caracas ao posto de cidade mais violenta da Terra, com 119 homicídios a cada 100 mil habitantes em 2015.

Em 2017, o posto de município mais perigoso poderia ser tomado por alguma cidade do Espírito Santo, em caso de prolongamento da crise da segurança pública. Em uma semana no Estado, 121 pessoas foram mortas, número que supera mais de 90 países em um ano inteiro. Estima-se que o Espirito Santo, segundo maior beneficiário dos royalties do petróleo, tenha sofrido uma queda recente no PIB de 19%, situação que se agravou por conta da tragédia envolvendo a Samarco.

No Rio de Janeiro, grande receptor dos fundos oriundos do petróleo, a queda estimada no PIB foi de 7%, mas em determinadas cidades a situação é bem mais grave. Em 2012, com o barril ainda em alta, a “Capital Nacional do Petróleo”, Macaé (RJ), recebeu repasses do governo federal de cerca de 605 milhões de reais, destes quase 90% relativos aos royalties. Em 2016, os recursos ficaram entorno de 266 milhões, menos da metade do recebido quatro anos atrás. Campos dos Goytacazes (RJ), que conta com cerca de 500 mil habitantes, mas graças aos royalties é um dos principais beneficiários de recursos da União, recebeu desta cerca de 1,625 bilhão em 2012, com 82% oriundos dos royalties. Em 2016 os royalties representaram aproximadamente 352 milhões para a cidade, pouco mais de 20% de quatro anos atrás.

Apesar de ter parte importante de sua economia centrada no turismo, Cabo Frio (RJ) sentiu o impacto da queda acentuada no preço do barril. Em 2012, 80% dos recursos federais provinham dos royalties, uma quantia de aproximadamente 318 milhões de reais. Em 2016, o governo repassou entorno de 82 milhões pela commoditie. Mesmo que a participações dos royalties nas transferências para o município tenha caído substancialmente no período, certamente a queda teve grande impacto no orçamento da cidade com menos de 200 mil habitantes.

A grave crise levou ao desemprego. Cerca de 20% dos postos de trabalho fechados no Brasil foram no Rio de Janeiro. A capital do Estado registrou o maior número de novos desempregados em 2016. Além da situação quantitativa, um percurso ao redor do Rio de Janeiro apresenta cenas dignas do Cinturão da Ferrugem nos Estados Unidos, por exemplo, em Itaboraí (RJ), que seria uma das grandes beneficiadas com os royalties, mas que conta hoje com uma “manada de elefantes brancos”, como um grande shopping sem movimento e prédios abandonados.

Assim como na Venezuela, o componente de crise econômica e desemprego gerou um aumento na violência. Em média, em todo o estado do Rio de Janeiro 16 pessoas são assassinadas por dia. No ranking mundial encabeçado por Caracas, que leva em conta homicídios em cidades com mais de 300 mil habitantes, figuram Vitória (ES) na 31º posição e Campos dos Goytacazes (RJ) na 39º, com 42 e 36 homicídios a cada 100 mil habitantes respectivamente.


A lista de países produtores de petróleo no mundo abrange situações bem distintas para continuar sendo reproduzida a ideia de “maldição do ouro negro”. Em nações como Venezuela e Angola, a corrupção e a incompetência generalizaram por todo território a crise oriunda pela queda do preço do barril. No Brasil, país que depende muito menos de um preço alto da commoditie para equilibrar as contas, a má distribuição do pacto federativo gerou um colapso para dois estados, que se veem em falência, e sem garantir sequer a segurança da população. No caso do Espírito Santo, a falta de reajuste salarial deixou os policiais militares com um dos menores salários do país, enquanto no Rio de Janeiro, que não figura entre os melhores ordenados para a categoria, a falta de pagamentos há meses gerou a crise. A propósito, os maiores salários para estes profissionais estão no Distrito Federal, onde o “efeito dominó” da greve não ameaça chegar. Ali, nada de Venezuela. Nem mesmo para se pronunciar sobre a crise no país vizinho.

Situação em Vitória (ES) se descontrolou com greve, mas já não era tranquila /FOTO: (Paulo Whitaker/Reuters)

sábado, 4 de fevereiro de 2017

A "Recessão Geopolítica" na África será uma "marolinha"?

“Recessão geopolítica” foi o termo utilizado pela agência de classificação de risco político Eurasia para definir 2017. Assim como os ciclos econômicos apresentam recessões, a geopolítica a partir desta ideia não seria sempre progressiva, e estaríamos em um momento de retrocesso, não visto desde o fim da Segunda Guerra. Os princípios que moldaram a atual Ordem Mundial, como o livre-comércio, as alianças multilaterais, as organizações internacionais, e a expansão da democracia e dos direitos humanos, não estiveram tão em tanto risco desde 1945.

Dois fenômenos são em grande parte os responsáveis pela ideia de “geopolítica em recessão”: Trump e Brexit. Com o segundo, a União Europeia perdeu sua segunda maior economia, viu movimentos eurocéticos se proliferarem por seus países, e experimenta o momento de maior risco do projeto europeu, principal caso de sucesso de uma aliança multilateral. Com Trump, o livre-comércio se vê cada vez mais ameaçado, simbolizado com a rejeição à Parceria do Pacífico e as provocações ao NAFTA. A ONU sofreu ameaças de corte de financiamentos, e a OTAN, chamada de obsoleta pelo presidente, corre mais riscos do que nunca. O conceito de “American First” e os primeiros dias de mandato são boas mostras de que Trump não focará na expansão da democracia e dos direitos humanos.

Outra organização internacional que vem passando por maus momentos é o Tribunal Penal Internacional (TPI). A fragilidade da instituição se dá por conta das ameaças de boicote e até mesmo abandono da Corte por parte de países africanos, que acreditam sofrer perseguição do órgão. A grande maioria dos condenados até hoje pelo TPI são de origem africana, enquanto crimes de guerra em variados países, que vão desde a Colômbia até à Palestina estão sem veredictos.

A perseguição que os países da África acreditam sofrer por parte do TPI é uma das razões que explicam a relevância que teve a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, em maio de 2016. A prisão perpétua decretada ao ditador foi o primeiro caso de um chefe de Estado condenado em outro país dentro do continente africano, no caso, Senegal. A sentença foi expedida pelo tribunal africano extraordinário, criado pela União Africana (UA), e é vista como uma contraposição do continente ao passado colonial e ao paternalismo, além de estabelecer precedentes para que outros líderes possam ser julgados na própria África.

A própria UA é outra prova da força que os órgãos internacionais vêm conseguindo estabelecer no continente. Nesta semana, o Marrocos, único país do continente que não fazia parte da União, anunciou que voltará a ingressar o grupo. Os marroquinos ficaram de fora por 33 anos da UA, por conta da presença da região separatista do Saara Ocidental no órgão, que é o único organismo internacional a reconhecer a independência do território. Outro importante fator foi a sucessão no cargo de presidente da UA, até então ocupado por Robert Mugabe, o ditador zimbabuano desde 1980, e que tenta a reeleição com seus 93 anos.

A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A ausência de Barrow o impediu, por exemplo, de acompanhar o funeral de seu filho de sete anos, morto por uma mordida de cachorro no período.

O cenário que se desenhava para Gâmbia era de uma sangrenta guerra civil. Os turistas estrangeiros foram evacuados do país, que via suas ruas desertas cercadas de apreensão. A comunidade internacional, focada com as repercussões da vitória de Trump, pouco fez além de condenar a insistência de Jammeh. Neste cenário, e com respaldo da UA, a CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. Barrow tomou posse na embaixada de Gâmbia em Dakar, e foi poucos dias depois para Banjul, levando ao festejo uma multidão que o aguardava no aeroporto.

A transição democrática em Gâmbia, sem nenhuma gota de sangue derramado, é uma das grandes histórias deste 2017 que já começou tão turbulento. Em meio à “recessão geopolítica”, uma organização de países africanos desconhecida de grande parte do mundo conseguiu evitar uma trágica guerra civil. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. Mas enquanto as antigas metrópoles estão se voltando cada vez mais para dentro, os africanos entenderam o significado de “juntos somos mais fortes”.
                                         Países da CEEAO. De pouco conhecida a vital para a paz

Excelente fonte de informação sobre o que acontece de bom na região (espanhol): http://elpais.com/agr/africa_no_es_un_pais/a/

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O novo-velho best-seller Orwell e o mundo de hoje

Nesta semana foi notícia que o clássico “1984”, de George Orwell, voltou a figurar na lista de livros mais vendidos, grande parte por conta das relações possíveis de se estabelecer da obra com o começo do governo Trump. A mais latente foi feita após a declaração de uma porta-voz de que as mentiras disparadas, ou a negação das verdades, seriam “fatos alternativos”. Em “1984”, dentro da chamada novilíngua, uma das atribuições do Ministério da Verdade era justamente a fabricação de novos fatos, o que é representado na famosa frase “guerra é paz”.

Quando escrito, pouco após a Segunda Guerra Mundial, o livro foi visto como um ataque aos regimes totalitários, sobretudo ao stalinismo. Em 2013, o clássico ganhou grande destaque com o escândalo envolvendo a espionagem da NSA, divulgado por Edward Snowden. Traçou-se um paralelo entre o governo americano e o controle estabelecido pelo Big Brother em Oceania, simbolizado pelas onipresentes teletelas. A ocasião demonstrou que o controle dos cidadãos por meio do estado é algo mais sútil e presente do que a população em geral costuma crer, e é uma prática difundida mundo a fora.

A prática da novilíngua, ou “alternative facts”, também não é nenhuma novidade por parte de governos. Nos EUA, espalhar mentiras foi fundamental para conseguir o apoio da população para invadir o Iraque, o que dificilmente teria sido possível sem as supostas ligações de Saddam Hussein com a Al Qaeda, e sua posse de armas químicas, ambas não comprovadas até hoje. A guerra contra o Iraque representaria paz. O resultado foi o Grupo Estado Islâmico e um Oriente Médio esfacelado, que é considerado para alguns como pré-vestfaliano nos dias de hoje. “Guerra é paz.”

As táticas demonstradas em “1984” são, em maior ou menor grau, comuns a todos os tipos de governantes. Estes são só alguns dos muitos exemplos possíveis que justificam colocar a obra no hall de outros clássicos atemporais da política, como “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel. Mas enquanto “1984” ganha as manchetes, outra obra de Orwell pouco a pouco vem subindo na lista de livros mais vendidos: “A Revolução dos Bichos”. E esta sim pode indicar fenômenos específicos da atualidade, e preocupantes.

“A Revolução dos Bichos” é uma fábula que consegue, com um número relativamente pequeno de páginas, destruir o autoritarismo. A mensagem do livro na época foi vista como uma crítica explicita ao stalinismo, e sua reprodução foi cerceada na URSS. Na história, os animais de uma fazenda julgando-se injustiçados e explorados, tomam o controle do lugar. Os bichos são liderados por dois porcos, Napoleão e Bola de Neve, e, contam com o incansável cavalo Sansão, que está sempre disposto a sacrifícios em prol do projeto.

Ao longo da história, Napoleão vai acumulando poder e sendo cada vez mais autoritário, enquanto Bola de Neve se afasta das decisões. Em determinado momento, após montar um aparato repressor com os cachorros da fazenda, Napoleão obriga Bola de Neve a fugir. Em seguida, todos os problemas enfrentados são creditados a Bola de Neve, que viria à fazenda somente para boicotar o projeto dos animais. Agora troque Napoleão e Bola de Neve pelos turcos, e antigos aliados, Recep Erdogan e Fethullah Gullen.

Quando assumiu o poder como primeiro-ministro Erdogan via no clérigo Gullen um bom parceiro para conseguir implementar seu projeto de poder na Turquia. No entanto, Erdogan, no comando desde 2002, foi cada vez centralizando mais as decisões em sua figura, até romper com Gullen, hoje exilado nos EUA. Após a tentativa frustrada de golpe de estado na Turquia em julho do ano passado, o hoje presidente, Erdogan, culpou o clérigo, e vem prendendo ou demitindo aqueles que tenham relação com o movimento gulenista, que é enorme e difundido em uma série de países. Além disso, o presidente culpa o clérigo por muitos problemas na Turquia, inclusive atentados terroristas. Erdogan conseguiu passar reformas na constituição que ampliam o poder do presidente pelo congresso em janeiro, e estas vão a referendo neste ano.

Pelo mundo proliferam-se casos de autoritarismo daqueles que se agarram ao poder. Na Hungria, Viktor Orban faz pouco caso da constituição tendo em vista seu projeto de restringir a entrada de refugiados no país. Na Nicarágua, Daniel Ortega dissipou a oposição, e colocou sua mulher como vice-presidente, além de estender seu mandato. Prolongar-se é o que também almeja Evo Morales na Bolívia, e deve desafiar sua derrota em referendo para buscar seu quarto mandato. Estes são fenômenos relativamente novos, sem citar os infindáveis ditadores africanos como Mugabe no Zimbábue, perto de completar 93 anos e de disputar mais uma eleição.

O fortalecimento do autoritarismo em países que há tempos haviam estabelecido regimes democráticos sólidos é uma grande ameaça. “A Revolução dos Bichos” traz de forma simples como a demagogia e o populismo são armadilhas fáceis de cair, das quais nenhum grupo está imune, além de como o poder costuma ser traiçoeiro.

Outra obra, esta menos lembrada, de Orwell que segue bastante atual é “O caminho para Wigan Pier”. Neste livro, o autor traz grandes reflexões sobre a vida dos trabalhadores de minas de carvão no norte da Inglaterra, região conhecida por ser a menos desenvolvida do país. Os relatos chocaram a dita intelectualidade da época, já que poucas vezes alguém acostumado à elite londrina havia explorado tanto a visão de mundo destes trabalhadores.

Os habitantes do norte da Inglaterra apresentados por Orwell compuseram boa parte da base de votação pelo Brexit, e exibem semelhanças com os eleitores de Trump, considerados por alguns das elites intelectuais costeiras como “white trash”. São os homens brancos, com poucas perspectivas, ressentidos, e que se julgam injustiçados pelas mudanças dos últimos tempos. Como demonstrado pelo cavalo Sansão de “A Revolução dos Bichos”, quando surge algum projeto pelo qual os que se consideravam injustiçados passam a acreditar, este costumam estar dispostos a abrir mão de muito em prol deste. O que isto vai representar nos EUA, e o quanto Trump vai se aproveitar desta situação no poder, são perguntas necessárias, mas que só tempo responderá. Talvez Orwell pudesse adiantar algumas respostas, mas infelizmente há 67 anos o máximo que temos são dicas. Maldita tuberculose! E que venda muito mais.



                                                                    Ao menos nos resta a BBC

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Com um Trump, sem meias palavras

O que representa, de verdade, um aumento médio de 2 graus na temperatura global? Não sei, e, na prática, ninguém sabe. O que muda nas nossas vidas com o aumento de 50 cm no nível dos oceanos? Tampouco faço ideia. A única resposta que temos a estas questões são projeções, que são apenas projetos de possibilidades que podem, ou não, acontecer. Muita gente se dá bem com o risco, e paga para ver. Mas, para as mudanças climáticas, acabou o tempo para falarmos de 2030, 2050, 2100. Temos que falar de 2016, o ano mais quente da história, batendo o recorde do ano anterior, e sucedido pelo que provavelmente lhe tomará o posto.

Pensei em falar sobre o clima citando a eleição de Trump e suas escolhas de Scott Pruitt para a E.P.A. e Rex Tillerson para secretário de Estado, todas desastrosas no âmbito ambiental. Citaria também Blairo Maggi, nosso ministro da agricultura. Para não criar uma tonalidade apocalíptica sobre 2016, queria trazer alguma história positiva para o meio-ambiente, dando esperança. Mas com Trump, tudo muda.

Cheguei a esta conclusão depois de ler o relato de uma mãe em Madagascar, que desesperada, fica sabendo que há um homem (do qual ela nunca ouviu falar), que lidera um país, (que ela tampouco conhece), e que pode ajudar seus filhos. A família praticamente não consegue comer e nem beber, em virtude da crise de alimentos gerada pelo fenômeno El Niño, que altera a temperatura das águas no Pacífico, e que em 2016 causou graves transtornos no Sudeste Africano. O homem é Trump, presidente eleito dos EUA, a quem o autor endereça o relato, e que pode, sim, transformar esta situação.

Em 2014, analistas estudaram 28 desastres ambientais, constatando que metade deles foi causada por alguma alteração do homem. O mais recente El Niño foi um dos mais fortes de todos os tempos, trazendo inundações, tornados e outros transtornos mais fortes no Pacífico, além de alterar o clima global como um todo, o que é visto nas secas enfrentadas na África Oriental. O Haiti é um bom exemplo de como o fenômeno pode ser destruidor, tendo passado por secas por conta deste recentemente, e pelo furacão Matthew em 2016.

Até o momento, é verdade que os países ricos e grandes responsáveis pelas emissões sofram menos que os pobres por conta das alterações no clima. Mas é difícil prever uma estabilidade diante de alterações nunca imaginadas. Por certo tempo, os norte-americanos ficaram aflitos com a possibilidade do furacão Matthew chegar à Costa Leste, no que cogitou-se ser um fenômeno mais destruidor que o Katrina, que arrasou New Orleans em 2005.

Outro ponto que certamente afetará os países mais ricos é a migração, inclusive com refugiados. O colunista Thomas Friedman vem alertando que em áreas de desertificação, o número de conflitos armados tende a aumentar exponencialmente, somando ainda mais aos cerca de 60 milhões de refugiados no mundo. Se a Europa não conseguiu lidar com a crise gerada pela Guerra da Síria, quem dirá com todo o Norte Africano disposto a atravessar o Mediterrâneo.

Os problemas e as vítimas já são muito reais para o homem mais poderoso do mundo lidar com as mudanças climáticas como mero exercício de fé. Há algum tempo esta deixou de ser uma questão com a qual nossos filhos e netos “talvez tenham de lidar”, para ser algo real e prioritário. A China, a quem o presidente eleito chegou a culpar por ter inventado as mudanças climáticas, já se alarmou sobre o problema, afinal de contas, não tem como fazer vista grossa quando se tem camadas enormes de poluição impedindo olhar a poucos metros de distância.

Com Trump, o homem que governa pelo Twitter antes mesmo de ser empossado, não há espaço para projeções e longos relatórios. É verdade que países inteiros podem desaparecer se nada for feito, milhares de espécies podem ser extintas com repercussões imprevisíveis, assim como as catástrofes criadas pela mudança nos regimes climáticos. Mas como vimos na eleição, para ele a verdade não basta. Ainda assim, se milhares de mães desesperadas com seus filhos passando fome não servirem, podemos ter votado em nosso próprio meteoro.

                   "Arpocalipse" convenceu os chineses/ FOTO: (Jason Lee/Reuters/VEJA)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O terrorismo mais perto do que se pensa

“Creio que a síndrome do século XXI é o choque de fanáticos de todas as cores e o resto de nós.” A frase é de um dos maiores escritores israelenses, Amós Oz, nascido em Jerusalém durante o mandato britânico, e que se considera um especialista em “fanatismo comparado”. Vivendo na Terra Santa por tanto tempo, este local capaz de suscitar tantas paixões, é compreensível que seu ensaio “Como Curar um Fanático” seja uma grande peça para entender o extremismo. Só não diria que é necessário, pois este tipo de imposição já é um dos princípios apontados por Oz para o fanatismo, do qual nenhum ser humano é completamente imune.

Um dos antídotos contra o fanatismo apontados por Oz é a imaginação, atrelada à capacidade de se colocar no lugar do outro. Usando desta imaginação, suponhamos que o autor do massacre em Campinas fosse muçulmano, ou simplesmente tivesse gritado algumas expressões em árabe. Quais seriam os principais destaques para o atentado? “Terrorismo islâmico chega ao Brasil?” “Estado Islâmico assume a autoria de atentado em Campinas?”. Se as repercussões não fossem tão extremas, asseguro que o termo “terrorismo” e a religião do autor teriam sido bem mais difundidos do que ocorreu no caso.

Segundo Oz, a luta entre fanáticos e o resto da sociedade se dá entre pessoas que “acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios, e o resto de nós, que acredita que a vida é um fim, não um meio.” Os fins no caso do atentado em Campinas, seriam as ideias misóginas e machistas do autor, e a ação em si, que seria algo justificável para ele, o meio. É o que Oz descreve quando diz “É uma luta entre os que por um lado pensam que justiça- o que quer que entendam por esta palavra- é mais importante que a vida, e os que pensam que a vida tem muito mais importância que outros valores, convicções ou crenças.” Nos trechos divulgados da carta do terrorista, em que este relativiza a possibilidade de morrer, esta luta é nítida.

Mas não foi só este massacre no ano novo que teve seu viés terrorista deixado em segundo plano. No ano passado, um supremacista branco nos EUA invadiu uma igreja e matou nove pessoas negras, o que foi apenas mais um dentre as dezenas de crimes de ódio envolvendo massacres no país. Além disso, a deputada britânica Jo Cox foi morta em um atentado de um ultranacionalista que considerava os contrários ao Brexit, assim como Cox, traidores. Pouco se falou em terror.

Para o autor argentino J.L. Borges: “O nacionalismo só permite afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez.”. No âmbito do terrorismo, o nacionalismo foi uma das formas de fanatismo que mais fizeram vítimas durante o século XX. As organizações, ETA no país basco, IRA na Irlanda do Norte e a própria Organização pela Libertação Palestina (OLP), até o abandono da luta armada, compuseram grande parte do cenário do terror no período, assim como as milícias de ideal marxista, como as FARC na Colômbia, e o PKK no Curdistão, que também possui um viés nacionalista. O terror islamista como conhecemos vem do final do século XX, com grupos como o Hamas e Al Qaeda, de orientação sunita extrema. Até então o terrorismo muçulmano era vinculado mais a grupos xiitas, de exemplo, o Hezbollah.

Marxismo, nacionalismo, extremismo islamista, anarquismo e qualquer outra orientação que tenha servido como base para fanáticos ao longo da história propõe certezas para os anseios do ser humano. Segundo Oz estas certezas se alteraram de tempos para cá: “Até a metade do século XIX, a maioria das pessoas, na maior parte do mundo, tinha pelo menos três certezas fundamentais: onde eu vou passar a minha vida, o que vou fazer da minha vida e o que vai acontecer comigo depois que eu morrer.”. Segundo o autor, em um mundo de pouca mobilidade social e geográfica, sendo temente a seu deus, a vida terminaria no paraíso. Hoje não é bem assim.

Um estudo recente indicou que uma edição dominical do New York Times oferece mais informação do que, em média, um cidadão do século XVII recebia durante toda a vida, o que complica quaisquer certezas. O diplomata norte-americano Henry Kissinger classifica o saber em três instâncias: informação, conhecimento e sabedoria. De fato, esta é a era da informação. A questão é o quanto disso o ser humano processa para transformar em conhecimento, ou sabedoria. As duas últimas instâncias necessitam de análises profundas, reflexões, sendo fundamental compreender o outro lado das histórias.

O que temos hoje não chega a isso. Pessoas comentam com fanatismo simplesmente ao observarem uma manchete, seja ela sobre terrorismo, Trump, aquecimento global, Temer, Lula, Dilma, ou mesmo fofocas. Não se busca o conhecimento para entender o que ali ocorre, e já se exclama “é”, e por vezes até mesmo se discute com conhecidos do “não é”. Evidentemente esta instância do saber fica bem longe da sabedoria.

Claro que dentro deste fanatismo existem várias instâncias. Não se pode comparar alguém que tenta convencer se foi ou não golpe e um vegano que quer fazer alguém parar de comer carne, com um terrorista ou um perpetrador de limpeza étnica. Mas para Oz, o fanatismo tem duas essências fundamentais: “autojustificativa sem concessões” e “o desejo de forçar outras pessoas a mudar”. E neste aspecto os casos se enquadram, e somos todos suscetíveis, já que como traz o autor: “A natureza humana parece que não muda. A única diferença entre fazer amor no tempo do Rei Davi e fazer amor hoje em dia é o cigarro depois”.

Como traz o começo do texto, também acredito que a batalha contra o fanatismo será uma síndrome do século XXI, e arrisco dizer que é a principal questão deste, junto às mudanças climáticas. Portanto, combates como os que matam jihadistas sem destruir as raízes que os levam a isto serão como enxugar gelo, mas gerando um ciclo vicioso de derramamento de sangue. Lidar com as causas deste extremismo é um dos grandes desafios, e será de suma importância entender que a fonte é a mesma, seja para islamistas, misóginos, nacionalistas ou anarquistas: nossa própria natureza.

A propósito, outros dois antídotos que Oz sugere contra o fanatismo são o humor e a literatura. Humor, e não sarcasmo, o autor define como a capacidade de rir de si mesmo. Dizer sarcasticamente que contar uma piada a um terrorista pode parar um ataque não serve, mas em compensação, o Grupo Estado Islâmico nunca soube rir de si mesmo e jura de morte quem faz sarro com ele. E a literatura sugerida não é a superficial, ou a que suscita ainda mais fanatismo, e sim a que coloca o leitor na mente de outra pessoa. Diria que é vital a todos, mas como trouxe J.L. Borges: “A leitura não deve ser obrigatória. O prazer não é obrigatório, o prazer é algo buscado.”.

Uma aula em 100 páginas (FOTO: Divulgação)


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Mais uma semana de 2016...

Terceira Guerra?
Claro que causa alvoroço o assassinato do embaixador de uma das maiores potências do mundo, mas boa parte das preocupações com a execução do representante russo foi exagerada. Rússia e Turquia estiveram em grande tensão no fim do ano passado, quando os turcos abateram um avião russo, o que desencadeou sanções e diversas acusações entre os dois países. Mas em 2016 as duas nações restabeleceram relações diplomáticas, o que é de bastante interesse mútuo.

Junto ao Irã, nesta mesma semana Turquia e Rússia criaram um pacto conjunto de cooperação, em especial para lidar com o terrorismo. Irã e Rússia apoiam o ditador Bashar Al-Assad na Síria, e os turcos sempre foram um dos maiores opositores do regime, inclusive financiando terroristas. As conjunturas deram vitórias a Assad, o que deve reduzir a influência turca no país, mais restrita na contenção dos curdos ao norte. A morte do embaixador russo em termos geopolíticos enfraquece a Turquia, já que desestimula o turismo, fonte vital de renda do país, e que já vinha debilitada desde os últimos ataques terroristas. 

Provavelmente Erdogan, que vem aproveitando a tentativa de golpe de estado em julho deste ano para destroçar toda a oposição, deve vincular o atentado a seu grande rival, o clérigo Fetullah Gulen, ou aos curdos do PKK. A Rússia já ofereceu ajuda para esclarecer o atentado, o que prontamente foi aceito pela Turquia. Os dois países vão cooperar, condenar o terrorismo e priorizar outros aspectos da relação. Nada de terceira guerra. Acho que decepciona alguns.

Terror na Alemanha
A despeito do que as acusações populistas e a agência do Grupo Estado Islâmico, ou Daesh, possam fazer parecer, o ataque com o caminhão em Berlim demanda muita cautela. Um paquistanês foi preso e logo depois liberado por falta de provas, enquanto islamofóbicos e xenófobos se deleitavam em acusações nas redes sociais. O Daesh se apressou em reclamar a autoria do atentado por meio de seu meio de comunicação, a agência Amaq, o que faz total sentido. Os terroristas não tem nada a perder vinculando uma informação como esta, e se apresentam como importantes, enquanto o grupo não para de sofrer derrotas militares em seus locais de origem. A mídia informando a suposta autoria como “breaking news”, ou seja, de suma importância, é tudo o que o grupo quer.

Merkel enfrentará grande pressão até as eleições do ano que vem, quando tentará mais um mandato. Um deputado do AfD, o partido de extrema-direita alemão, indicou logo depois do atentado que a chanceler teria “sangue em suas mãos”, por conta da sua política de recepção aos refugiados. Até o momento Merkel é favorita para vencer as eleições, mas existem muitas possibilidades nestes próximos nove meses, como 2016 nos provou. Cautela e pragmatismo serão extremamente necessários para a estadista que como apontada em 2015 pela revista Time, é a “chanceler do mundo livre”. Mais do que nunca.

Enquanto isso...
Na República Democrática do Congo, que não é o Congo (os dois países são banhados pelo rio, pasmem, Congo), a situação é extremamente delicada. O presidente Kabila deveria ter deixado o cargo, que ocupa desde 2001, na última segunda-feira, o que não aconteceu. Kabila deveria ter organizado novas eleições, o que protelou e quer fazer em meados de 2018, e, claro, se mantendo no cargo até lá. O presidente chegou ao poder depois que seu pai foi assassinado em 2001, e venceu eleições em 2006 e 2011. A constituição impede mais um mandato, o que Kabila tenta burlar de todas as formas.

A população foi às ruas protestar pela saída do presidente, e foi duramente reprimida. As redes sociais foram cerceadas, e os relatos de prisões arbitrárias se espalharam pela República. A comunidade internacional pressiona Kabila pela saída, mas não tem planos de ação até aqui para fazê-lo na prática. A R.D.C enfrentou uma violenta guerra civil durante a década de 90, e é um país tido por muitos como ingovernável desde sua independência em 1960. Os conflitos desde então deixaram, segundo estimativas, ao menos três milhões de mortos. A ONU confirma 260 mil mortes na Guerra da Síria. Não dá para ignorar.

"World in 1 minute" do mestre Ian Bremmer, presidente da Eurasia:
https://twitter.com/ianbremmer/status/811329245179969536
Sei que não cheguei nem perto, mas como dizem, primeiro passo é tentar...