sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O novo-velho best-seller Orwell e o mundo de hoje

Nesta semana foi notícia que o clássico “1984”, de George Orwell, voltou a figurar na lista de livros mais vendidos, grande parte por conta das relações possíveis de se estabelecer da obra com o começo do governo Trump. A mais latente foi feita após a declaração de uma porta-voz de que as mentiras disparadas, ou a negação das verdades, seriam “fatos alternativos”. Em “1984”, dentro da chamada novilíngua, uma das atribuições do Ministério da Verdade era justamente a fabricação de novos fatos, o que é representado na famosa frase “guerra é paz”.

Quando escrito, pouco após a Segunda Guerra Mundial, o livro foi visto como um ataque aos regimes totalitários, sobretudo ao stalinismo. Em 2013, o clássico ganhou grande destaque com o escândalo envolvendo a espionagem da NSA, divulgado por Edward Snowden. Traçou-se um paralelo entre o governo americano e o controle estabelecido pelo Big Brother em Oceania, simbolizado pelas onipresentes teletelas. A ocasião demonstrou que o controle dos cidadãos por meio do estado é algo mais sútil e presente do que a população em geral costuma crer, e é uma prática difundida mundo a fora.

A prática da novilíngua, ou “alternative facts”, também não é nenhuma novidade por parte de governos. Nos EUA, espalhar mentiras foi fundamental para conseguir o apoio da população para invadir o Iraque, o que dificilmente teria sido possível sem as supostas ligações de Saddam Hussein com a Al Qaeda, e sua posse de armas químicas, ambas não comprovadas até hoje. A guerra contra o Iraque representaria paz. O resultado foi o Grupo Estado Islâmico e um Oriente Médio esfacelado, que é considerado para alguns como pré-vestfaliano nos dias de hoje. “Guerra é paz.”

As táticas demonstradas em “1984” são, em maior ou menor grau, comuns a todos os tipos de governantes. Estes são só alguns dos muitos exemplos possíveis que justificam colocar a obra no hall de outros clássicos atemporais da política, como “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel. Mas enquanto “1984” ganha as manchetes, outra obra de Orwell pouco a pouco vem subindo na lista de livros mais vendidos: “A Revolução dos Bichos”. E esta sim pode indicar fenômenos específicos da atualidade, e preocupantes.

“A Revolução dos Bichos” é uma fábula que consegue, com um número relativamente pequeno de páginas, destruir o autoritarismo. A mensagem do livro na época foi vista como uma crítica explicita ao stalinismo, e sua reprodução foi cerceada na URSS. Na história, os animais de uma fazenda julgando-se injustiçados e explorados, tomam o controle do lugar. Os bichos são liderados por dois porcos, Napoleão e Bola de Neve, e, contam com o incansável cavalo Sansão, que está sempre disposto a sacrifícios em prol do projeto.

Ao longo da história, Napoleão vai acumulando poder e sendo cada vez mais autoritário, enquanto Bola de Neve se afasta das decisões. Em determinado momento, após montar um aparato repressor com os cachorros da fazenda, Napoleão obriga Bola de Neve a fugir. Em seguida, todos os problemas enfrentados são creditados a Bola de Neve, que viria à fazenda somente para boicotar o projeto dos animais. Agora troque Napoleão e Bola de Neve pelos turcos, e antigos aliados, Recep Erdogan e Fethullah Gullen.

Quando assumiu o poder como primeiro-ministro Erdogan via no clérigo Gullen um bom parceiro para conseguir implementar seu projeto de poder na Turquia. No entanto, Erdogan, no comando desde 2002, foi cada vez centralizando mais as decisões em sua figura, até romper com Gullen, hoje exilado nos EUA. Após a tentativa frustrada de golpe de estado na Turquia em julho do ano passado, o hoje presidente, Erdogan, culpou o clérigo, e vem prendendo ou demitindo aqueles que tenham relação com o movimento gulenista, que é enorme e difundido em uma série de países. Além disso, o presidente culpa o clérigo por muitos problemas na Turquia, inclusive atentados terroristas. Erdogan conseguiu passar reformas na constituição que ampliam o poder do presidente pelo congresso em janeiro, e estas vão a referendo neste ano.

Pelo mundo proliferam-se casos de autoritarismo daqueles que se agarram ao poder. Na Hungria, Viktor Orban faz pouco caso da constituição tendo em vista seu projeto de restringir a entrada de refugiados no país. Na Nicarágua, Daniel Ortega dissipou a oposição, e colocou sua mulher como vice-presidente, além de estender seu mandato. Prolongar-se é o que também almeja Evo Morales na Bolívia, e deve desafiar sua derrota em referendo para buscar seu quarto mandato. Estes são fenômenos relativamente novos, sem citar os infindáveis ditadores africanos como Mugabe no Zimbábue, perto de completar 93 anos e de disputar mais uma eleição.

O fortalecimento do autoritarismo em países que há tempos haviam estabelecido regimes democráticos sólidos é uma grande ameaça. “A Revolução dos Bichos” traz de forma simples como a demagogia e o populismo são armadilhas fáceis de cair, das quais nenhum grupo está imune, além de como o poder costuma ser traiçoeiro.

Outra obra, esta menos lembrada, de Orwell que segue bastante atual é “O caminho para Wigan Pier”. Neste livro, o autor traz grandes reflexões sobre a vida dos trabalhadores de minas de carvão no norte da Inglaterra, região conhecida por ser a menos desenvolvida do país. Os relatos chocaram a dita intelectualidade da época, já que poucas vezes alguém acostumado à elite londrina havia explorado tanto a visão de mundo destes trabalhadores.

Os habitantes do norte da Inglaterra apresentados por Orwell compuseram boa parte da base de votação pelo Brexit, e exibem semelhanças com os eleitores de Trump, considerados por alguns das elites intelectuais costeiras como “white trash”. São os homens brancos, com poucas perspectivas, ressentidos, e que se julgam injustiçados pelas mudanças dos últimos tempos. Como demonstrado pelo cavalo Sansão de “A Revolução dos Bichos”, quando surge algum projeto pelo qual os que se consideravam injustiçados passam a acreditar, este costumam estar dispostos a abrir mão de muito em prol deste. O que isto vai representar nos EUA, e o quanto Trump vai se aproveitar desta situação no poder, são perguntas necessárias, mas que só tempo responderá. Talvez Orwell pudesse adiantar algumas respostas, mas infelizmente há 67 anos o máximo que temos são dicas. Maldita tuberculose! E que venda muito mais.



                                                                    Ao menos nos resta a BBC

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Com um Trump, sem meias palavras

O que representa, de verdade, um aumento médio de 2 graus na temperatura global? Não sei, e, na prática, ninguém sabe. O que muda nas nossas vidas com o aumento de 50 cm no nível dos oceanos? Tampouco faço ideia. A única resposta que temos a estas questões são projeções, que são apenas projetos de possibilidades que podem, ou não, acontecer. Muita gente se dá bem com o risco, e paga para ver. Mas, para as mudanças climáticas, acabou o tempo para falarmos de 2030, 2050, 2100. Temos que falar de 2016, o ano mais quente da história, batendo o recorde do ano anterior, e sucedido pelo que provavelmente lhe tomará o posto.

Pensei em falar sobre o clima citando a eleição de Trump e suas escolhas de Scott Pruitt para a E.P.A. e Rex Tillerson para secretário de Estado, todas desastrosas no âmbito ambiental. Citaria também Blairo Maggi, nosso ministro da agricultura. Para não criar uma tonalidade apocalíptica sobre 2016, queria trazer alguma história positiva para o meio-ambiente, dando esperança. Mas com Trump, tudo muda.

Cheguei a esta conclusão depois de ler o relato de uma mãe em Madagascar, que desesperada, fica sabendo que há um homem (do qual ela nunca ouviu falar), que lidera um país, (que ela tampouco conhece), e que pode ajudar seus filhos. A família praticamente não consegue comer e nem beber, em virtude da crise de alimentos gerada pelo fenômeno El Niño, que altera a temperatura das águas no Pacífico, e que em 2016 causou graves transtornos no Sudeste Africano. O homem é Trump, presidente eleito dos EUA, a quem o autor endereça o relato, e que pode, sim, transformar esta situação.

Em 2014, analistas estudaram 28 desastres ambientais, constatando que metade deles foi causada por alguma alteração do homem. O mais recente El Niño foi um dos mais fortes de todos os tempos, trazendo inundações, tornados e outros transtornos mais fortes no Pacífico, além de alterar o clima global como um todo, o que é visto nas secas enfrentadas na África Oriental. O Haiti é um bom exemplo de como o fenômeno pode ser destruidor, tendo passado por secas por conta deste recentemente, e pelo furacão Matthew em 2016.

Até o momento, é verdade que os países ricos e grandes responsáveis pelas emissões sofram menos que os pobres por conta das alterações no clima. Mas é difícil prever uma estabilidade diante de alterações nunca imaginadas. Por certo tempo, os norte-americanos ficaram aflitos com a possibilidade do furacão Matthew chegar à Costa Leste, no que cogitou-se ser um fenômeno mais destruidor que o Katrina, que arrasou New Orleans em 2005.

Outro ponto que certamente afetará os países mais ricos é a migração, inclusive com refugiados. O colunista Thomas Friedman vem alertando que em áreas de desertificação, o número de conflitos armados tende a aumentar exponencialmente, somando ainda mais aos cerca de 60 milhões de refugiados no mundo. Se a Europa não conseguiu lidar com a crise gerada pela Guerra da Síria, quem dirá com todo o Norte Africano disposto a atravessar o Mediterrâneo.

Os problemas e as vítimas já são muito reais para o homem mais poderoso do mundo lidar com as mudanças climáticas como mero exercício de fé. Há algum tempo esta deixou de ser uma questão com a qual nossos filhos e netos “talvez tenham de lidar”, para ser algo real e prioritário. A China, a quem o presidente eleito chegou a culpar por ter inventado as mudanças climáticas, já se alarmou sobre o problema, afinal de contas, não tem como fazer vista grossa quando se tem camadas enormes de poluição impedindo olhar a poucos metros de distância.

Com Trump, o homem que governa pelo Twitter antes mesmo de ser empossado, não há espaço para projeções e longos relatórios. É verdade que países inteiros podem desaparecer se nada for feito, milhares de espécies podem ser extintas com repercussões imprevisíveis, assim como as catástrofes criadas pela mudança nos regimes climáticos. Mas como vimos na eleição, para ele a verdade não basta. Ainda assim, se milhares de mães desesperadas com seus filhos passando fome não servirem, podemos ter votado em nosso próprio meteoro.

                   "Arpocalipse" convenceu os chineses/ FOTO: (Jason Lee/Reuters/VEJA)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O terrorismo mais perto do que se pensa

“Creio que a síndrome do século XXI é o choque de fanáticos de todas as cores e o resto de nós.” A frase é de um dos maiores escritores israelenses, Amós Oz, nascido em Jerusalém durante o mandato britânico, e que se considera um especialista em “fanatismo comparado”. Vivendo na Terra Santa por tanto tempo, este local capaz de suscitar tantas paixões, é compreensível que seu ensaio “Como Curar um Fanático” seja uma grande peça para entender o extremismo. Só não diria que é necessário, pois este tipo de imposição já é um dos princípios apontados por Oz para o fanatismo, do qual nenhum ser humano é completamente imune.

Um dos antídotos contra o fanatismo apontados por Oz é a imaginação, atrelada à capacidade de se colocar no lugar do outro. Usando desta imaginação, suponhamos que o autor do massacre em Campinas fosse muçulmano, ou simplesmente tivesse gritado algumas expressões em árabe. Quais seriam os principais destaques para o atentado? “Terrorismo islâmico chega ao Brasil?” “Estado Islâmico assume a autoria de atentado em Campinas?”. Se as repercussões não fossem tão extremas, asseguro que o termo “terrorismo” e a religião do autor teriam sido bem mais difundidos do que ocorreu no caso.

Segundo Oz, a luta entre fanáticos e o resto da sociedade se dá entre pessoas que “acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios, e o resto de nós, que acredita que a vida é um fim, não um meio.” Os fins no caso do atentado em Campinas, seriam as ideias misóginas e machistas do autor, e a ação em si, que seria algo justificável para ele, o meio. É o que Oz descreve quando diz “É uma luta entre os que por um lado pensam que justiça- o que quer que entendam por esta palavra- é mais importante que a vida, e os que pensam que a vida tem muito mais importância que outros valores, convicções ou crenças.” Nos trechos divulgados da carta do terrorista, em que este relativiza a possibilidade de morrer, esta luta é nítida.

Mas não foi só este massacre no ano novo que teve seu viés terrorista deixado em segundo plano. No ano passado, um supremacista branco nos EUA invadiu uma igreja e matou nove pessoas negras, o que foi apenas mais um dentre as dezenas de crimes de ódio envolvendo massacres no país. Além disso, a deputada britânica Jo Cox foi morta em um atentado de um ultranacionalista que considerava os contrários ao Brexit, assim como Cox, traidores. Pouco se falou em terror.

Para o autor argentino J.L. Borges: “O nacionalismo só permite afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez.”. No âmbito do terrorismo, o nacionalismo foi uma das formas de fanatismo que mais fizeram vítimas durante o século XX. As organizações, ETA no país basco, IRA na Irlanda do Norte e a própria Organização pela Libertação Palestina (OLP), até o abandono da luta armada, compuseram grande parte do cenário do terror no período, assim como as milícias de ideal marxista, como as FARC na Colômbia, e o PKK no Curdistão, que também possui um viés nacionalista. O terror islamista como conhecemos vem do final do século XX, com grupos como o Hamas e Al Qaeda, de orientação sunita extrema. Até então o terrorismo muçulmano era vinculado mais a grupos xiitas, de exemplo, o Hezbollah.

Marxismo, nacionalismo, extremismo islamista, anarquismo e qualquer outra orientação que tenha servido como base para fanáticos ao longo da história propõe certezas para os anseios do ser humano. Segundo Oz estas certezas se alteraram de tempos para cá: “Até a metade do século XIX, a maioria das pessoas, na maior parte do mundo, tinha pelo menos três certezas fundamentais: onde eu vou passar a minha vida, o que vou fazer da minha vida e o que vai acontecer comigo depois que eu morrer.”. Segundo o autor, em um mundo de pouca mobilidade social e geográfica, sendo temente a seu deus, a vida terminaria no paraíso. Hoje não é bem assim.

Um estudo recente indicou que uma edição dominical do New York Times oferece mais informação do que, em média, um cidadão do século XVII recebia durante toda a vida, o que complica quaisquer certezas. O diplomata norte-americano Henry Kissinger classifica o saber em três instâncias: informação, conhecimento e sabedoria. De fato, esta é a era da informação. A questão é o quanto disso o ser humano processa para transformar em conhecimento, ou sabedoria. As duas últimas instâncias necessitam de análises profundas, reflexões, sendo fundamental compreender o outro lado das histórias.

O que temos hoje não chega a isso. Pessoas comentam com fanatismo simplesmente ao observarem uma manchete, seja ela sobre terrorismo, Trump, aquecimento global, Temer, Lula, Dilma, ou mesmo fofocas. Não se busca o conhecimento para entender o que ali ocorre, e já se exclama “é”, e por vezes até mesmo se discute com conhecidos do “não é”. Evidentemente esta instância do saber fica bem longe da sabedoria.

Claro que dentro deste fanatismo existem várias instâncias. Não se pode comparar alguém que tenta convencer se foi ou não golpe e um vegano que quer fazer alguém parar de comer carne, com um terrorista ou um perpetrador de limpeza étnica. Mas para Oz, o fanatismo tem duas essências fundamentais: “autojustificativa sem concessões” e “o desejo de forçar outras pessoas a mudar”. E neste aspecto os casos se enquadram, e somos todos suscetíveis, já que como traz o autor: “A natureza humana parece que não muda. A única diferença entre fazer amor no tempo do Rei Davi e fazer amor hoje em dia é o cigarro depois”.

Como traz o começo do texto, também acredito que a batalha contra o fanatismo será uma síndrome do século XXI, e arrisco dizer que é a principal questão deste, junto às mudanças climáticas. Portanto, combates como os que matam jihadistas sem destruir as raízes que os levam a isto serão como enxugar gelo, mas gerando um ciclo vicioso de derramamento de sangue. Lidar com as causas deste extremismo é um dos grandes desafios, e será de suma importância entender que a fonte é a mesma, seja para islamistas, misóginos, nacionalistas ou anarquistas: nossa própria natureza.

A propósito, outros dois antídotos que Oz sugere contra o fanatismo são o humor e a literatura. Humor, e não sarcasmo, o autor define como a capacidade de rir de si mesmo. Dizer sarcasticamente que contar uma piada a um terrorista pode parar um ataque não serve, mas em compensação, o Grupo Estado Islâmico nunca soube rir de si mesmo e jura de morte quem faz sarro com ele. E a literatura sugerida não é a superficial, ou a que suscita ainda mais fanatismo, e sim a que coloca o leitor na mente de outra pessoa. Diria que é vital a todos, mas como trouxe J.L. Borges: “A leitura não deve ser obrigatória. O prazer não é obrigatório, o prazer é algo buscado.”.

Uma aula em 100 páginas (FOTO: Divulgação)


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Mais uma semana de 2016...

Terceira Guerra?
Claro que causa alvoroço o assassinato do embaixador de uma das maiores potências do mundo, mas boa parte das preocupações com a execução do representante russo foi exagerada. Rússia e Turquia estiveram em grande tensão no fim do ano passado, quando os turcos abateram um avião russo, o que desencadeou sanções e diversas acusações entre os dois países. Mas em 2016 as duas nações restabeleceram relações diplomáticas, o que é de bastante interesse mútuo.

Junto ao Irã, nesta mesma semana Turquia e Rússia criaram um pacto conjunto de cooperação, em especial para lidar com o terrorismo. Irã e Rússia apoiam o ditador Bashar Al-Assad na Síria, e os turcos sempre foram um dos maiores opositores do regime, inclusive financiando terroristas. As conjunturas deram vitórias a Assad, o que deve reduzir a influência turca no país, mais restrita na contenção dos curdos ao norte. A morte do embaixador russo em termos geopolíticos enfraquece a Turquia, já que desestimula o turismo, fonte vital de renda do país, e que já vinha debilitada desde os últimos ataques terroristas. 

Provavelmente Erdogan, que vem aproveitando a tentativa de golpe de estado em julho deste ano para destroçar toda a oposição, deve vincular o atentado a seu grande rival, o clérigo Fetullah Gulen, ou aos curdos do PKK. A Rússia já ofereceu ajuda para esclarecer o atentado, o que prontamente foi aceito pela Turquia. Os dois países vão cooperar, condenar o terrorismo e priorizar outros aspectos da relação. Nada de terceira guerra. Acho que decepciona alguns.

Terror na Alemanha
A despeito do que as acusações populistas e a agência do Grupo Estado Islâmico, ou Daesh, possam fazer parecer, o ataque com o caminhão em Berlim demanda muita cautela. Um paquistanês foi preso e logo depois liberado por falta de provas, enquanto islamofóbicos e xenófobos se deleitavam em acusações nas redes sociais. O Daesh se apressou em reclamar a autoria do atentado por meio de seu meio de comunicação, a agência Amaq, o que faz total sentido. Os terroristas não tem nada a perder vinculando uma informação como esta, e se apresentam como importantes, enquanto o grupo não para de sofrer derrotas militares em seus locais de origem. A mídia informando a suposta autoria como “breaking news”, ou seja, de suma importância, é tudo o que o grupo quer.

Merkel enfrentará grande pressão até as eleições do ano que vem, quando tentará mais um mandato. Um deputado do AfD, o partido de extrema-direita alemão, indicou logo depois do atentado que a chanceler teria “sangue em suas mãos”, por conta da sua política de recepção aos refugiados. Até o momento Merkel é favorita para vencer as eleições, mas existem muitas possibilidades nestes próximos nove meses, como 2016 nos provou. Cautela e pragmatismo serão extremamente necessários para a estadista que como apontada em 2015 pela revista Time, é a “chanceler do mundo livre”. Mais do que nunca.

Enquanto isso...
Na República Democrática do Congo, que não é o Congo (os dois países são banhados pelo rio, pasmem, Congo), a situação é extremamente delicada. O presidente Kabila deveria ter deixado o cargo, que ocupa desde 2001, na última segunda-feira, o que não aconteceu. Kabila deveria ter organizado novas eleições, o que protelou e quer fazer em meados de 2018, e, claro, se mantendo no cargo até lá. O presidente chegou ao poder depois que seu pai foi assassinado em 2001, e venceu eleições em 2006 e 2011. A constituição impede mais um mandato, o que Kabila tenta burlar de todas as formas.

A população foi às ruas protestar pela saída do presidente, e foi duramente reprimida. As redes sociais foram cerceadas, e os relatos de prisões arbitrárias se espalharam pela República. A comunidade internacional pressiona Kabila pela saída, mas não tem planos de ação até aqui para fazê-lo na prática. A R.D.C enfrentou uma violenta guerra civil durante a década de 90, e é um país tido por muitos como ingovernável desde sua independência em 1960. Os conflitos desde então deixaram, segundo estimativas, ao menos três milhões de mortos. A ONU confirma 260 mil mortes na Guerra da Síria. Não dá para ignorar.

"World in 1 minute" do mestre Ian Bremmer, presidente da Eurasia:
https://twitter.com/ianbremmer/status/811329245179969536
Sei que não cheguei nem perto, mas como dizem, primeiro passo é tentar...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O marxismo de Trump

A frase de Marx: “Eu tenho meus princípios. Se você não gosta dele, bem, eu tenho outros” foi usada de maneira brilhante no editorial do New York Times no dia 24 de novembro, para referir-se às posturas de Trump desde sua eleição. A máxima é uma das melhores proferidas por Groucho Marx, humorista norte-americano dotado de uma das visões irônicas de mundo mais interessantes do século XX. Não à toa, Marx é o maior ídolo de Pernalonga, outra grande figura do período. Já Trump não tem graça. Usa a volatilidade de um adolescente tentando se enquadrar em diferentes grupos para comandar a maior potência do planeta.

A segunda-feira dessa semana começou com bons indícios para o meio-ambiente. Trump se encontrou com Al Gore, que já foi vice-presidente dos EUA, e que saiu derrotado nas eleições de 2000 no colégio eleitoral, apesar de ter tido mais votos no país, assim como Hillary Clinton. Desde então Al Gore é uma das mais proeminentes figuras na defesa do clima, conseguindo grande destaque para a questão depois de seu filme “Uma Verdade Inconveniente”, um marco no tratamento sobre as mudanças climáticas. Ambos declararam saírem satisfeitos da reunião, o que animou os ambientalistas. Depois de eleito, Trump, em entrevista ao New York Times indicou que acredita que o homem possa ter impacto nas mudanças climáticas. Já durante a campanha, o magnata chegou a propor que o aquecimento global era uma invenção chinesa.

Na prática, o bilionário nomeou no dia seguinte Scott Pruitt para a Agência de Proteção ao Meio-Ambiente, E.P.A. na sigla em inglês. Pruitt é o promotor geral de Oklahoma, estado com a maior utilização intensiva de hidrocarbonetos nos EUA. O promotor chegou a entrar com ações contra a própria E.P.A., e segundo indícios, cartas que o mesmo enviou ao processo teriam sido redigidas por agentes da indústria do petróleo. Pruitt foi um ardoroso opositor das regulamentações ambientais de Obama, que possibilitaram, por exemplo, o Acordo de Paris. Por fim, o novo homem forte da E.P.A. diz não acreditar no homem como transformador do clima.

Trump foi eleito com um discurso voltado aos trabalhadores, que estariam sendo derrotados com a globalização. Como secretário de Emprego, o presidente eleito dos EUA nomeou Andrew Puzder. O novo secretário é responsável por uma cadeia de fast-foods, ramo conhecido nos EUA pelas condições de trabalho ruins. Puzder é contra o aumento do salário mínimo no país, atualmente em U$$ 7,25 a hora, o que é insuficiente para muitos trabalhadores manterem ao menos suas casas. Além disso, a rede comandada por Puzder foi condenada em 60% dos casos trabalhistas pelos quais a processaram, a maioria por não pagamento do mínimo e falta de remuneração por horas extras.

Goldman Sachs e Wall Street foram acusados ferozmente durante a campanha de Trump de serem responsáveis por grande parte dos problemas norte-americanos. Eis que o nomeado para o cargo de secretário do Tesouro é Steve Mnuchin. O escolhido por Trump para cuidar do dinheiro no país trabalhou por 17 anos no Goldman Sachs. Outra figura importante de Wall Street que vai compor o novo governo é Wilbur Ross, investidor de ativos em crise, os apelidados “tubarões”, e que chefiará a pasta do Comércio.

Após um mês eleito, Trump já criou um desgaste diplomático com a China ao atender um telefonema da presidente de Taiwan. Recebeu elogios de Duterte, presidente das Filipinas que chamou Barack Obama de “filho da p...” e é responsável por uma política de execuções extraoficiais que já matou milhares. Nomeou o editor de um site supremacista branco para ser conselheiro da Casa Branca e um islamófobico para o Conselho de Segurança. Mas nada disso surpreende, já que seguindo outra máxima de Marx: “Acho que a televisão é muito educativa. Todas as vezes que alguém liga o aparelho, vou para a outra sala e leio um livro” Trump, que fez carreira com seu reality show na televisão, não dá mostras de ter recebido tal educação.

Al Gore comenta encontro. Esperança durou pouco

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A Amazônia é nossa?

Tirando alguns casos extremos de conspiração, como as do nível de que o juiz Sérgio Moro seria um agente treinado pela CIA servindo aos interesses norte-americanos para tomar o pré-sal, esta pergunta não deveria ser muito difícil de se responder. Já quando se pensa nos complicados casos de biopirataria e no tráfico internacional de animais silvestres, realmente a questão fica mais complicada. Mas, em termos gerais, a Amazônia no território brasileiro, sim, pertence ao Brasil.

No entanto, o quanto os brasileiros conhecem da maior floresta do mundo? A excelente reportagem de Simon Romero, correspondente do NYT no Brasil, é uma boa provocação para a pergunta. Romero traz um grave problema que não pode ser chamado de esquecido, já que sequer um dia foi abordado de maneira massiva: a pirataria no rio Amazonas. Os relatos apresentam casos semelhantes aos famosos de pirataria moderna na Somália, exemplificados no filme indicado ao Oscar, Capitão Philips, com atuação de Tom Hanks. Por aqui, descaso no “mar de água doce” e sequestros acontecem em regiões em que é possível ficar dias sem avistar outra embarcação.

O principal alvo dos piratas brasileiros são os combustíveis. Além de abastecerem seus próprios barcos, a mercadoria é traficada para outras atividades ilegais, como as madeireiras. Em uma das regiões mais pobres do Brasil, os negócios ilícitos aparecem como alternativas interessantes para diversas pessoas, que veem ali uma possibilidade de ganhar a vida. No caso da pirataria ainda há mais uma implicação, já que os bandidos também atacam trabalhadores que tentam levar uma vida honesta, sobretudo com a pesca. Segundo os relatos de Romero, estas comunidades vivem em um clima de terror constante com medo dos piratas.

Outra boa fonte de informação sobre a Amazônia é a coluna “Pé na Praia” da DW, assinada pelo correspondente do Die Zeit no Brasil, Thomas Fischermann. O colunista afirma que a Amazônia é seu lugar preferido no país, e as interessantes histórias sobre as pessoas que vivem de maneira paralela ao restante do Brasil justificam o interesse. Fischermann conta sobre cidadãos isoladas das decisões tomadas em Brasília, alheias aos acontecimentos no eixo Rio-São Paulo e que compõe um universo fascinante em meio ao “pulmão do mundo”.

Quando não se tratam de questões que sofrem por interesses políticos, é inegável o bom trabalho jornalístico realizado pela rede catarí Al Jazeera. No Brasil, o exercício tem um foco na Amazônia, trazendo histórias de povoados isolados, dificuldades e principalmente das riquezas da região. A cobertura política e econômica fica em segundo plano, salvo em casos extremos como o impeachment de Dilma Rousseff, ou de grande relevância, o que nos últimos tempos já não vem sendo exceção.

Um dos grandes destaques nacionais para a cobertura da floresta é a escritora e jornalista Eliane Brum, que consegue aliar as duas vocações contando histórias de grandes personagens da Amazônia em verdadeiras obras-primas. A autora vem se destacando nos últimos tempos ao falar do drama dos afetados pela construção da usina de Belo Monte, projeto que afetou diversas comunidades no entorno da bacia do Xingu, fazendo de alguns “refugiados em seu próprio país”, como Eliane costuma chamar. Muitos, além de mostrarem como suas vidas foram afetadas, relatam até mesmo estar passando fome.

No texto“O ritmo da fome não é o da burocracia” Eliane Brum contou sobre o descompasso que os ribeirinhos desalojados por Belo Monte sofrem em meios às discussões com os tecnocratas responsáveis pelo processo. Enquanto os locais não têm as mais básicas necessidades atendidas, os burocratas dos grandes centros do país se valem de promessas que não vem sendo cumpridas e que, em tese, seriam a reparação por conta dos danos causados pela usina. Na prática os moradores seguem sofrendo a duras penas, enquanto Belo Monte deixou de ser assunto nas maiores capitais do Brasil há certo tempo. As colunas de Eliane são publicadas em sua maioria na versão brasileira do espanhol El País.

Piratas e refugiados poderiam sim serem problemas distantes do Brasil, mas como estas exceções de bom exercício jornalístico para a Amazônia provam, na verdade são problemas distantes de um dos Brasis. Já que, enquanto se discute no centro das decisões a crise política, ética, econômica, a vida no pulmão do mundo segue seu rumo. E para responder a pergunta do texto, nos últimos tempos, no que se refere a transmitir os anseios da floresta, assim como seus bons personagens, “os gringos tão levando tudo”.



Boa imagem trazida na matéria de Romero para o NYT. / FOTO: Dado Galdieri (New York Times)

domingo, 6 de novembro de 2016

A hora da verdade

Enfim chegou a hora da verdade. Depois de um período extenso de campanha, os norte-americanos se deparam com seu peculiar sistema eleitoral em que, no caso desta campanha, as acusações, mentiras e ofensas dão espaço para uma busca desesperada por votos nos chamados swing-states.

Isto ocorre por conta de eles serem, de fato, fundamentais na eleição. Um candidato pode vencer mais estados, e até possuir mais votos no país inteiro e não se tornar presidente. Em 2000, o democrata Al Gore conseguiu maior votação geral do que o republicano George W. Bush, mas perdeu no estado mais relevante naquela eleição, a Flórida, e o resultado final os iraquianos sabem melhor do que ninguém.

O sistema dos colégios eleitorais vem do começo da história dos EUA independentes, quando os ditos estados unidos, temiam que alguma região pudesse concentrar mais poderes do que outra. 
Sendo assim, foi estabelecido o complexo sistema que, de fato, representa as maiores populações, mas que leva em conta números relativo aos congressistas e senadores. Hoje o colégio eleitoral conta ao todo com 548 delegados divididos entre os 50 estados. Para se tornar presidente, Clinton ou Trump devem conseguir ao menos 270. O sistema é o chamado winner takes all, ou seja, o vencedor de cada estado leva todos os delegados.

O maior, com 55 delegados, é a Califórnia, onde um republicano não vence desde 1988, com George Bush. O segundo é o Texas, que conta com 38 delegados, e é ainda mais definido, onde um democrata não vence desde Jimmy Carter desde 1976. Em terceiro vem Nova Iorque, com 29, e que um republicano não leva desde Reagan em 1984. Também com 29 vem a Flórida, estado em que desde 1996 quem venceu se tornou presidente. Daí o apelido de “grande prêmio das eleições”.

Depois como tradicionais swing-states importantes estão Pensilvânia e Ohio, com 20 e 18 delegados respectivamente. Existem outros, e claro, também são relevantes ainda mais se tratando de uma eleição disputada. E em 2016, uma peculiaridade. Alguns estados tradicionalmente considerados “sólidos” de um dos partidos passaram a ter disputas intensas, em especial pela alta rejeição dos dois candidatos. Assim, Arizona e Geórgia, dois estados do Sul, o tradicional reduto republicano, passaram a condição de swing-states, e Clinton tem reais possibilidades de ganhar lá.

Para acompanhar tudo isto na prática, recomendo o Real Clear Politics, que usa uma fórmula com o maior número de pesquisas possíveis, e atribuindo a cada uma determinado valor de acordo com o grau de confiança, para indicar suas expectativas. No dia, acredito que o NYT, que abriu seu conteúdo gratuitamente no período das eleições, não deve decepcionar, trazendo assim uma cobertura brilhante como vem fazendo.
Mapa eleitoral: Real Clear Politics
Outros candidatos
Diferente dos amplamente divulgados swing-states, este assunto aparece bem menos na imprensa. Mas existem outros candidatos, e são mais de mil. Na prática o único relevante é o libertário Gary Johnson, que oscila entre 3% e 6% das intenções de votos nas pesquisas. Sobre ele fala-se pouco, além de não ter grandes recursos para divulgar sua campanha e ainda menos espaço na mídia. Seu momento mais marcante foi quando perguntou o que era Aleppo, a segunda maior cidade da Síria que vive o maior drama humanitário da atualidade. O que acontece em Aleppo é de alto interesse dos EUA, e foi bastante difundido durante as eleições. O episódio para muitos fez com que Johnson não figurasse mais como um candidato sério, sendo seu resultado eleitoral mero reflexo das altas rejeições de Trump e Clinton.

A ausência na prática de outros candidatos se deve principalmente ao sistema distrital utilizado pelos EUA, que beneficia o bipartidarismo. Outro fator determinante é o federalismo, sendo complicado para os candidatos se registrarem nas cédulas de votação em todos os estados, já que a legislação altera-se bastante de um para outro. Assim, somente os três citados até agora conseguiram estar à disposição dos eleitores em todos os 50 estados. A quarta força, Jill Stein, é digna de nota. A candidata do Partido Verde conseguiu cerca de 2% na intenção de voto nas pesquisas gerais, sendo que seu nome está disponível nas cédulas de menos de 20 estados. Todos os mais de mil candidatos podem receber votos, mas desde que o eleitor escreva o nome deste no papel de votação. Sim, na prática, voltamos a Trump x Clinton  e os swing-states.

Abstenção
A abstenção nos EUA tem papel fundamental e é uma das maiores preocupações dos candidatos até o último momento. Pesquisas prévias muito favoráveis podem desestimular o eleitor a ir votar, por conta do “já ganhou”, neste que é um dos países democráticos com menor índice de participação nos processos eleitorais. Até a previsão do tempo pode ser relevante em um caso assim, já que tradicionalmente um tempo ruim faz com que muitos desanimem de ir votar.

Grande parte desta falta de participação se dá pelo fato de que é difícil votar nos EUA. A lei de que a votação tem de ocorrer em uma terça-feira vem de uma época em que só homens brancos podiam exercer o direito do voto, e que o país era, sobretudo, dependente da produção agrária. Hoje as terças-feiras são dias comerciais, e boa parte dos trabalhadores tem dificuldades para se deslocar aos locais de votação e enfrentar as filas, em dias que são como quaisquer outros.

Existem diversos movimentos para alterar o dia de votação, o favorito seria seguir a América Latina e adotar o domingo. Outra ideia é tornar a terça-feira da eleição um feriado, o que tem maior peso econômico. O fato é que os norte-americanos tem uma predisposição a seguir regras de sua constituição de maneira inquestionável, mesmo que isto represente um ultraje ao bom senso. Grande exemplo é a negação de qualquer mudança na lei que regulamenta armas, por conta do texto ancestral da Segunda Emenda, e que permite que hoje, pessoas com suspeitas de ligações terroristas possam comprar armas. Mas isto é pra outra hora.