terça-feira, 2 de outubro de 2018

Pesquisas, partidos, urnas, e alguns fatos

As fake news são o sintoma mais claro de um clima de desinformação generalizada, e que ganhou grande contribuição por conta das redes sociais. Mentiras devem ser combatidas, mas as “meias verdades” também podem ter um efeito bastante negativo. Nestes casos, o principal deve ser seguir o lema para o caderno do britânico Guardian sobre opinião: “A opinião é livre, mas os fatos são sagrados.” Pesquisas, números de partidos junto a congressistas, e sistema de voto são alguns dos assuntos com mais opiniões de bases pouco sólidas que povoam o atual clima eleitoral no Brasil. 

As pesquisas nos Estados Unidos e no Brexit não erraram. Se isso ocorreu, foi em efeito bem diminuto perto do propagado. Para a complexa missão de acertar os resultados do voto popular nos EUA, as sondagens conseguiram excelentes participações. Hillary Clinton venceu com pouco mais de 2% na contagem nacional, o que ficou dentro das margens de erro de 3% prevista por quase todos os institutos. Acontece que, pelo sistema de votação norte-americano, prever o resultado da eleição nacional pode ser tão útil para saber o vencedor do pleito quanto acertar quem ganha um concurso de comer cachorros-quentes, apesar da pífia insistência de democratas em contestar isso. O que vale são os estados, em especial os sem domínios tradicionais, os chamados swing-states 

E nestes casos, quase todos apontavam para um empate dentro da margem de erro. No principal deles, a Flórida, não verifiquei nenhuma sondagem duas semanas antes das eleições que apontasse uma diferença maior do que 1,5% dos votos para nenhum candidato, o que representa cenário de absoluta indefinição. O estado com maior discrepância no resultado foi Michigan, onde o excelente Guga Chacra apontou dificuldades nos institutos de pesquisa, mas que não representa um número de delegados para mudar o presidente do país. Ou seja, menos de 2% das pesquisas no país, que reserva um dos trabalhos mais inglórios por seu sistema de votação, podem ser questionadas.  

Aqui, Chacra faz um levantamento e também aborda sobre o Brexit. No caso do Reino Unido, notório por suas campanhas curtas, boa parte das sondagens foi realizada em meio à comoção pelo atentado terrorista que vitimou a deputada trabalhista Jo Cox, ardorosa na campanha do “remain”. Assim, a pequena diferença na votação final, de 2%, anteriormente era apontada nas pesquisas com uma vantagem minúscula para a permanência, ainda dentro da margem de erro. Vale lembrar que a votação foi marcada por expressivas diferenças climáticas, nomeadamente fortes chuvas em Londres, entre os locais de maior votação para apoiadores e contrários ao Brexit, o que foge à influência de qualquer pesquisa eleitoral. 

O caso dos EUA é usado frequentemente para criticar o alto número de partidos no Brasil. No entanto, pouco é lembrado que o bipartidarismo no país é obra em grande parte do seu sistema de eleição distrital. Desde partidos com causas pouco afeitas ao eleitorado em geral, como o proibicionista à época que antecedeu à aprovação da “lei seca”, e até uma legenda dominada pela KKK, os norte-americanos também contam com inciativas de mais apoio, como verdes e libertários. O ex-prefeito de Nova Iorque Michael Bloomberg chegou a cogitar seriamente uma candidatura independente na última eleição, o que poderia levar a um questionamento maior do modelo. No último pleito, apenas três candidaturas conseguiram registrar cédulas em todos os 50 estados, o que demonstra a dificuldade de concorrer sem o apoio de um grande partido. Um dos dois senadores independentes na atual legislatura Bernie Sanders, preferiu se filar aos democratas para a disputa, e foi derrotado nas primárias.  

O Brasil tem um número destacado de partidos, 35, mas chama a atenção a quantidade destes representados no congresso, e com financiamento. Com aproximadamente de 5% a população brasileira, Portugal conta com cerca de 25 legendas (algumas estão em avançado processo de criação). Para se criar um partido no país é simples, demanda apenas o recolhimento de 7500 assinaturas. No entanto, para conseguir financiamento, a agremiação necessita de eleger um deputado para a Assembleia da República, ou a difícil soma de 50 mil votos. Assim, é compreensível que apenas sete destas legendas estejam atualmente no parlamento. Trouxe um pouco desta situação nesta reportagem na Piauí. 

As cláusulas de barreira ajudam a explicar boa parte do fenômeno brasileiro, e provavelmente as alterações realizadas de maneira progressiva no sistema do país irão auxiliar no pulverizado cenário. A porcentagem de ao menos 5% dos votos para conseguir entrar no parlamento é bastante difundida internacionalmente, e costuma fazer vítimas de relevância. A Turquia, por sua vez, adota o corte em 10%, o que dificulta que partidos à exemplo do HDP, agremiação minoritária curda, cheguem ao parlamento, o que demonstra a importância de parcimônia na cláusula. 

Somando câmara alta e baixa do congresso brasileiro, chegamos ao número de 594 parlamentares. Portugal, com 5% da população, tem 230. Com seus cerca de 80 milhões de habitantes, a Alemanha tem a peculiaridade de um número variável de membros no Bundestag, que chegou ao recorde de 709 parlamentares na atual legislatura. Na Espanha, para a população de cerca de 40 milhões de pessoas, há 350 congressistas. No geral, a proporção brasileira fica abaixo da maioria das democracias consolidas. Com frequência, um bom argumento utilizado é o de que o Senado dos EUA conta com dois parlamentares por estado, frente aos três brasileiros. É fato, mas o sistema bicameral é difícil de encontrar parâmetros. No caso italiano, a alta casa conta com 320 membros, e o país rejeitou em 2016, num referendo, mudanças para diminuir isto. Na Câmara dos Lordes, o número, variável, está atualmente em 760. Ou seja, em todo o caso, o que destoa e preocupa no Brasil não é o número, mas o custo por parlamentar, o que é explicitado por uma série de levantamentos. Assim como este, outro valor no qual o Brasil se destaca é o de financiamento de campanha. Apenas no fundo eleitoral para as atuais eleições, cada partido teve como base quase um milhão de reais, mesmo sem nenhuma representação no parlamento, o que encontra poucos paralelos no mundo.  

Há um ano fui apresentado na Web Summit ao projeto digital da Estônia pelo primeiro-ministro do país, Juri Ratas, e uma série de altos membros do governo. Dentre os notáveis avanços que levaram ao apelido de E-Estonia, está o i-Voting, utilizado desde 2005, e que em 2007 foi responsável pela Estônia celebrar as primeiras eleições parlamentares com votos online no mundo. O pequeno país de 1,3 milhões de habitantes é membro da OTAN, e está em frequentes tensões com a Rússia, que é acusada ao longo dos últimos dois anos de interferência em processos eleitorais ao redor do planeta. Os estônios têm plena confiança no que é feito no país em termos de democracia digital, daí não posso deixar de demonstrar um pouco de perplexidade com o que ouço no Brasil. 

Para além das fake news, mais de 30 países utilizam urnas eletrônicas, dentre eles Canadá, Austrália, Suíça, e diversos outros demonstram profundo interesse no sistema brasileiro. É claro que podem ocorrer fraudes, como em qualquer dispositivo eletrônico, o que não deve ser um impeditivo de uso, afinal caso assim fosse, ninguém estaria lendo isso. Qualquer movimento neste sentido seria um ataque grave, com um cenário mais provável de anulação das eleições e cooperação externa para auxiliar o país na busca e punição de culpados. Frequente exemplo, os EUA utilizam urnas em alguns estados, mas a maior polêmica sobre fraudes na história recente do país foi justamente na recontagem da Flórida em 2000, onde não havia urnas eletrônicas.  

De toda a forma, o voto impresso poderia servir para dissuadir alguns questionamentos. No entanto, o TSE estimou em R$ 2,5 bilhões a aplicação da ideia. É mais do que o orçamento de alguns ministérios, do que o fundo eleitoral, e pagaria o custo do congresso por cerca de dois anos e meio. Em um cenário em que boa parte dos candidatos concordam nas eleições em estabelecer um ajuste fiscal, seria no mínimo um contrassenso que os mesmos assumissem seus cargos depois de um pleito com um custo injustificavelmente tão alto. 
    Estônia. Governo estima em pelo menos 11 mil horas o tempo poupado com voto digital

Bônus 
Claro, como sempre, teremos os “a mídia não fala disso”, e afins. Aqui, uma seleção do que vi de melhor no Brasil e no mundo nos últimos dias sobre as eleições. 
Brasil 
https://piaui.folha.uol.com.br/marina-silva-sem-voto-e-sem-dinheiro/ 
Fora 
Opinião 
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/27-set-2018/interior/por-20-centavos-9911267.html   

quarta-feira, 11 de julho de 2018

A Recessão Geopolítica na África é uma Marolinha

Nas Olimpíadas de 2016, o mundo foi obrigado a voltar suas atenções para a situação dos oromos na Etiópia após o atleta Feyisa Lilesa comemorar com um símbolo que remetia à etnia sua medalha de prata na maratona. À época, o governo etíope reprimiu duramente protestos na região de Oromia, o que levou à morte de centenas de manifestantes que reivindicavam mais atenção do governo central, tradicionalmente dominado por outros grupos étnicos, e a redução de danos causados por obras de infraestrutura. Em meio à Copa de 2018, o mundo se volta novamente para um oromo, mas por razões bem diferentes. 

Abiy Ahmed chegou ao cargo de primeiro-ministro da Etiópia em abril deste ano, e levou grandes esperanças para duas importantes questões no país: a marginalização dos oromos e a questão com a Eritreia. Nesta semana, em visita a Asmara, Ahmed deu fim a um conflito que durava 20 anos contra a antiga região etíope, uma guerra que gerou pelo menos 80 mil mortos e é uma das principais razões que leva eritreus a serem uma das maiores populações de refugiados na atualidade. Outro fator é o governo de Isaias Afewerki, líder do país desde a independência na década de 90, e famoso pela repressão. Há o receio de que a imagem de Afewerki junto ao líder oromo possa ser utilizada para a perpetuação do mesmo no poder, no entanto é difícil imaginar um real empenho da comunidade internacional em uma transição democrática na Eritreia que representasse uma alternativa segura ao líder. 


Outra grande notícia do funcionamento das relações internacionais no continente ocorreu em Gâmbia, que descrevi aqui em 2017, com destaque para a União Africana (UA): “A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. 

O pouco festejo por parte de líderes de países europeus e de Israel, os que mais se queixam da recepção de refugiados eritreus, realça outra questão. A crise migratória é muito menor do que a crise política nestes governos. Caso houvesse real empenho na resolução dos problemas nos países de origem das migrações, o que frequentemente cita-se como a melhor ideia para estancar o fluxo, acordos à exemplo o de eritreus e etíopes seriam mais celebrados, assim como a saída da Yahya Jammeh do poder, um dos grandes responsáveis por Gâmbia ser um dos maiores emissores per capita de imigrantes para a Europa. Mas Orban, Salvini, Seehofer e companhia omitem tais fatos. 

O relatório Freedom House de 2018 confirmou a relevância da transição e atualizou o status de Gâmbia de não livre para parcialmente livre, com o aumento de 21 pontos na escala de 0 a 100, uma das maiores progressões registradas recentemente. À época, mencionei também o retorno do Marrocos à UA e a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, por um tribunal extraordinário africano, como outras boas notícias para o continente.  

Além dos importantes marcos políticos, a UA avançou neste ano a iniciativa de criar um mercado comum dentro da União, assinada por 44 dos 55 membros. Em tempos incertos de guerra comercial envolvendo as principais potências mundiais, o bloco poderia servir como uma segurança para muitos países que ainda têm economias fragilizadas, em grande parte dependentes da exportação de commodities pouco variadas a apenas alguns parceiros comerciais. A união monetária, à exemplo da Zona Euro, é também uma ideia, ainda que distante, vale lembrar que o franco CFA já é uma moeda aplicada em 14 países, e que não são apenas ex-colônias francesas. 

Dois dos mais antigos governos do continente realizaram transições pacificas recentemente. É verdade que se pode argumentar que Zimbábue e Angola permaneceram no domínio dos partidos ZANU e MPLA, respectivamente, que governaram ambos países em praticamente todo o período pós-independência. Ainda assim, o aparelhamento do Estado por Robert Mugabe, que tentou colocar sua esposa, Grace Mugabe na sucessão, e José Eduardo dos Santos, que tinha muitos de seus familiares no comando de estatais, sofreu importantes derrotas. Emmerson Mnangwga chegou ao poder e não deve colocar objeções para a realização de eleições no Zimbábue, e estas provavelmente serão mais ilibadas do que o polêmico pleito de 2008. Por sua vez, João Lourenço em Angola enfrentou parte da elite e deu bons acenos ao exterior, como a reaproximação com Portugal, relação enfraquecida por escândalos de corrupção. 

A África do Sul também realizou importante transição de um governo desgastado. Com democracia mais consolidadas que as outras já citadas, era pouco provável que a sucessão do impopular Jacob Zuma desencadeasse em tragédia. Ainda assim, é válido destacar o fim de um governo há muito tomado pelos escândalos de corrupção. Cyril Ramaphosa, seu sucessor, tem muito o que provar, mas há tempos Zuma pouco fazia além de lutar para permanecer no cargo.  

Termino da mesma forma do texto de um ano e meio atrás. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. O crescimento da violência na República Democrática do Congo, sobretudo na província de Kasai, conta com uma omissão criminosa da comunidade internacional. Os próximos meses no país podem ser decisivos, já que se espera a sucessão de Joseph Kabila. No caso do Brasil, seria válida a atenção para um parceiro e membro da CPLP, que é Moçambique, e que vê um crescimento de extremismo islamista no norte do país. De toda forma, acho sempre válido falar do continente de maneira sensata, madura e não paternalista. Ou seja, para além de filmes da Marvel. Exemplo disso é Israel, com uma aula de Relações Internacionais no continente. Assunto que também trouxe aqui, mas que se intensificou.

                                            
Afewerki e Ahmed. Digno de Nobel da Paz, e pouco badalado, como gosta o Comitê. Não surpreenderia FOTO: Africanews