segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Portugal elege maioria com pragmatismo, mas uma história preocupa


Com resultados dentro do previsto na maioria das pesquisas, Portugal optou pela continuidade. Em uma situação bem mais tranquila do que em 2015, o PS poderá escolher os parceiros para formar uma nova coalizão. Com uma política econômica equilibrada, capitaneada pelo ministro das Finanças Mário Centeno, de excelente imagem junto aos mercados, o atual governo tirou motivos do voto à direita e conquistou um bom resultado que passou perto de uma maioria absoluta. Mas uma cadeira dentre as 230 no parlamento conta uma história que preocupa.

Até então o único país do sul da Europa imune à extrema-direita, Portugal viu chegar ao parlamento André Ventura com o seu “Chega!”. Político em Loures, cidade próxima à Lisboa, Ventura ficou famoso por suas declarações críticas à minorias, e em especial ataques contra à mais vulnerável do país, os ciganos. Enquanto as atenções se voltam, com razão, aos bons resultados alcançados na última eleição quanto a candidatos negros, os ciganos seguem em uma difícil situação em que indicadores sociais destoam muito do restante da população.

Os votos que elegeram Ventura no distrito de Lisboa vieram sobretudo de Loures, Sintra e Amadora, notórias pela grande população cigana. Há de se ressaltar que no sistema político português a criação de um partido é bastante simples, mas a chegada no parlamento, e o consequente financiamento público são bem complicados de se lograr, sendo a entrada do “Chega!” um grande feito. O resultado mostra que, enquanto Portugal ostenta prêmios de melhor destino turístico do mundo, e Lisboa se coloca como uma cidade cosmopolita, nos arredores há um grave problema social a ser levado em conta e o voto em Ventura é a expressão disso.

O deputado acusa o “politicamente correto” com frequência, e de fato, a queixa é comum em amplas camadas da sociedade portuguesa. O questionamento é uma das plataformas políticas abordadas por Antônio Sousa Lara, um dos ideólogos do partido, e que concorreu pelo “Chega!” nas últimas eleições. Longe da caricatura global da extrema-direita, Sousa Lara é um notório intelectual, sendo um dos mais prestigiados professores do país. Conservador de profunda sensatez, dentre os muitos aspectos de sua interessante biografia está o respeito pelo regime cubano, que surpreende aqueles acostumados ao maniqueísmo que tomou conta do cenário político.

Nas outras 229 cadeiras, vigorou o típico pragmatismo português. Com um governo de esquerda responsável, coube à oposição apostar nas críticas quanto à corrupção e a gestão de crises que marcaram o mandato, sem grande efeito. No último dia de campanha, Antônio Costa deu motivação aos críticos ao se destemperar e agressivamente responder a um senhor que lhe questionou no Terreiro do Paço. A reação foi criticada pelo público em geral e marcou uma campanha até então tranquila.

O PAN – Pessoas, Animais e Natureza conseguiu aumentar sua presença parlamentar e é uma opção para governar junto ao PS. O partido, criticado por não conseguir se posicionar com consistência em questões para além dos animais, é expressão de uma preocupação ambiental maior. O europeísta Livre, que tem como uma de suas principais plataformas um Green New Deal para a UE, também conseguiu representação. Se posicionar nos debates nacionais e orçamentários é um desafio que ambas as legendas terão na Assembleia da República.

Em um ambiente tranquilo e de estabilidade econômica, o PURP, partido dos aposentados sobre o qual contei a curiosa história em 2017 na Piauí, não conseguiu engrenar. Criado em meio à crise, quando os idosos no país chegaram a serem considerados como “a peste grisalha”, mas o cenário mais favorável aos reformados levou os portugueses à escolhas mais ortodoxas. O divertido líder do partido, Fernando Loureiro, chegou a dizer na campanha que em caso de fracasso, iria abandonar a política para ir pescar.      

Como bem apontado por Mathias Alencastro: "O papel irrelevante das redes sociais, e a consequente ausência de fake news, é, sem dúvida, um dado essencial para entender a qualidade da democracia portuguesa." As redes sociais, responsáveis pelo tumulto político em outros países, não tem o mesmo efeito em Portugal, beneficiando a estabilidade e soluções menos populistas escolhidas pelos portugueses. Os “coletes amarelos” no país foram um fracasso, provando a menor tentação do pragmático povo aos cantos de sereia dos bastiões da internet que buscam reinventar a roda diariamente.

Um dos debates mais interessantes que ocorre hoje no país é justamente como o governo pode beneficiar os meios de comunicação chamados de “referência”, sem que os mesmos percam independência. Portugal entende que “jornalismo de qualidade demanda recursos” e que o mesmo é um dos pilares da democracia, o que leva a discutir formas de enquadrar os subsídios no enxuto orçamento de constante escrutínio de Centeno.

A desconfiança que evita populismos tem como fruto também a alta abstenção, de 45,5% na última eleição, um recorde. Com o jargão “são todos uns corruptos”, perpetua na sociedade um clima de constante desilusão com a política. Por sua vez, a falta de paixão auxilia em um escrutínio constante, com casos de incompetência ou desvios sendo punidos a despeito de ideologias políticas. Algum português que tenha lido até aqui já deve estar me xingando e dizendo que não, “tá tudo uma merda”, e como tenho saudades de ouvir isso a “tomar uns copos”. 

   Assembleia da República, que agora passa a contar com a extrema-direita. FOTO: Wikimedia

sexta-feira, 15 de março de 2019

Ministro da Educação: teste contra "patriotice", e Brasil falhou


Em meio às repercussões das polêmicas entorno do Ministro da Educação Ricardo Vélez Rodriguez, com frequência a utilização do termo “estrangeiro”, ou algo semelhante a “colombiano que veio falar mal do Brasil”, foi ignorada. É fato que no caso referente à carta do hino nacional, e em outros, a postura do notável polemista deve ser discutida, mas utilizar o local de nascimento do mesmo para desqualifica-lo é uma canalhice, que infelizmente é comum.

Henry Kissinger e Madeleine Albiright são dois dos mais notórios secretários de Estado norte-americanos da segunda metade do século XX. Ambos fugiram do nazismo, refugiaram-se nos Estados Unidos, e construíram carreiras notórias dentro das relações internacionais. Kissinger é um dos grandes estrategistas externos do partido republicano, mas conta com amplo respeito na área internacional de todos os lados. Albiright serviu aos democratas no governo de Bill Clinton, e foi aprovada no Senado por unanimidade para seu cargo. Ambos, de origem judaica, eram acusados por antissemitas de colocarem suas raízes ashkenazis do centro da Europa acima dos interesses norte-americanos, em uma incapacidade de críticos para questionarem seus feitos.

Com uma porcentagem da população de origem estrangeira relativamente pequena, em relação ao resto do mundo, é possível contemporizar reações extremistas no Brasil. Estas questionaram a validade de alguém que nasceu fora do país ocupar o cargo de ministro, e mesmo cogitaram a expulsão de Vélez Rodriguez. No entanto, casos como os citados dos secretários de Estado norte-americanos, ou Ahmed Hussen, refugiado somali nomeado ministro da Imigração por Justin Trudeau, são comuns mundo afora, e com frequência notabilizam-se por serem grandes histórias.

Há alguns cargos que exigem desde a nascença no país à cidadania desde a origem. Por exemplo, no caso da Presidência de República de Portugal, o ocupante do cargo tem de ter sido desde sempre português, o que não necessariamente designa aquele que nasceu em território lusitano, já que a cidadania ali é definida por consanguinidade. Na prática, filhos de pais portugueses são os aptos ao cargo. Já a posição na Assembleia da República pode ser ocupada por aqueles que adquirem a cidadania no decorrer da vida, e mesmo por brasileiros residentes com direitos equiparados. Portugal é só um exemplo, e há constantes variações sobre o tema no mundo. O que costuma ser universal é a canalhice de quem se esconde atrás da pátria para atacar adversários.

Vélez Rodriguez poderia ser um dos 6 milhões de deslocados por conta do conflito na Colômbia contra as FARC. É possível que tenha fugido do país por conta da violência, cada vez mais conhecida e vulgarizada por séries de TV, ocorrida no território nas últimas décadas do último século. Ou pode ter simplesmente preferido morar no Brasil. O importante, hoje, é que desde 1997 o atual ministro da Educação é cidadão brasileiro.

No futebol, a canalhice disfarçada de patriotismo costuma ser mais escancarada. Na Copa da Rússia, viralizou um texto de Romelu Lukaku em que ficou claro que o belga tinha sua nacionalidade questionada de acordo com a circunstância e a conveniência. Note-se que o atacante sequer nasceu na R.D. Congo, sendo esta a origem de seus pais. No caso étnico, à exemplo de Albiright e Kissinger, a situação fica ainda mais complicada, e além de judeus, há o caso de ciganos, como o português Ricardo Quaresma, que pode ser chamado de “rei da trivela” ou “aquele cigano de m...” dependendo do resultado da partida.

Em excelente coluna, Contardo Calligaris trouxe a definição de “patriotice”, a mistura de patriotismo, este sozinho nada negativo, e canalhice. E fez a ótima definição do que o pertencimentos a grupos oferece: “São os grupos que nos autorizam a sermos os canalhas que, sozinhos, nós não nos autorizaríamos ser. A pátria é um desses grupos possíveis.” Ou nas palavras de J.L. Borges, a mistura entre nacionalismo intransigente e patriotismo é negativa por sua incapacidade de dialogar: “O nacionalismo só permite afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez.”.

Existem inúmeras críticas passíveis de serem feitas ao atual governo, inclusive em termos de utilizar “patriotice”, como trouxe Calligaris, sem desqualificar o interlocutor, sobretudo sua origem. Sinceramente, espero que possamos entender isto antes de o primeiro boliviano ou haitiano que estrear pela seleção brasileira perder uma bola, e termos de ouvir alguém gritar um "volta pra casa!".

Dica: Série “Cães de Berlim” no Netflix. Quem receia de produções europeias pois as acham monótonas, não precisa temer com a produção alemã. Assassinato de jogador turco-alemão na véspera de uma partida entre ambos os países desencadeia “patriotices” étnicas. Não dá para não pensar no que ocorreu com Mesut Özil após a última Copa.


Vélez Rodriguez, naturalizado e cidadão brasileiro de 1997. FOTO: (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Em baixa na exportação de petróleo, Venezuela se mantém em alta nos clichês

Em meio às acusações quanto a vilania estadunidense com interesses em surrupiar o petróleo da explorada nação, algo que nem mesmo Maduro repete, e que parte de premissas geopolíticas atrasadas em quase 40 anos, surgiu a figura de Juan Guaidó. Em uma crise de quase seis anos, surgiu de um mês para o outro uma figura aceita como presidente pela comunidade internacional, e imbuída de caráter, compostura e moderação que fariam inveja a Mandela. O fim de Maduro estaria para ocorrer a qualquer momento. Nada muito diferente do que se divulga desde 2014.

O cenário real envolve bem mais pragmatismo do que geopolítica dos anos 70. A “iminência” da queda de Maduro é algo que deve demorar mais do que parece, e a união entorno de Guaidó é bem mais de situação do que a espécie de Nobel da Paz que alguns pintaram nas últimas semanas.

Estes dois ótimos artigos demonstram como a premissa que acusa os EUA de agirem meramente com o interesse imperialista no petróleo venezuelano é falsa. Dentre os muitos fatores envolvidos, chama atenção o fato de que a Venezuela importa petróleo norte-americano para produzir óleo de melhor qualidade e conseguir melhor posição no mercado internacional. Por sua vez, as explorações de xisto necessitam de um valor mais alto no mercado global do barril para serem viáveis, e a crescente na produção por este tipo de extração nos últimos anos nos EUA tornou as empresas lobistas poderosas, e a estas não interessa uma queda repentina na cotação da commoditie. Além disso, com Chavéz e Maduro a Venezuela seguiu sendo um dos maiores exportadores para os EUA. As mudanças ocorridas na posição norte-americana no mercado internacional de petróleo, tornando-se um dos maiores produtores mundiais, tornou obsoleta muitas das acusações contra o país que ouvimos há anos.

Resumo: negócios sobrepõe ideologias. E analisar geopolítica como à época da criação da OPEP pode gerar likes, mas não lucro.

Não faltam motivos que demonstrem hipocrisia no papel dos EUA no cenário global. A grande premissa que deslegitima hoje o governo de Maduro parte do processo fraudulento das eleições presidenciais em 2018. Como mostra a Foreign Police, a tática de pleitos adulterados foi a mesma utilizada no último mês pelo governo da R.D. do Congo, mas desta vez com apoio dos EUA à vitória de Felix Tshikendi. Se a dinâmica do petróleo mudou, a lógica atribuída a Franklin Delano Roosevelt sobre antigo ditador da Nicarágua, “Somoza pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta”, indica seguir presente.  

Outra boa peça vem da BBC Brasil. Hoje pouco lembrada, a Mesa de Unidade Democrática (MUD) foi por um tempo a principal força da oposição venezuelana. Um dos grandes problemas do grupo, sendo apontado por governistas, oposição e população, era que de unidade a legenda não tinha nada. Correntes políticas e ego disputaram a liderança como oposição a Maduro, e que em determinado de momento de 2019 chegou a Guaidó, com enorme apoio externo. Leopoldo López, preso desde 2014, pode até respaldar o presidente interino por conta de pertencer à mesma legenda, a Vontade Popular. Mas Henrique Caprilles e María Corina Machado não devem aceitar tão facilmente a liderança do neófito. As divisões ficaram claras em eventos importantes, como o boicote às presidenciais de 2018, que não foi seguido por setores da oposição, e a participação destas frações é hoje argumento de Maduro para validar o pleito.

Mas vem do apoio ao chavismo a maior razão que impede a “queda iminente de Maduro”, profetizada desde 2014. No plano interno, milícias servem ao regime na repressão contra protestos, como ficou marcado nas “Manifestações dos 100 dias” em 2018, que levaram a centenas o número de mortos e feridos. De fato, os grupos possuem uma lealdade menor à figura de Maduro, mas o chavismo ainda exerce um poder muito forte, e que garante relatos como estes da BBC Mundo. Bom aspecto assinalado com unanimidade é o poder que as forças armadas terão no processo. Leal a Chávez, o exército venezuelano galgou grande poder nos últimos 20 anos, e perder a estrutura deve significar o fim de Maduro. Mas afirmar a “iminência” do fato é achismo ou deter informação privilegiada que faria inveja aos melhores serviços de inteligência do mundo.

No exterior, a China, que fez seus maiores investimentos na América Latina no país caribenho é o outro grande fiel da balança. Maduro deposita enorme confiança nos “buenos amigos chinos”, mas o pragmatismo da realpolitik pode jogar contra o mesmo. Com débitos na casa dos dezenas de bilhões de dólares, a “amizade” pode não resistir a um aceno de Guaidó aos asiáticos. É sabido que o senador republicano Marco Rubio e o assessor de Segurança Nacional, John Bolton, desejam uma espécie de resgate da doutrina Monroe, e que a influência na Venezuela é um dos grandes planos desta ala do governo Trump para a região. Mas o que a China investiu nos últimos anos pode ser o gatilho de um dos primeiros grandes conflitos entre as duas maiores economia da atualidade. Entre China, EUA, Guaidó e Maduro, quem esperar lealdade à frente de estratégia pode sair derrotado.

A Rússia investiu militarmente no país, o que pode garantir uma maior segurança a Maduro. No mínimo, com a experiência internacional recente, a presença de equipamento militar russo serve para dissuadir intentos de intervenção. Longe de seu território e com interesse geopolítico menor do que, por exemplo na Síria, é difícil imaginar que Putin investiria muito além para a manutenção do regime. Com menor capacidade de investimento do que os chineses, preservar os interesses econômicos no país pode fazer com que Maduro perca mais um aliado, e é o que já cogita o Moscow Times. A partir de agora, o apoio deve ficar mais em esferas diplomáticas, como o Conselho de Segurança da ONU.

Os seguidos reconhecimentos de Guaidó como presidente interino demonstram uma enorme força, mas é preciso levar em conta também o apoio que ainda resta a Maduro. Dois dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança; uma potência petrolífera carregada de sanções que completa 40 anos como inimigo dos EUA no plano externo, o Irã; a estratégica Turquia, membra da OTAN; e uma série de países aliados ideologicamente que se beneficiaram do petróleo venezuelano, com destaque para Cuba e Nicarágua. Por sua vez, o México de Obrador é importante parceiro para uma negociação que envolva o governo, assim como o Uruguai.

“É lamentável que o país com as maiores reservas de petróleo do mundo, e que já foi uma potência regional na década de 70 chegue a este estágio de penúria com 3 milhões de refugiados e uma inflação anual de 1.000.000 % no último ano. A péssima gestão populista de Maduro, seguida por seus abusos autoritários não permitem mais chamar a Venezuela de democracia. A repressão contra opositores configura um crime, e os responsáveis devem ser punidos.” Não discordo de nada deste parágrafo, que escrevi em uma espécie de agregador para qualquer editorial no mundo. Mas sem melhor contexto, estamos fadados a repetir clichês. Hoje estes abundam mais do que o petróleo no que se refere à Venezuela.

Sugestão
Por fim, ninguém melhor para tratar do assunto do que Nicolás Maduro. Nas excelente série catalã Salvados (tem na Netflix), o homem tão falado, e nem tão ouvido, deu uma longa entrevista em 2017 a Jordi Évole em uma das melhores produções sobre Venezuela que já vi.       

                                      
                                        Cena da entrevista com Maduro em Salvados. Líder promete responder a todas perguntas. E o faz

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Elementar, meus caros. E aí?


O ano de 2018 foi histórico e intenso. Se durante grande parte da minha vida me ressenti por estar longe dos grandes acontecimentos, não posso queixar de que o mesmo ocorreu no ano que termina. De formas diferentes, as duas cidades em que vivi estiveram com grandes atenções.

Em Lisboa, vivenciei o auge do interesse recente em Portugal exemplificado na realização de grandes eventos com presenças ilustres de nomes sobre os quais só lia nos jornais, como Emmanuel Macron e Roberto Azevedo. Já Juiz de Fora, desde que voltei, o município parece envolvido em um realismo mágico de acontecimentos bizarros que faz da cidade uma espécie de Macondo da Zona da Mata. Ano de uma boa Copa, o que já bastaria para render longas conversas. Mas o foco esteve sempre comigo, e cada vez menor quantidade.

Em maio, cortei o cabelo pela primeira vez fora de Juiz de Fora e percebi que algo péssimo havia acontecido. Foi o dia da convocação da seleção brasileira para a Copa, e eu estava preparado para qualquer corneta, de preferência Taison ou Fagner, mas não me incomodaria em algo menos ortodoxo como a pedida de Vinícius Júnior, e até mesmo um ousado resgate de Adriano, quem vai em barbeiro sabe do que falo. No ortodoxo recinto que frequento em Juiz de Fora, a corneta ao Tupi normalmente envolve o “6”, “tem muita gente na várzea aqui que joga mais”, e “eu mesmo quando jogava”. Desta vez nada disso. O único assunto do brasileiro que cortou meu cabelo naquela tarde lisboeta foi minha calvície.

Entre um comentário sobre implante e outro, o mesmo perguntou: “mas você já tá tranquilo com isso, né?” Era nítido que o assunto me incomodava mais do que minha condição capilar, e que para ele a minha condição era mais importante do que para mim, mas respondi um “é” seco, sem muita esperança de que o assunto ali terminasse, o que se concretizou.

A questão para mim já tinha terminado há quase dois anos, quando minha queda de cabelo aumentou e fui ao médico. Quis saber se era normal acordar pensando que um rato estava no travesseiro. Perguntei se havia algum hábito ou algo que poderia diminuir aquilo, ele disse que era natural, indicou uma alopecia hereditária, e que eu não poderia fazer nada a respeito. A partir daí, ao ver que eu usava uma camisa da seleção turca, começamos a falar sobre o país. O assunto no especialista que constatou a inevitabilidade da minha careca foi bem mais agradável do que uma série de outros que se seguiram em bares e barbearias.

Poderia ter escrito sobre a situação mais cedo, a questão é que enfim decreto: acabou a criatividade. Qual a resposta que alguém espera para “tá ficando careca?” Tentei ser educado, sucinto, engraçado (no que frequentemente falhei, e assumo a culpa), didático, conformado, mas o assunto não termina. Vão completar cinco anos que grande parte das conversas dos meus amigos se resumem ao que eu não tenho: antes carros e carteiras de motorista, agora meu cabelo. Queria gostar da ideia de perucas tanto quanto amo metrôs.

Vamos lá, tem bastante assunto. Prometo tentar dessa vez achar resposta para o “tá quente, né?”.

Tite era tão intocável que nem o prazer da corneta no dia da convocação cheguei a ter. Mas insistir em Jesus não tem careca que me faça calar. FOTO: CBF

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Na Guerra, a primeira vítima é a verdade. E a Guerra só começou

Num artigo na National Review (25 de outubro de 2004), Mark Steyn relatou uma história publicada no jornal londrino em língua árabe Al-Quds al-Arabi a respeito do pânico instaurado em Cartum, no Sudão, depois que um boato percorreu a cidade dizendo que se um infiel apertasse a mão de um homem, este perderia a virilidade. ‘O que me espantou nessa história”, disse Steyn, ‘foi um detalhe: a histeria se espalhou por telefones celulares e mensagens de texto. Pense nisto: é possível alguém ter um telefone celular e mesmo assim acreditar que um aperto de mão de um estrangeiro seja capaz de torná-lo impotente? O que aconteceria se esse tipo de primitivismo tecnicamente avançado fosse além das mensagens de texto?’” 

parágrafo é retirado do livro “O Mundo é Plano”, do colunista do New York Times Thomas Friedman, de 2005. Em 2018, o primitivismo dos nem tão saudosos SMSs foi substituído pela instantaneidade e capacidade de penetração do Whatsapp. Se a longínqua Cartum pode parecer uma caricatura sobre notícias falsas circulando, veja a seguinte checagem realizada pela agência Aos Fatos nesta semana: “Não é verdade que uma nova dipirona importada da Venezuela estaria contaminada com o vírus Marburg, como alardeia um áudio que se espalhou pelo WhatsApp nos últimos dias.”. 

Na mesma semana, a Folha de S. Paulo se viu obrigada a desmentir que Lula fosse o dono do jornal. Pode ser risível para alguém que já leu estes dois parágrafos, mas boa parte das inúmeras notícias falsas que circularam durante as eleições eram deste nível. Repito a indagação: e quando avançarmos deste primitivismo? E vamos. Softwares avançados já são capazes de produzir vídeos em que peritos só conseguem desmentir o conteúdo depois de dias de trabalho. Programadores conseguem deturpar e manipular com quase perfeição vozes atualmente. Hoje, o engajamento com notícias falsas é em parte relacionado ao que Eliane Brum descreveu como “autoverdade”, com bastante precisão. Acredita-se no que se quer, e normalmente a realidade fabricada nestes casos é mais interessante do que o mundo de verdade. Mas estamos prestes a romper a barreira que os separa. 

A política partidária é parte essencial de qualquer sociedade que a aplique, e é positivo que as atenções se voltem a ela. A questão é que a mesma é apenas uma fração da engrenagem social, e enquanto as atenções voltam-se às eleições brasileiras, norte-americanas, e ao Brexit, verdadeiras tragédias ocorrem sem a mesma atenção (pode ter certeza que perder perto destes casos é pouco).  

Em Myanmar, a minoria muçulmana rohingya foi perseguida a partir do fim de 2017 em um caso notório de limpeza étnica e no qual é verificável o intento de genocídio. Os números são controversos, mas estima-se que 700 mil pessoas tenham fugido para Bangladesh e que cerca de 10 mil foram mortas. Cada vez mais a negligência do Facebook quanto a postagens na rede que incitavam agressões contra os rohingyas, assim como falsos comunicados de atentados terroristas por parte de membros da minoria é latente. Em um dos últimos casos recentes de genocídio, Ruanda em 1994, especialistas convergem em como as rádios do país foram usadas pelo Poder Hutu por anos para instigar a morte de tutsis. Em um futuro próximo, podem indicar que em Myanmar bastaram meia dúzia de publicações, likes e compartilhamentos. 

Na Índia, mensagens falsas pelo Whatsapp são apontadas como responsáveis pela morte de dezenas de pessoas por conta de acusações mentirosas que envolvem desde o abate de bovinos por muçulmanos a uma das canalhices mais comuns, os falsos sequestros de crianças. Recentemente um homem foi linchado na Colômbia por conta da mesma imputação, que logo foi confirmada como falsa pelas autoridades locais. No Brasil, em casos esporádicos no interior o problema se repete. “E quando avançarmos deste primitivismo? 

No caso indiano, o Whatsapp limitou o número possível de encaminhamentos de 20 para cinco, algo que foi requerido no Brasil. No ano que vem, o país passa pelo processo eleitoral com mais participantes do mundo, em um momento de forte presença do nacionalismo hindu encabeçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi e seu partido BJP. Cerca de 900 milhões estarão aptos a votar no complexo sistema eleitoral. Na eleição de 2014, minorias denunciaram perseguições por parte dos nacionalistas. 

Na saúde, mentiras pouco fazem distinções entre nações mais ou menos desenvolvidas. A chamada onda anti-vacinas, criada por boatos como o de que as mesmas causariam autismo, é uma das grandes responsáveis pela alta nas contaminações por sarampo na Europa. Em algumas das nações mais pobres do mundo, a exemplo da Libéria, durante o surto do Ebola em 2014, mentiras causaram graves problemas para as equipes de saúde. A catástrofe poderia ter sido ainda pior se a instantaneidade do Whatsapp estivesse a serviço.

Malásia e Uganda foram além. No primeiro país, o país aprovou uma lei que torna crime as “fake news”. No primeiro caso de um condenado, a confusa história pode denotar a situação como uma acusação mentirosa levando alguém a ser preso por mentiras. Em Uganda, a solução do governo foi passar a cobrar pelo uso das redes sociais no pobre país, o que não foi muito popular. 

Acredito que quem trabalhe atualmente com fact-checking já entendeu que está envolvido em uma espécie de Mito de Sisífo. O desgastante trabalho é infinitamente menos compartilhado do que as notícias falsas que proliferam, e também não tem a mesma capacidade de influência. Eu mesmo quando fiz fact-checking nas eleições municipais de 2016 via naquilo como uma salvação. Dois anos depois, com a ideia difundida, vejo que era ingenuidade. 

O que resta é sair da zona de conforto de apontar que “educação é a solução” e trabalhar efetivamente na construção de algo que desenvolva desde cedo a capacidade de apuração individual. Afinal de contas, como no caso sudanês, o suposto nível social não é indicativo de imunidade a mentiras, e no Brasil o ensino superior tampouco serviu para impedir a ampla difusão destas. A outra solução é bastante simples, e não duvido que neste tempo de internautas que reinventam a roda constantemente já tenha sido sugerida. Será preciso pagar para alguém apurar as informações e servir como fiel da balança. Erros acontecem, mas como trouxe esta excelente coluna no Diário de Notícias, um dos grandes de Portugal, este país que consegue servir de poço de bom senso em meio à insanidade atual, “O jornalismo tem de explicar-se, as fake news nunca o farão”.
Campo de refugiados de Cox Bazar, em Bangladesh. Rohingyas podem ter sido os primeiros nesta nova era FOTO: Kevin Frayer/Getty Images

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Pesquisas, partidos, urnas, e alguns fatos

As fake news são o sintoma mais claro de um clima de desinformação generalizada, e que ganhou grande contribuição por conta das redes sociais. Mentiras devem ser combatidas, mas as “meias verdades” também podem ter um efeito bastante negativo. Nestes casos, o principal deve ser seguir o lema para o caderno do britânico Guardian sobre opinião: “A opinião é livre, mas os fatos são sagrados.” Pesquisas, números de partidos junto a congressistas, e sistema de voto são alguns dos assuntos com mais opiniões de bases pouco sólidas que povoam o atual clima eleitoral no Brasil. 

As pesquisas nos Estados Unidos e no Brexit não erraram. Se isso ocorreu, foi em efeito bem diminuto perto do propagado. Para a complexa missão de acertar os resultados do voto popular nos EUA, as sondagens conseguiram excelentes participações. Hillary Clinton venceu com pouco mais de 2% na contagem nacional, o que ficou dentro das margens de erro de 3% prevista por quase todos os institutos. Acontece que, pelo sistema de votação norte-americano, prever o resultado da eleição nacional pode ser tão útil para saber o vencedor do pleito quanto acertar quem ganha um concurso de comer cachorros-quentes, apesar da pífia insistência de democratas em contestar isso. O que vale são os estados, em especial os sem domínios tradicionais, os chamados swing-states 

E nestes casos, quase todos apontavam para um empate dentro da margem de erro. No principal deles, a Flórida, não verifiquei nenhuma sondagem duas semanas antes das eleições que apontasse uma diferença maior do que 1,5% dos votos para nenhum candidato, o que representa cenário de absoluta indefinição. O estado com maior discrepância no resultado foi Michigan, onde o excelente Guga Chacra apontou dificuldades nos institutos de pesquisa, mas que não representa um número de delegados para mudar o presidente do país. Ou seja, menos de 2% das pesquisas no país, que reserva um dos trabalhos mais inglórios por seu sistema de votação, podem ser questionadas.  

Aqui, Chacra faz um levantamento e também aborda sobre o Brexit. No caso do Reino Unido, notório por suas campanhas curtas, boa parte das sondagens foi realizada em meio à comoção pelo atentado terrorista que vitimou a deputada trabalhista Jo Cox, ardorosa na campanha do “remain”. Assim, a pequena diferença na votação final, de 2%, anteriormente era apontada nas pesquisas com uma vantagem minúscula para a permanência, ainda dentro da margem de erro. Vale lembrar que a votação foi marcada por expressivas diferenças climáticas, nomeadamente fortes chuvas em Londres, entre os locais de maior votação para apoiadores e contrários ao Brexit, o que foge à influência de qualquer pesquisa eleitoral. 

O caso dos EUA é usado frequentemente para criticar o alto número de partidos no Brasil. No entanto, pouco é lembrado que o bipartidarismo no país é obra em grande parte do seu sistema de eleição distrital. Desde partidos com causas pouco afeitas ao eleitorado em geral, como o proibicionista à época que antecedeu à aprovação da “lei seca”, e até uma legenda dominada pela KKK, os norte-americanos também contam com inciativas de mais apoio, como verdes e libertários. O ex-prefeito de Nova Iorque Michael Bloomberg chegou a cogitar seriamente uma candidatura independente na última eleição, o que poderia levar a um questionamento maior do modelo. No último pleito, apenas três candidaturas conseguiram registrar cédulas em todos os 50 estados, o que demonstra a dificuldade de concorrer sem o apoio de um grande partido. Um dos dois senadores independentes na atual legislatura Bernie Sanders, preferiu se filar aos democratas para a disputa, e foi derrotado nas primárias.  

O Brasil tem um número destacado de partidos, 35, mas chama a atenção a quantidade destes representados no congresso, e com financiamento. Com aproximadamente de 5% a população brasileira, Portugal conta com cerca de 25 legendas (algumas estão em avançado processo de criação). Para se criar um partido no país é simples, demanda apenas o recolhimento de 7500 assinaturas. No entanto, para conseguir financiamento, a agremiação necessita de eleger um deputado para a Assembleia da República, ou a difícil soma de 50 mil votos. Assim, é compreensível que apenas sete destas legendas estejam atualmente no parlamento. Trouxe um pouco desta situação nesta reportagem na Piauí. 

As cláusulas de barreira ajudam a explicar boa parte do fenômeno brasileiro, e provavelmente as alterações realizadas de maneira progressiva no sistema do país irão auxiliar no pulverizado cenário. A porcentagem de ao menos 5% dos votos para conseguir entrar no parlamento é bastante difundida internacionalmente, e costuma fazer vítimas de relevância. A Turquia, por sua vez, adota o corte em 10%, o que dificulta que partidos à exemplo do HDP, agremiação minoritária curda, cheguem ao parlamento, o que demonstra a importância de parcimônia na cláusula. 

Somando câmara alta e baixa do congresso brasileiro, chegamos ao número de 594 parlamentares. Portugal, com 5% da população, tem 230. Com seus cerca de 80 milhões de habitantes, a Alemanha tem a peculiaridade de um número variável de membros no Bundestag, que chegou ao recorde de 709 parlamentares na atual legislatura. Na Espanha, para a população de cerca de 40 milhões de pessoas, há 350 congressistas. No geral, a proporção brasileira fica abaixo da maioria das democracias consolidas. Com frequência, um bom argumento utilizado é o de que o Senado dos EUA conta com dois parlamentares por estado, frente aos três brasileiros. É fato, mas o sistema bicameral é difícil de encontrar parâmetros. No caso italiano, a alta casa conta com 320 membros, e o país rejeitou em 2016, num referendo, mudanças para diminuir isto. Na Câmara dos Lordes, o número, variável, está atualmente em 760. Ou seja, em todo o caso, o que destoa e preocupa no Brasil não é o número, mas o custo por parlamentar, o que é explicitado por uma série de levantamentos. Assim como este, outro valor no qual o Brasil se destaca é o de financiamento de campanha. Apenas no fundo eleitoral para as atuais eleições, cada partido teve como base quase um milhão de reais, mesmo sem nenhuma representação no parlamento, o que encontra poucos paralelos no mundo.  

Há um ano fui apresentado na Web Summit ao projeto digital da Estônia pelo primeiro-ministro do país, Juri Ratas, e uma série de altos membros do governo. Dentre os notáveis avanços que levaram ao apelido de E-Estonia, está o i-Voting, utilizado desde 2005, e que em 2007 foi responsável pela Estônia celebrar as primeiras eleições parlamentares com votos online no mundo. O pequeno país de 1,3 milhões de habitantes é membro da OTAN, e está em frequentes tensões com a Rússia, que é acusada ao longo dos últimos dois anos de interferência em processos eleitorais ao redor do planeta. Os estônios têm plena confiança no que é feito no país em termos de democracia digital, daí não posso deixar de demonstrar um pouco de perplexidade com o que ouço no Brasil. 

Para além das fake news, mais de 30 países utilizam urnas eletrônicas, dentre eles Canadá, Austrália, Suíça, e diversos outros demonstram profundo interesse no sistema brasileiro. É claro que podem ocorrer fraudes, como em qualquer dispositivo eletrônico, o que não deve ser um impeditivo de uso, afinal caso assim fosse, ninguém estaria lendo isso. Qualquer movimento neste sentido seria um ataque grave, com um cenário mais provável de anulação das eleições e cooperação externa para auxiliar o país na busca e punição de culpados. Frequente exemplo, os EUA utilizam urnas em alguns estados, mas a maior polêmica sobre fraudes na história recente do país foi justamente na recontagem da Flórida em 2000, onde não havia urnas eletrônicas.  

De toda a forma, o voto impresso poderia servir para dissuadir alguns questionamentos. No entanto, o TSE estimou em R$ 2,5 bilhões a aplicação da ideia. É mais do que o orçamento de alguns ministérios, do que o fundo eleitoral, e pagaria o custo do congresso por cerca de dois anos e meio. Em um cenário em que boa parte dos candidatos concordam nas eleições em estabelecer um ajuste fiscal, seria no mínimo um contrassenso que os mesmos assumissem seus cargos depois de um pleito com um custo injustificavelmente tão alto. 
    Estônia. Governo estima em pelo menos 11 mil horas o tempo poupado com voto digital

Bônus 
Claro, como sempre, teremos os “a mídia não fala disso”, e afins. Aqui, uma seleção do que vi de melhor no Brasil e no mundo nos últimos dias sobre as eleições. 
Brasil 
https://piaui.folha.uol.com.br/marina-silva-sem-voto-e-sem-dinheiro/ 
Fora 
Opinião 
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/27-set-2018/interior/por-20-centavos-9911267.html