Nesta
semana foi notícia que o clássico “1984”, de George Orwell, voltou a figurar na
lista de livros mais vendidos, grande parte por conta das relações possíveis de
se estabelecer da obra com o começo do governo Trump. A mais latente foi feita
após a declaração de uma porta-voz de que as mentiras disparadas, ou a negação
das verdades, seriam “fatos alternativos”. Em “1984”, dentro da chamada
novilíngua, uma das atribuições do Ministério da Verdade era justamente a fabricação
de novos fatos, o que é representado na famosa frase “guerra é paz”.
Quando
escrito, pouco após a Segunda Guerra Mundial, o livro foi visto como um ataque
aos regimes totalitários, sobretudo ao stalinismo. Em 2013, o clássico ganhou
grande destaque com o escândalo envolvendo a espionagem da NSA, divulgado por
Edward Snowden. Traçou-se um paralelo entre o governo americano e o controle
estabelecido pelo Big Brother em Oceania, simbolizado pelas onipresentes
teletelas. A ocasião demonstrou que o controle dos cidadãos por meio do estado
é algo mais sútil e presente do que a população em geral costuma crer, e é uma
prática difundida mundo a fora.
A
prática da novilíngua, ou “alternative facts”, também não é nenhuma novidade
por parte de governos. Nos EUA, espalhar mentiras foi fundamental para
conseguir o apoio da população para invadir o Iraque, o que dificilmente teria
sido possível sem as supostas ligações de Saddam Hussein com a Al Qaeda, e sua
posse de armas químicas, ambas não comprovadas até hoje. A guerra contra o
Iraque representaria paz. O resultado foi o Grupo Estado Islâmico e um Oriente
Médio esfacelado, que é considerado para alguns como pré-vestfaliano nos dias
de hoje. “Guerra é paz.”
As
táticas demonstradas em “1984” são, em maior ou menor grau, comuns a todos os
tipos de governantes. Estes são só alguns dos muitos exemplos possíveis que
justificam colocar a obra no hall de outros clássicos atemporais da política,
como “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel. Mas enquanto “1984” ganha as manchetes,
outra obra de Orwell pouco a pouco vem subindo na lista de livros mais
vendidos: “A Revolução dos Bichos”. E esta sim pode indicar fenômenos
específicos da atualidade, e preocupantes.
“A
Revolução dos Bichos” é uma fábula que consegue, com um número relativamente
pequeno de páginas, destruir o autoritarismo. A mensagem do livro na época foi
vista como uma crítica explicita ao stalinismo, e sua reprodução foi cerceada
na URSS. Na história, os animais de uma fazenda julgando-se injustiçados e
explorados, tomam o controle do lugar. Os bichos são liderados por dois porcos,
Napoleão e Bola de Neve, e, contam com o incansável cavalo Sansão, que está sempre
disposto a sacrifícios em prol do projeto.
Ao longo
da história, Napoleão vai acumulando poder e sendo cada vez mais autoritário,
enquanto Bola de Neve se afasta das decisões. Em determinado momento, após
montar um aparato repressor com os cachorros da fazenda, Napoleão obriga Bola
de Neve a fugir. Em seguida, todos os problemas enfrentados são creditados a
Bola de Neve, que viria à fazenda somente para boicotar o projeto dos animais.
Agora troque Napoleão e Bola de Neve pelos turcos, e antigos aliados, Recep
Erdogan e Fethullah Gullen.
Quando
assumiu o poder como primeiro-ministro Erdogan via no clérigo Gullen um bom
parceiro para conseguir implementar seu projeto de poder na Turquia. No
entanto, Erdogan, no comando desde 2002, foi cada vez centralizando mais as
decisões em sua figura, até romper com Gullen, hoje exilado nos EUA. Após a
tentativa frustrada de golpe de estado na Turquia em julho do ano passado, o
hoje presidente, Erdogan, culpou o clérigo, e vem prendendo ou demitindo
aqueles que tenham relação com o movimento gulenista, que é enorme e difundido
em uma série de países. Além disso, o presidente culpa o clérigo por muitos problemas na Turquia, inclusive atentados terroristas. Erdogan conseguiu
passar reformas na constituição que ampliam o poder do presidente pelo
congresso em janeiro, e estas vão a referendo neste ano.
Pelo
mundo proliferam-se casos de autoritarismo daqueles que se agarram ao poder. Na
Hungria, Viktor Orban faz pouco caso da constituição tendo em vista seu projeto
de restringir a entrada de refugiados no país. Na Nicarágua, Daniel Ortega
dissipou a oposição, e colocou sua mulher como vice-presidente, além de
estender seu mandato. Prolongar-se é o que também almeja Evo Morales na
Bolívia, e deve desafiar sua derrota em referendo para buscar seu quarto
mandato. Estes são fenômenos relativamente novos, sem citar os infindáveis
ditadores africanos como Mugabe no Zimbábue, perto de completar 93 anos e de
disputar mais uma eleição.
O
fortalecimento do autoritarismo em países que há tempos haviam estabelecido
regimes democráticos sólidos é uma grande ameaça. “A Revolução dos Bichos” traz
de forma simples como a demagogia e o populismo são armadilhas fáceis de cair,
das quais nenhum grupo está imune, além de como o poder costuma ser traiçoeiro.
Outra
obra, esta menos lembrada, de Orwell que segue bastante atual é “O caminho
para Wigan Pier”. Neste livro, o autor traz grandes reflexões sobre a vida dos
trabalhadores de minas de carvão no norte da Inglaterra, região conhecida por
ser a menos desenvolvida do país. Os relatos chocaram a dita intelectualidade da
época, já que poucas vezes alguém acostumado à elite londrina havia explorado
tanto a visão de mundo destes trabalhadores.
Os
habitantes do norte da Inglaterra apresentados por Orwell compuseram boa parte
da base de votação pelo Brexit, e exibem semelhanças com os eleitores de Trump,
considerados por alguns das elites intelectuais costeiras como “white trash”.
São os homens brancos, com poucas perspectivas, ressentidos, e que se julgam
injustiçados pelas mudanças dos últimos tempos. Como demonstrado pelo cavalo
Sansão de “A Revolução dos Bichos”, quando surge algum projeto pelo qual os que
se consideravam injustiçados passam a acreditar, este costumam estar dispostos
a abrir mão de muito em prol deste. O que isto vai representar nos EUA, e o
quanto Trump vai se aproveitar desta situação no poder, são perguntas
necessárias, mas que só tempo responderá. Talvez Orwell pudesse adiantar
algumas respostas, mas infelizmente há 67 anos o máximo que temos são dicas.
Maldita tuberculose! E que venda muito mais.
Ao menos nos resta a BBC