quarta-feira, 11 de julho de 2018

A Recessão Geopolítica na África é uma Marolinha

Nas Olimpíadas de 2016, o mundo foi obrigado a voltar suas atenções para a situação dos oromos na Etiópia após o atleta Feyisa Lilesa comemorar com um símbolo que remetia à etnia sua medalha de prata na maratona. À época, o governo etíope reprimiu duramente protestos na região de Oromia, o que levou à morte de centenas de manifestantes que reivindicavam mais atenção do governo central, tradicionalmente dominado por outros grupos étnicos, e a redução de danos causados por obras de infraestrutura. Em meio à Copa de 2018, o mundo se volta novamente para um oromo, mas por razões bem diferentes. 

Abiy Ahmed chegou ao cargo de primeiro-ministro da Etiópia em abril deste ano, e levou grandes esperanças para duas importantes questões no país: a marginalização dos oromos e a questão com a Eritreia. Nesta semana, em visita a Asmara, Ahmed deu fim a um conflito que durava 20 anos contra a antiga região etíope, uma guerra que gerou pelo menos 80 mil mortos e é uma das principais razões que leva eritreus a serem uma das maiores populações de refugiados na atualidade. Outro fator é o governo de Isaias Afewerki, líder do país desde a independência na década de 90, e famoso pela repressão. Há o receio de que a imagem de Afewerki junto ao líder oromo possa ser utilizada para a perpetuação do mesmo no poder, no entanto é difícil imaginar um real empenho da comunidade internacional em uma transição democrática na Eritreia que representasse uma alternativa segura ao líder. 


Outra grande notícia do funcionamento das relações internacionais no continente ocorreu em Gâmbia, que descrevi aqui em 2017, com destaque para a União Africana (UA): “A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. 

O pouco festejo por parte de líderes de países europeus e de Israel, os que mais se queixam da recepção de refugiados eritreus, realça outra questão. A crise migratória é muito menor do que a crise política nestes governos. Caso houvesse real empenho na resolução dos problemas nos países de origem das migrações, o que frequentemente cita-se como a melhor ideia para estancar o fluxo, acordos à exemplo o de eritreus e etíopes seriam mais celebrados, assim como a saída da Yahya Jammeh do poder, um dos grandes responsáveis por Gâmbia ser um dos maiores emissores per capita de imigrantes para a Europa. Mas Orban, Salvini, Seehofer e companhia omitem tais fatos. 

O relatório Freedom House de 2018 confirmou a relevância da transição e atualizou o status de Gâmbia de não livre para parcialmente livre, com o aumento de 21 pontos na escala de 0 a 100, uma das maiores progressões registradas recentemente. À época, mencionei também o retorno do Marrocos à UA e a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, por um tribunal extraordinário africano, como outras boas notícias para o continente.  

Além dos importantes marcos políticos, a UA avançou neste ano a iniciativa de criar um mercado comum dentro da União, assinada por 44 dos 55 membros. Em tempos incertos de guerra comercial envolvendo as principais potências mundiais, o bloco poderia servir como uma segurança para muitos países que ainda têm economias fragilizadas, em grande parte dependentes da exportação de commodities pouco variadas a apenas alguns parceiros comerciais. A união monetária, à exemplo da Zona Euro, é também uma ideia, ainda que distante, vale lembrar que o franco CFA já é uma moeda aplicada em 14 países, e que não são apenas ex-colônias francesas. 

Dois dos mais antigos governos do continente realizaram transições pacificas recentemente. É verdade que se pode argumentar que Zimbábue e Angola permaneceram no domínio dos partidos ZANU e MPLA, respectivamente, que governaram ambos países em praticamente todo o período pós-independência. Ainda assim, o aparelhamento do Estado por Robert Mugabe, que tentou colocar sua esposa, Grace Mugabe na sucessão, e José Eduardo dos Santos, que tinha muitos de seus familiares no comando de estatais, sofreu importantes derrotas. Emmerson Mnangwga chegou ao poder e não deve colocar objeções para a realização de eleições no Zimbábue, e estas provavelmente serão mais ilibadas do que o polêmico pleito de 2008. Por sua vez, João Lourenço em Angola enfrentou parte da elite e deu bons acenos ao exterior, como a reaproximação com Portugal, relação enfraquecida por escândalos de corrupção. 

A África do Sul também realizou importante transição de um governo desgastado. Com democracia mais consolidadas que as outras já citadas, era pouco provável que a sucessão do impopular Jacob Zuma desencadeasse em tragédia. Ainda assim, é válido destacar o fim de um governo há muito tomado pelos escândalos de corrupção. Cyril Ramaphosa, seu sucessor, tem muito o que provar, mas há tempos Zuma pouco fazia além de lutar para permanecer no cargo.  

Termino da mesma forma do texto de um ano e meio atrás. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. O crescimento da violência na República Democrática do Congo, sobretudo na província de Kasai, conta com uma omissão criminosa da comunidade internacional. Os próximos meses no país podem ser decisivos, já que se espera a sucessão de Joseph Kabila. No caso do Brasil, seria válida a atenção para um parceiro e membro da CPLP, que é Moçambique, e que vê um crescimento de extremismo islamista no norte do país. De toda forma, acho sempre válido falar do continente de maneira sensata, madura e não paternalista. Ou seja, para além de filmes da Marvel. Exemplo disso é Israel, com uma aula de Relações Internacionais no continente. Assunto que também trouxe aqui, mas que se intensificou.

                                            
Afewerki e Ahmed. Digno de Nobel da Paz, e pouco badalado, como gosta o Comitê. Não surpreenderia FOTO: Africanews

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Visando inclusão, iniciativa em Portugal alfabetiza crianças em quatro linguagens

Projeto, que conta com braille e língua gestual, poderia ser facilmente implementado no Brasil, segundo criadora

“Cria pontes entre línguas e não deixa nenhuma criança para trás”, foi a descrição do comissário europeu de Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moeda, sobre o EKUI. A iniciativa prevê a alfabetização de crianças por meio de quatro linguagens: manuscrita, braille, língua gestual portuguesa e alfabeto fonético internacional. Sua criadora, Celmira Macedo, afirma que já beneficiou mais de 25 mil pessoas em Portugal desde 2015, e que poderia aplicar seu método no Brasil apenas com uma adaptação à Libras (Linguagem Brasileira de Sinais).

A sigla EKUI refere-se a equidade, conhecimento (em inglês, knowledge), universalidade e inclusão. O principal produto da iniciativa é um baralho com 26 cartas que é utilizado pelos professores para a alfabetização nas quatro linguagens. A criadora afirma que o projeto é único no mundo justamente por esta diversidade.

Macedo aponta: “As barreiras de comunicação existem em vários níveis, por exemplo, quando nascemos com uma deficiência, ou a adquirimos em um acidente e até mesmo quando saímos da escola sem aprender a ler ou escrever. ” Um drama pessoal levou a professora a conhecer de perto os problemas referentes a estas barreiras: “Tive um AVC em 2009, e foi nesta altura que percebi o que é não conseguir me comunicar com o outro. ”

No campo da reabilitação de pessoas com dificuldades comunicativas o EKUI estima 67% dos participantes tiveram melhoras na sua comunicação. O projeto já atendeu diretamente mais de mil alunos, e afirma ter com isso beneficiado pelo menos 25 mil pessoas

O outro âmbito que o programa trabalha é na prevenção, e Macedo aponta suas ambições: “Vamos ensinar todas as crianças a falar na língua gestual, conhecer o braille e desenvolver o fonema. ” A criadora estima que somente em Portugal há 1,5 milhão de habitantes, como pais e amigos de pessoas com dificuldade na comunicação, que enfrentam problemas nesta área, o que corresponde a quase 15% da população do país.

“A formação é de três horas e capacita o professor a ensinar dentro de sala de aula. E depois fazemos mentorias, em que técnicos vão às salas uma vez por mês para verificar se o processo está sendo bem trabalhado e se o professor tem necessidades. ”, afirma a criadora sobre a iniciativa que já formou 1200 professores e é implementada em 112 escolas portuguesas.

O projeto é aplicado no primeiro ciclo português, referente ao ingresso das crianças na escola aos seis, e que tem duração de quatro anos. Macedo trabalhava com alunos desta idade quando começou a perceber o problema da comunicação e as possibilidades de outro método de ensino: “Havia um grupo de crianças especiais, com autismo, síndrome de down, e outros tipos de deficiências. Uma vez em sala de aula, estava mostrando as letras para alfabetizar aquelas crianças, e quando mostrei a língua gestual eles reconheceram. ”

“Depois daquilo tive quase uma epifania. Montei uma espécie de protótipo deste material, e consegui reabilitar aquelas crianças. ”, indica a professora. A partir de 2011, Macedo começou a desenvolver o projeto com apoio de parcerias financeiras, o que culminou no lançamento do EKUI em abril de 2015.

Em 2016, o projeto venceu o prêmio Empreendedorismo Social em Portugal, e desde então acumula reconhecimentos nacionais no ramo. Em evento da comissão europeia sobre inovação social no fim de novembro, a iniciativa era uma das que mais gerava repercussões. Além da importância ressaltada pelo comissário Carlos Moeda, a ministra da presidência portuguesa, Maria Manuel Leitão Marques, elogiou a EKUI na abertura da reunião, que contou com inovadores sociais de todo o mundo.

Com a repercussão do EKUI, sua criadora pensa em expandir a iniciativa. A língua portuguesa gestual é própria do país, mas Macedo não vê grandes dificuldades no processo de expansão: “Há alguns fonemas diferentes dos nossos, mas a adaptação é muito simples. Em 15 dias eu consigo fazer uma adaptação para o inglês. Temos de ter parceiros que queiram entrar neste processo conosco. ” Com o mesmo alfabeto, uma possível versão brasileira demandaria apenas uma adaptação à Libras.

Tema da redação do último ENEM, a integração de deficientes auditivos no meio escolar poderia ser auxiliada com a iniciativa, afirma Macedo: “Há seis anos, em Portugal 70% da comunidade surda saia da escola sem saber o português. Sabiam a língua materna, que nesta comunidade é a gestual, mas não sabia escrever nosso português. Neste aspecto, com o EKUI, estaremos os alfabetizando neste sentido. ”

A professora vê problemas graves decorrentes desta falta de integração: “Sem ler e escrever, estas crianças viram adultos que ficam fechados em suas próprias comunidades.”

O alfabeto do EKUI é vendido por aproximadamente €17, valor que é revertido para expansão da iniciativa: “A cada caixa vendida, produzimos duas. Uma para a sustentabilidade do negócio e uma em doação para escolas. ” A iniciativa é co-financiada pelo programa “Portugal Inovação Social”.


A boa receptividade ao programa de aprendizado pelos alunos gerou um aspecto positivo que surpreendeu até mesmo sua criadora: “Por curiosidade, turmas que por norma, aprenderiam o alfabeto em três meses, tiveram esse tempo reduzido. Como as crianças usam o gestual e acham muito motivante, quando aprendem uma letra já querem saber a seguinte. Isto encurta o processo de aprendizagem por um indicador que é a motivação. ”
                                                            Foto: Reprodução

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Terrorismo: excelente queda, e ainda mais trabalho

O ano de 2017 terminou com uma redução de 46,7% no número de mortos por ataques terroristas frente a 2016. No último ano, 7654 padeceram por esta causa, enquanto foram 14356 no período anterior. Grande parte da queda foi por conta de Grupo Estado Islâmico, ou Daesh, que causou 3321 mortes em 2017, frente a 9340 no ano anterior, uma queda de 65,45%. Apesar disso, grupos como o Talibã e o Al Shabab, este que ganhou notoriedade por conta do maior atentado desde o 11 de setembro, fizeram mais vítimas em 2017 do que no período anterior, e ligam o alerta para 2018.

O ano que se passou marcou em efetivo a queda do autoproclamado califado que o Daesh tentou estabelecer entre a Síria e o Iraque. Com as retomadas de Raqqa e Mossul, suas capitais no primeiro e segundo país respectivamente, o grupo ainda viu áreas importantes em seu poder como a província de Deir ez-Zor serem ocupadas por forças rivais no último ano, deixando seu território restrito a poucas áreas no Levante. Apesar disso, a influência do Daesh na Líbia e na Província do Sinai pouco diminuiu, demonstrando que vácuos de poder podem fazer com que o grupo conquiste territórios. Isso ocorreu em Palmira, que havia sido retomada por forças leais ao exército sírio, e que acabaram voltando às mãos da Daesh. Foi na histórica cidade que o grupo cometeu algumas das maiores destruições ao patrimônio da humanidade. Palmira já foi reconquistada.

No entanto, a guerra contra o Daesh nunca foi habitual. O desmantelamento do califado não deixa de fazer com que o grupo siga relevante, ainda com capacidades operacionais para atacar no Levante e em outras partes do mundo. Um destes alvos pode ser justamente a Rússia, que em 2018 recebe a Copa do Mundo. O país, que sofreu recentemente um atentado no metrô de São Petersburgo, viu muitos de seus nacionais, sobretudo de regiões com grandes populações islâmicas como a Chechênia e Daguestão, rumarem ao Levante para integrar as fileiras do Daesh. Grande parte dos sobreviventes do exército do grupo é composta por estrangeiros, que podem retornar aos seus países de origem no intuito de cometer ataques. Além do terror jihadista, a Rússia também pode ser alvo de grupos nacionalistas, como os partidários da independência chechena, que já atacaram o país em outros tempos, sendo este um dos alertas principais para 2018.

Lisboa recebeu neste ano Boaz Ganor, israelense e uma das principais referências mundiais sobre terrorismo. Ganor foi a principal presença da III Conferência Internacional de Terrorismo, e na ocasião, além de muitos detalhes técnicos preciosos obtidos com anos de trabalho e análise na prevenção de ataques, o israelense apresentou o que chama de fórmula para o terrorismo: motivação x capacidade operacional = atentado.
Nenhum outro país no mundo diminuiu tanto a capacidade operacional de possíveis terroristas nas últimas décadas como Israel. Quando em 2015, alguns analistas acreditavam que os ataques de lobos solitários com atropelamentos haviam sido uma invenção do terror na Europa, Israel já lidava com este estilo de problema há anos, inclusive desenvolvendo soluções efetivas de dissuasão. No entanto, como se sabe, em poucos lugares potenciais terroristas possuem tanta motivação para atacar quanto em território israelense, ou a forças de segurança do país na Palestina ocupada. E 2017, definitivamente, não foi um ano que amenizou tal motivação.

Reduzir a capacidade operacional de grupos terroristas como Daesh, Talibã, Al Shabab, ou Al Qaeda da Península Arábica, com ataques que deixam destruição e vítimas civis pode amenizar uma parte da equação, mas em contrapartida eleva a outra. Matar jihadistas sem atacar o jihadismo é como enxugar gelo, mas com um custo de enorme derramamento de sangue. Quando se lembra ainda que a prevenção ao terrorismo é um eterno embate entre segurança e preservação de liberdades individuais, tem-se uma noção melhor do desafio.
Cheguei à Lisboa um mês depois do atentado em Barcelona. Com muitos portugueses com quem conversei, a sensação de que "somos os próximos” era iminente. E infelizmente, os mesmos, e agora eu, temos muito a temer.

Como dito incessantemente após os atentados em Paris e Barcelona, estes são lugares que celebram a vida, o que terroristas odeiam. Lisboa também é um destes lugares. Para além disso, nos ataques à Espanha os jihadistas falaram na retomada do califado. E de fato, a região de al-Andaluz, tendo Córdoba, na Andaluzia, como capital compreendia a Espanha, mas também Portugal. O país, que cada vez recebe mais turistas e prêmios no ramo, é um alvo que sentiria sensivelmente com um ataque. Vale lembrar que parte deste bom momento vem justamente por conta de pessoas que deixaram visitar o Norte da África com receio do terrorismo. Para além, Portugal é membro da OTAN, e contribui com muitas das missões rechaçadas por jihadistas. A motivação é grande, e não há muito o que se fazer quanto a isso. Cabe reduzir a capacidade operacional.

Neste aspecto, acredito que a capital portuguesa vem fazendo bom trabalho. A melhor prova é disso é quando estou em uma região como a extremamente turística, e, portanto, visada Belém. Costumo perguntar às pessoas se estão a perceber o aparato anti-terrorista que está ali montado. Fico muito feliz com as respostas: “Não.” “O quê?” “Onde?”. Além do nível de policiamento bastante incomum em outras zonas, Belém conta, por exemplo, com blocos de concreto simples, mas que têm capacidade de impedir muitos ataques de possíveis lobos solitários. Segurança, e sem diminuir as liberdades individuais. Ainda assim, vejo muitas falhas e possíveis alvos. No entanto, acredito que poucas cidades do mundo que nunca passaram pela experiência de um ataque terrorista moderno consigam ter um aparato com tamanha segurança. Como exemplo o Rio de Janeiro durante as Olimpíadas, que reforcei como possível alvo, e elogiei o esquema montado. Haviam também importantes lacunas, que não se verificam uma cidade como Jerusalém ou Nova Iorque.

Tratando sobre terrorismo em 2017, é digno nota sobre o curioso caso de inversão do fenômeno da indignação seletiva durante um dos muitos atentados do Al Shabab. Em outubro, uma ação do grupo, que matou 964 pessoas apenas em 2017, deixou 512 mortos. Na ocasião, muitos nas redes sociais prestaram atenção por pouco mais de uma semana na Somália, e alguns perceberam até mais do que as ações da afiliada local da Al Qaeda, e que é apenas mais uma das diversas milícias que agem no país, falido e em guerra desde 1991. Isso sem citar desastres humanitários próximos, como o de Dadaab, campo de refugiados para pessoas que fogem desta tragédia. Acontece que apenas em um período de dez dias que engloba esta ação, outras 255 pessoas morreram em atentados em locais que permaneceram longe das redes sociais como Kandahar e Maiduguri. Ironicamente, o questionamento da indignação seletiva com à atenção na Somália no #PrayForSomalia, assim como Londres e Paris em outros momentos, ofuscou outras grandes tragédias. Para quem já se acostumou com a incongruência na cobertura de ataques, não surpreende, mas ainda assim, vale o registro.

Para além da grande redução no número de mortos em atentados, 2017 reservou outra excelente notícia. O período foi o mais seguro da história da aviação. "Em 71 anos, foram 3.180 acidentes com voos comerciais, de carga e de passageiros, e 82.412 mortos.", como trouxe reportagem da BBC. É quase o que se morre a cada 2 anos em acidentes de carro, apenas no Brasil. A relação que faço, é que assim como a percepção sobre a segurança na aviação é extremamente irracional, o mesmo ocorre com o terrorismo. Para além de grandes heróis, declarações políticas, e o que tiver grande repercussão em ambos os casos, quem faz a real diferença são trabalhadores sérios, competentes, e que não podem falhar. Eu acrescentaria outra fórmula à do grande especialista israelense: mais Boaz Ganor, menos #PrayFor.


Obs: Todos os números são da plataforma START, referência na área e fundamental para acompanhar o terrorismo com parcimônia e a razoabilidade necessárias. Neste momento, 2018 já registra 13 ataques e 38 mortes. https://storymaps.esri.com/stories/terrorist-attacks/?year=2018

START. Ótimo amigo para quem quer entender o terrorismo além do #PrayFor

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Estamos preparados para chegar 2018?

Durante as eleições autárquicas, o que mais me chamou a atenção foi o pragmatismo das propostas durante a campanha, em especial para as juntas de freguesia. No Brasil o que há de mais semelhante a essa esfera são as sub-prefeituras, inexistentes na maior parte dos municípios. Na ocasião, partidos de espectros políticos diferentes para grandes causas, como o Bloco de Esquerda e o CDS, propunham ações práticas, como a reforma de uma praça, ou a criação de um grupo de atividades esportivas para idosos. Ao meu ver, são apenas propostas políticas positivas. No Brasil de hoje, acredito que tentariam rotulá-las no eixo direita-esquerda, como vêm se deturpando as definições com uma criatividade impressionante.

O propósito das juntas de freguesia funciona muito bem. Pessoas próximas às suas comunidades são eleitas, e desenvolvem uma política bastante compreensiva com as necessidades da região. Assim, juntas de freguesia com programas mais competentes são premiadas, criando um sentido de competição positivo. Melhores gestões acabam por atrair mais investimentos, em um ciclo virtuoso no qual todos saem ganhando. A minha junta, por exemplo, é referência nacional em sustentabilidade. Sei disso por ler o jornal da JFC (Junta de Freguesia de Campolide). Sim, sou apaixonado pela ideia.

Logo pensei: “Pronto, tá ai um modelo que pode elevar a participação política e aproximar os moradores de quem toma decisões no Brasil” (como escrevi aqui). Mas infelizmente, é bem mais complexo do que isso. E é o que quero tratar visando 2018. Surgirão uma infinidade de boas ideias no papel, com pessoas se dizendo de fora da política tradicional tendo uma nova visão, e que vão aparentar ter inventado a roda. A triste realidade é que provavelmente a ideia já foi implementada de outras maneira, talvez já exista, ou simplesmente as consequências não tenham sido analisadas com a parcimônia necessária. Como diria o professor Paulo Roberto Figueira Leal, “Em política, não existe receita de bolo”. E acompanhar isso é uma eterna desilusão.

O Brasil já buscou na prática o mesmo ciclo virtuoso proporcionado pelas juntas de freguesia. Em 1985, o país possuía 3.992 municípios, número que em 2000 aumentou 40%, chegando a 5.507. Ao invés de criar soluções, motivos como a falta de fiscalização e a arrecadação tributária excessivamente voltada à esfera federal, fizeram com que centenas de cidades passassem a existir com administrações incompetentes, e a um altíssimo custo de dinheiro público. E diferencio preço de custo mais uma vez. O valor da corrupção nestas prefeituras, e não apenas da mesma, mas também de funcionários ineficientes contratados pode até ser mensurado. O que isso custa quando a mesma verba poderia ter sido destinada a um hospital sem equipamentos, ou a uma escola básica precária, já é impossível de se medir.

Alexandre Versignassi, economista, e um verdadeiro poço de bom senso no Brasil de hoje, foi um dos poucos que li na esfera pública a aventar a seriedade do problema. Seu texto “Não adianta pintar a casa. Ela vai continuar caindo” é uma aula sobre os problemas estruturais do país, que não serão resolvidos a despeito dos resultados das eleições do ano que vem.

“Não que número de municípios em si seja um problema. A Alemanha tem 11 mil. A diferença é que, lá, eles existem 407 distritos administrativos para controlar a grana que vai para as cidades. Aqui não. Cada uma tem todo o maquinário administrativo instalado – estrutura que acaba servindo ao mesmo tempo como cabide de emprego e como aquela varinha de condão que transforma dinheiro de merenda em Hilux de vereador e L200 de assessor de porra nenhuma.”, resume, com sua linguagem clara característica. Não sou especialista, mas qualquer um que já tenha analisado com razoabilidade as contas públicas de um município pequeno, e que conheça processos licitatórios, ao mínimo não cai na bravata de que “o problema do Brasil tá em Brasília.”

No ano passado, abordei quase 50 pessoas nas ruas de maneira aleatória, tentando seguir o padrão populacional do IBGE, com o intuito de realizar uma pesquisa que buscava compreender a relação do consumo de mídia e as visões políticas no Brasil. A experiência mostrou-me um padrão nas percepções de competência do cidadão comum (a grande maioria não procurava por política no Facebook). O que ouvi acabou, em certa parte, sendo confirmado em pesquisa da fundação Perseu Abramo no começo deste ano. Em sua maioria, o brasileiro acredita que as responsabilidades do que lhe está próximo são de competência da prefeitura. Já nos casos mais afastados é culpa da presidência. O legislativo é eximido de culpa, assim como os importantíssimos governos estaduais. Muitos não sabiam dizer sequer quem era o atual governador de Minas Gerais. Sendo mais honesto, a maioria apontava o “eu sei quem é, mas agora não tô lembrado”, que ganharia qualquer eleição no Brasil.

As minhas amadas juntas de freguesia iriam no mesmo caminho. Mais um órgão público consumindo recursos, que por conta da arrecadação tributária, teriam de receber repasses da União, e que provavelmente acabaria como cabide de empregos e mais corrupção. A proximidade com a população serviria para que as pessoas votassem em mais conhecidos sem analisar propostas, como já ocorre em boa parte dos casos das eleições para vereador.

O previsível fracasso das minhas juntas representa algo muito maior. O Brasil tem problemas estruturais gravíssimos, e 2018 será palco perfeito para demagogos proporem soluções simples a problemas extremamente complexos. Desconfie sempre da frase “O problema do Brasil é (insira aqui)”. Não tenho as respostas para o Brasil. Mas sei perguntas fundamentais que devem ser feitas, e que, infelizmente, estão perdendo espaço por discussões sobre a validade de piadas e clipes. Feliz, e preocupante, 2018.
Vista do aqueduto na JFC. Ok, a cerveja na associação de moradores também é muito barata
FOTO: Site Idealista

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Como saber as capitais mundiais foi útil para mim

Saber todas as capitais do mundo para mim sempre foi um objetivo, mas não imaginava que o conhecimento pudesse ir além de um hobbie. Com o tempo, vieram algumas divertidas competições e os clássicos desafios na escola em que os amigos se juntavam para testar até onde chegava aquilo. Não pensava que algo hoje resolvido com uma pesquisa de dez segundos em um smartphone chegasse a ter alguma relevância.


Até então, meu contato com estrangeiros se resumia a alguns países bem conhecidos. Realmente, não há muito valor em começar uma conversa perguntando a um argentino se o mesmo era natural de Buenos Aires, ou a um espanhol se este vinha de Madri. Mas em alguns casos, e não são poucos, isso pode mudar tudo.


Entrevistei nesta segunda-feira Gérard Niyondiko, criador de um sabonete que serve como repelente à malária em Burkina Faso, país localizado no Centro-Oeste da África. Niyondiko viu morrer seis de seus 12 irmãos por conta da doença, que é a principal causa de mortes em sua região. A importância do produto ser um sabonete, e não, por exemplo, as redes protetoras contra mosquitos, é que o sabão já faz parte da cultura popular, com cerca de 95% das pessoas o utilizando. A expectativa é que sua invenção salve cerca de 100 mil vidas até 2020.


Apesar do enorme feito, Niyondiko começou a conversa em um misto de hesitação e humildade, esta que lhe é característica e torna a figura do jovem químico ainda mais fantástica. Ao entrarmos no centro de imprensa, acanhado, o químico me perguntou se poderíamos realmente estar ali e se desculpou por seu inglês. Então logo perguntei se ele vinha de Ouagadougou, capital de Burkina Faso, o que gerou certa surpresa, e mudou o rumo da conversa.


Niyondiko me perguntou se eu já havia estado na cidade, e me disse que na verdade ele não era original de Burkina Faso, mas do Burundi, e logo desandou a contar sua brilhante trajetória com muito mais desenvoltura. Na terça-feira, aos nos despedirmos, o já bem menos hesitante inventor me convidou a visitar Ouagadougou, e que quando o fizesse deveria entrar em contato com o mesmo.


Em conversas informais o conhecimento pode ser ainda mais relevante. Uma das primeiras pessoas com quem conversei em Portugal era azeri. Quando a perguntei se vinha de Baku, ela logo exclamou “Oh, mas você conhece Baku. Ninguém aqui sabe o que é.”, e daí começamos a falar sobre a “Terra do Fogo”, alcunha que, confesso, conhecer com grande ajuda do Atlético de Madrid.


Não é aleatório começar uma conversa com alguém original de um país menos relevante no cenário internacional com sua capital. Em um caso como o uruguaio, em que nós no Brasil podemos ter como conhecimento comum que a capital é Montevidéu, a informação não é tão difundida em países mais longínquos. Tendo em vista que a capital tem quase 50% da população do país, concentra grande parte das pessoas com poder aquisitivo para estar no exterior, ou ao menos é um ponto de referência para um cidadão que trabalhou lá, a chance da menção à cidade causar um efeito positivo é grande. No caso de turistas, ao menos pelo aeroporto da capital o mesmo deve passar.


E assim meu conhecimento, que eu mesmo considerava um tanto quanto obsoleto na era dos smartphones, e na qual o Google deu cabo às boas discussões, vem me ajudando. Que a cerveja de 0,5L por € 1 me permite lembrar, assim já foram conversas com pessoas desde a Guiné-Bissau à Eslovênia, indo por Lituânia a Cabo-Verde, dentre outros. Em um mundo de mudanças constantes em que habilidades tornam-se dispensáveis com a invenção de um novo aplicativo, vale sempre refletir sobre o questionamento do poeta norte-americano T.S. Eliot “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”

Gérard, "O Cara". Espero poder ter minhas dicas de Lisboa retribuídas em visita à sua Ouagadougou, que segundo o mesmo, é mais fácil de se chegar do que eu pensava. (FASO SOAP)

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Lições para o Brasil de uma eleição portuguesa

Não era preciso cruzar o Atlântico e ouvir dos principais jornais para constatar a obviedade: O Brasil não está muito interessado no resultado previsível das eleições autárquicas de Portugal. O pleito, em parte equivalente ao que há no Brasil para as eleições municipais, reforçou o PS no poder, frente a um enfraquecimento do PSD, o que levou o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho a renunciar à liderança do partido. O que isto muda na prática para o resto do mundo? Pouco. Qual o espaço que a notícia leva ao ocorrer no mesmo dia do atentado em Las Vegas e da escalada de violência na Catalunha? Os próprios portugueses, que ainda se dividiam entre o clássico Sporting x Porto, tiveram dificuldades em responder.

Mas o que mais chama a atenção nas eleições autárquicas, para alguém como eu, fica longe das principais manchetes, ou do suntuoso palácio do PS na região central de Lisboa em que acompanhei parte do dia da votação. Fica a, segundo o Google Maps (principal meio de transporte em terras lusitanas), preciso 1 km do palácio em que dezenas de jornalistas aguardavam uma palavra do primeiro-ministro, António Costa, que desembarcou com seu motorista em um carro luxuoso. Na tradicional Padaria do Povo, uma cooperativa regada à Sagres, Superbock, bifanas, pregos e outras deliciosas iguarias portuguesas bem menos divulgadas que o bacalhau, o PURP - Partido Unido dos Reformistas e Aposentados, havia combinado de se encontrar para acompanhar a apuração dos votos.

O PURP foi fundado em 2015, após a reunião de aposentados em um grupo de Facebook. Para angariar as 7 mil assinaturas necessárias, o grupo de senhores foi às ruas, e conseguiu ultrapassar a marca em mais de mil, grande parte destas em ambientes universitários. Hoje o partido, que não tem direito as contribuições de campanha, se sustenta com uma verba de €1 mensal por membro. Para a as autárquicas, o PURP gastou apenas €500, estes para financiar algumas bandeiras e os panfletos.

No total, as campanhas para os 309 municípios portugueses custou €38 milhões. O pleito envolve as câmaras municipais, as assembleias, e as juntas de freguesia. Para se ter um efeito de comparação, um candidato à Prefeitura de São Paulo no ano passado tinha a possibilidade legal de gastar até R$ 44 milhões. Parte importante dos €38 milhões em Portugal foram utilizados em comícios e grandes outdoors pelos maiores partidos. Mas nem por isso menores como PURP, que fez sua campanha com um grupo de cinco ou seis idosos caminhando horas por dia no sol de Lisboa, frequentemente em um calor superior aos 30°, ou o Nós, agremiação um pouco maior e com estratégia semelhante, deixaram de ter seus espaços.

Em comum aos grandes e pequenos partidos, uma palavra me chamou atenção: pragmatismo. Enquanto nas eleições municipais do ano passado no Brasil candidaturas menores expressavam-se em temas fora das alçadas do âmbito municipal, e algumas até mesmo do Estado, como uma luta transnacional contra o capital, em Portugal as propostas centram-se em resolver os problemas do dia-a-dia das pessoas. Neste ano, como não poderia deixar de ser, o grande foco foi a habitação. O boom do turismo vem gerando um problema de gentrificação para os portugueses. Em Porto, do ano passado para cá, o aluguel médio de um quarto aumentou 40%, chegando a €270, situação que é ainda pior em Lisboa. Levando em conta que este é um país com um grande número de jovens ainda desempregados, apesar da recuperação econômica, e em que muito aposentados recebem menos de €500 ao mês, a situação se apresenta como urgente, e muitos já estão sendo obrigados a deixar suas atuais casas. Nesta toada, o Airbnb anunciou que na alta temporada de 2017, com relação a do ano passado, seu número de reservas em Portugal aumentou 52%.

As propostas para habitação foram o principal foco na campanha do Bloco de Esquerda, partido importante, mas minoritário no cenário nacional. As ideias passavam por possíveis soluções realistas, que aceitavam a importância do turismo sem demonizar o mesmo. Dentre estas, está, por exemplo, a limitação no número de alojamentos disponíveis para aluguéis de curta duração em cada junta de freguesia, o que limitaria, em tese, a gentrificação, e diluiria o problema. Confesso não fazer ideia se na prática o plano é bom, mas me parece uma proposta sensata, e que tem seu valor a ser debatido.

Para quem trabalhou com fact-checking na última eleição, poucas propostas são mais frustrantes do que as voltadas à “fomento, desenvolvimento, incentivo”, e as demais generalidades afloradas a cada campanha. Por aqui, as pragmáticas propostas envolvem desde a solução para praças específicas, a demandas muito claras como o investimento em programas sociais delimitados. E isso em todas as esferas, passando pelas juntas de freguesia (que podem representar um bom modelo para o Brasil), até ao cargo máximo da presidência da câmara.

Em Portugal, as agremiações já atendem à tendência global de suplantar o espectro direita-esquerda, e as hierarquizações partidárias. Parte importante das siglas mais novas já não utilizam a nomenclatura de partido, e até mesmo o PAN, que tem, por exemplo, um homônimo mexicano, por aqui representa o “Pessoas, Animais e Natureza”, algo como os “verdes”, comuns na Europa. Estes que, demonstram uma evolução importante frente ao limitado espectro “direita-esquerda”, que toma conta de parte das auto intituladas “discussões” e “polêmicas” no Brasil.

Nem tudo são flores. A participação política por aqui é bastante carente, e os questionamentos à classe são os mesmos do Brasil, e de qualquer outro lugar do mundo: “só pensam neles mesmos”, “não ligam para o povo”, “só aparecem para a eleição”. Na própria Padaria do Povo, o PURP sofreu um revés: as três televisões do local estavam ligadas no clássico Sporting x Porto. O governo chegou até mesmo a tentar impedir que partidas fossem realizadas em dias de votação, visando limitar a abstenção, que foi superior a 50%. Eu logo me rendi ao pragmatismo local, peguei uma Sagres e acompanhei o final do modorrento 0x0.

A bandeira da foto foi pintada pela esposa do Fernando à esquerda, que é brasileira de Porto Alegre. PURP é uma das histórias mais interessantes que encontrei neste país