Sim,
esta é uma era de notícias falsas. Mas não é a única. O que é inédito em nosso
tempo é a forma na qual clichês ganharam força para se propagar e explicar
fenômenos extremamente complexos. O grande caso é a eleição de Trump. Thomas
Friedman, colunista do New York Times,
provou isto com “A Road Trip Through Rising and Rusting America”. É um relato no
qual grande parte dos chavões que serviram para explicar a eleição do novo
presidente dos EUA foi desmitificada. A ideia de que o país é hoje separado
entre as costas liberais e desenvolvidas e o centro atrasado é reducionista.
Uma das conclusões da viagem.
As
pesquisas erraram mais na França do que nos EUA. Clinton venceu no voto
popular, o que era previsto pelos institutos. A vitória de Macron por 66% foi
seis pontos acima do previsto, portanto, acima da margem de erro. Mas o sistema
norte-americano prevê a eleição por colégio eleitoral, ou seja, 50 pesquisas
paralelas deveriam ser realizadas. E a imensa maioria acertou dentro da margem
de erro, com exceção de Michigan, que tinha problemas nas amostras, o que foi
alertado o tempo todo pelo excelente Guga Chacra. Variando de acordo com a
base, dá para se dizer que menos de 2% das pesquisas dos EUA erraram. Valor
irrisório perto do alarde.
E aí,
chegamos às autocríticas da mídia. “A exposição de Trump foi desmedida”, “não
ouvimos os eleitores do interior”, “fizemos falsa equivalência com os
escândalos de Trump e Clinton”. Críticas válidas, mas que não servem para
explicar a eleição como um todo. Enquanto isso, o relato de um militante de
Bolsonaro à BBC Brasil pode fazer muito bem este papel: “Os jornalistas pensam
diferente da massa brasileira. Eles publicam essas posições achando que o
pessoal vai ficar indignado, mas a grande massa pensa que ‘bandido bom é bandido
morto’ e é isso que Jair prega”.
Claro
que a afirmação é reducionista e não abarca as teorias aprendidas nas
faculdades de Comunicação, sendo uma afronta à “Teoria da Agulha Hipodérmica”,
Adorno, Horkheimer, Habermas e tantos outros que nos mostram que a mídia é
indissociável da opinião popular. Mas se a eleição de Trump deveria nos ensinar
muitas lições, e deveria por conta das semelhanças com o fenômeno Bolsonaro,
uma é a de que devemos escutar mais o público.
E neste caso, o autor da frase tem muita razão.
Tenho
grandes amigos que gostam de Bolsonaro. A despeito do atual manual brasileiro
de boa convivência, que prevê excluir a discussão política, gosto de ouvir suas
motivações. E vejo que assim como os eleitores de Trump, há críticas
pertinentes em suas ideias.
Existe uma posição ideológica predominante nas faculdades, sobretudo das áreas
de humanas. Enquanto grandes educadores explicam com eloquência teorias
progressistas logo que os estudantes saem da escola, ainda com as visões
maniqueístas de mundo comuns à idade, quem não concorda com as posições
dominantes se vê órfão. É muito raro que um grande pensador conservador seja
apresentado a estes alunos na faculdade. Há um vácuo que faz com que
ideólogos rasos ou extremistas ganhem espaço junto a estes. Noto que alguns são
sim competentes, mas tendem a adotar discursos mais radicais para ganhar
espaço. Outros são simplesmente fracos.
Neste vácuo existe um incômodo com as batalhas por direitos
civis. A imensa maioria destas é válida, e merece apoio. Mas no sentido
maniqueísta e reducionista de uma sociedade que opina com base em manchetes, o
extremismo encontra terreno fértil. Daí a surgirem casos surreais como a “polêmica”
sobre apropriação cultural. A resposta dos incomodados, em um país ainda muito
conservador, tende a ser extrema. E dalhe #Bolsomito2018 para lá.
O Brasil lidera o ranking global de homicídios, com quase
60 mil assassinatos ao ano. Destes, menos de 10% terminam com o responsável
preso. Quando este é o destino, um sistema carcerário criticado
internacionalmente não reabilita o criminoso, que volta às ruas para se deparar
com uma reincidência de aproximadamente 70%. Este é o cenário dos que não podem
pagar caros advogados, ou não possuem o foro privilegiado, que abarca entre 20
e 50 mil de brasileiros, variando de acordo com a fonte, mas sem paralelos em
qualquer outra parte do mundo, independente do valor. Um sistema penal que não
inibe que crimes sejam cometidos e não reabilita perpetradores. A sensação de
injustiça é generalizada, surgindo daí o terreno fértil para o apelo de “lei e
ordem”.
Em uma sociedade que maltrata a palavra, e os termos
perdem sentido, adjetivos como “fascista”, “opressor” e a corrente de “ismos”,
muita das vezes incongruentes, acabam fazendo com que estas graves acusações se
tornem vazias, e até mesmo apropriadas pelos acusados. O paralelo entre
Bolsonaro e Trump é a apropriação do termo “opressor” por parte dos apoiadores,
em uma semelhança com os “deploráveis” trumpistas, palavra utilizada pela
candidata Clinton para designar seus opositores, em seu pior momento na
campanha.
Portanto, quando o melhor jornalista possível, ou o
veículo mais respeitável faz criticas a Bolsonaro, o apoiador faz uma falsa
equivalência de que a opinião expressa ali tem o mesmo valor de um dos opositores mais rasteiros. Neste cenário surgem as expressões de que New York Times, CNN, Folha de S. Paulo, El País Brasil, todos fazem
parte de um conglomerado liberal-esquerdista da mídia que hoje não tem mais
valor. O caso é muito semelhante nos EUA e no Brasil.
Então, como desaconselhar o voto em alguém que representa um perigo, sem citá-lo? Esta é a grande questão. E aí, cabe sair do lugar
comum. Ao invés de classificar uma série de “ismos” para um candidato, que, de
fato, não tem acusações importantes de corrupção ao seu cargo em um momento em
que descalabros sobre a classe política vêm em velocidade incompreensível para o
brasileiro comum, convide à reflexão.
Nenhuma reforma política mudará o sistema no Brasil que se
convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão” antes de 2018. Por meio
deste, o presidente tem o poder, mas tem de exercer o mandato oferecendo
condições favoráveis a uma base aliada, correndo o risco de sofrer um processo
de impeachment caso perca esta articulação. Bolsonaro pertence a um partido
pequeno, o PSC, e por um muito provavelmente concorrerá às eleições. A votação
da legenda deve ser baixa para o Congresso, o que levaria um presidente a ter
de fazer uma coalizão com uma série de partidos. Isso indica que para governar,
Bolsonaro terá de se aliar a um dos grandes, quem sabe até dois, entre PMDB,
PSDB e PT.
Diferente de outros presidentes que não tinham propostas
tão específicas, a situação de Bolsonaro é especial. Assim como Trump, caso
assuma, teria de mostrar serviço, já que não pode deixar a sensação de ser como
os outros, o que iria enfurecer seu eleitorado. Sem pragmatismo e com votações
específicas para serem levadas à casa, o custo pago seria alto pelo minoritário
presidente. A chance das barganhas serem ainda maiores que em mandatos
anteriores é grande, e lá se vai o trabalho da Lava Jato.
O Congresso é só um dos desafios com os quais o futuro presidente
do Brasil terá de lidar. O eleito irá assumir um país após sua mais grave crise
econômica da história recente, e não podemos nos dar ao luxo de votar em uma
eleição com base em ofensas rasteiras como as que vemos hoje na internet.
Precisa-se, e talvez como nunca antes, discutir os grandes aspectos para
colocar a nação com quase 14 milhões de desempregados nos eixos. Como mudar a
carga tributária com desoneração do consumo? Um Banco Central independente pode
valer à pena? Como incentivar a inovação no país, facilitando patentes privadas
ou fomentando as universidades públicas? Como superar o gargalo da infraestrutura?
Este é o tipo de questão que deve ser respondida, não se um congressista está certo
ao cuspir em outro, já que foi ofendido.
A eleição de Bolsonaro é um cenário provável? Acredito
que não. O sistema eleitoral americano é único, e a exemplo da França, nosso
pleito tende a rechaçar candidatos mais extremos. Nota-se que não disse
impossível. Mas uma votação expressiva de Bolsonaro é um grande retrocesso. O
apoio que o pré-candidato deu a um torturador da ditadura é terrível.
Expressões como as suas referentes aos quilombolas são muito negativas. A lista
é enorme e há muitos bem mais familiarizados com ela para dissertá-la. Mas uma
votação expressiva mostraria que parte da sociedade não está bem representada,
e tem anseios reais, não podendo ser tachada com “deploráveis”. O filme se
repete, mas dessa vez temos como apertar “pause”.
Até mesmo encontrar uma foto que não represente
polarização é complicado (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA)