Não me surpreende o espanto que alguns de meus amigos tiveram quando
viram minha leitura mais atual. “David Copperfield” é um livro enorme, de 1300
páginas nesta versão da agora saudosa Cosac Naify, segundo o frete pesando um
quilo e para um destes amigos: “uns três livros que eu já acho grandes e nem
leria”. A obra de Dickens conta toda a história do senhor Copperfield, um
britânico no século XIX, e para se ter ideia do número de detalhes, o primeiro
capítulo se chama “Nasço”.
Charles Dickens, George Orwell, Ernest Hemingway, Aldous Huxley, Daniel
Defoe, J.D. Sallinger são só alguns dos nomes da literatura na língua inglesa
que eu lamentavelmente teria perdido caso seguisse a linha literária que me
fora lecionada na escola. Mario Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez, Jorge
Luis Borges, são alguns dos nomes latinos que não estão nos programas de
vestibular, por uma ideia de nacionalismo que para o último: “só permite
afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de
fanatismo e estupidez.”.
Em compensação travei verdadeiros embates para decorar as
características dos trovadores portugueses, assim como para saber as métricas
de poemas eu particularmente dava um valor literário inferior ao de qualquer
porta de banheiro na escola. Assim, passei pelo programa do vestibular de
literatura em português colando, pegando resumos na internet, e com outros
métodos pouco nobres, mas que foram os recursos para a minha negação em ler
qualquer material recomendado na escola, o que acredito que caiba à
psicanálise, mas tenho minhas teorias.
Imagino se o mesmo método que me fazia estudar livros como “Os
Sertões” de Euclides da Cunha, comumente chamado de livro mais chato da
história do Brasil, fosse aplicado em outras áreas. Provavelmente se eu tivesse
que assistir somente filmes nacionais, tendo de trocar “O Poderoso Chefão” por
“Cilada.com”, teria desenvolvido uma aversão a tudo ligado ao cinema, inclusive
à pipoca. Felizmente no caso da sétima arte, há o nobre exercício da humildade,
e reconhecemos o valor do que vem de fora, enquanto fomentamos o
desenvolvimento do cinema nacional, exemplo de bons filmes recentes como “Tropa
de Elite” e “Se eu fosse você” (gostei bastante).
Mas há na literatura uma ânsia misturada até mesmo com arrogância de
construir uma identidade cultural brasileira impondo que jovens tenham de ler
obras de qualidade questionável, normalmente em uma linguagem completamente
desconexa de seu meio (Rubem Fonseca pode ser uma exceção, mas por que ele ao
invés de Michel Houllebecq?) e dando ênfase a questões menos relevantes dentro
da obra, como se o sistema de rimas do poema é AABB, ou ABBA, ou qualquer coisa
assim. Na melhor das hipóteses a literatura genuinamente brasileira tem 300
anos, o que é um espaço de tempo ínfimo perto dos milênios das obras
ocidentais, isso sem contar na ignorada literatura chamada de “Oriental”, que
condena obras clássicas como “As Mil e Uma Noites” ao esquecimento, assim como
grandes autores modernos, por exemplo, Amós Oz e Edward Said, o segundo um dos
maiores críticos do senso comum da divisão “Ocidente e Oriente”.
Boa parte dos jovens brasileiros hoje lê somente por obrigação dos
programas escolares. E a tendência é que a concorrência seja cada vez mais
desleal para os livros, já que hoje o ato de ler disputa com a televisão, vídeo
game, e a internet presente em diversos lugares. Além disso, a capacidade de se
concentrar na leitura de uma obra grande, é comprovadamente afetada pela
dispersão das atenções em um mundo que boa parte daquilo que se lê não possui
mais de 140 caracteres.
Existe um aspecto importante, o do que os
brasileiros estão lendo, mas em longo prazo isto pode até deixar de ser um
problema, com as próximas gerações podendo reduzir esta pergunta a seguinte
resposta: nada. Confesso que não fico satisfeito quando chego a uma livraria e
vejo as obras de maior destaque, assim como quando vejo referências ao autor
brasileiro mais vendido, mas sem dúvidas estas contrapartidas são melhores do
que o cenário em que as lojas físicas das principais livrarias do Brasil só
venderão smartphones e jogos de vídeo game.
Claro, existe o aspecto do que se perde nas traduções. Quando se estuda
somente obras em seu idioma original, o que se ganha é de grande valor, tendo
em vista de que há livros inteiros discutindo somente o problema de traduções
de obras como “As Mil e Uma Noites”. Mas é preciso rever urgentemente o modo de
se estimular os jovens à leitura, levando em conta que a tendência é a de que o
programa de literatura no currículo escolar ocupe cada vez mais a fração que
tange ao repertório literário do brasileiro.
As perdas em um país distante da leitura são inúmeras e irreparáveis, a
começar pela própria composição literária. Quanto mais livros forem atrelados a
uma série de termos que tem de ser decorados para se passar no vestibular, a
repulsa a estes tende a crescer, afinal de contas, poucas pessoas depois de
aprovadas se preocupam com logaritmos ou a reprodução das briófitas. Se os
argumentos não foram suficientes, fica o apelo pessoal, já que como Llosa
classifica os amantes do primor da literatura como “dinossauros”, eu não quero
ser visto como um beirando os vinte anos de idade.
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