quinta-feira, 2 de junho de 2016

Raiva do jeito antigo

Não é possível dissociar a França da obra “O Homem Revoltado”, de Albert Camus. O país, palco da revolução que em 1789 rompeu com as diretrizes sociais existentes até então, e passou a ser a base do dito pensamento ocidental pautado na igualdade, fraternidade e liberdade, assim como sua tão reverenciada democracia, sem dúvidas faz parte das ideias do existencialista. A Revolução Francesa abriu as portas para uma série de movimentos desta sociedade constantemente mobilizada e insatisfeita, que estremeceu o mundo em pelo menos três outros grandes momentos: as revoluções liberais, a Comuna de Paris e Maio de 1968, a última, influência importante de diversos movimentos sociais contemporâneos.

É difícil dimensionar a influência de Maio de 68 em mobilizações como as de junho de 2013 no Brasil, os Indignados na Espanha e Ocuppy Wall Street nos Estados Unidos ambos pós-crise de 2008, já que além da capacidade de interação das novas mídias sociais, poucos elementos de fato são comuns a estes movimentos em suas origens. O fato é que os três demonstraram imensa insatisfação com seus sistemas políticos, que em uma visão geral não servia para representa-los, assim como grande dificuldade no consenso da composição de lideranças e propostas concretas. O resultado são os tradicionais elementos políticos nos três países enfraquecidos, enquanto demagogos, para a perplexidade dos mais sensatos, ganham repercussão e possibilidades reais de chegarem ao poder.

No Brasil, os desacreditados PT e PSDB e os outros grandes partidos, são vistos por muitos como sinônimos de corrupção, cenário perfeito para uma figura bizarra e outsider como Jair Bolsonaro ascender e ser um possível candidato à presidência em 2018. Nos EUA, Donald Trump e Bernie Sanders criticando as elites partidárias, o chamado establishment, e a relação deste com Wall Street, derrotaram diversos candidatos moderados, levando Sanders a uma disputa com reais chances contra Hillary Clinton, e Trump a ser a figura escolhida pelos republicanos para as eleições gerais, para a perplexidade de muitos, inclusive do gênio Stephen Hawking, que o chamou de “demagogo”. No parlamentarismo espanhol, o sistema político está paralisado, já que nas últimas eleições em dezembro, as duas maiores siglas do país, PP e PSOE, não conseguiram compor uma coalizão, por conta dos votos dos novatos e anti-sistema Podemos e Ciudadanos, que à esquerda radical e à direita criticam a política espanhola, que terá de ir às urnas outra vez no fim de junho.

Enquanto os novos movimentos, como disse Thomas Friedman em um artigo recente, demonstram enorme capacidade de destruir sistemas, mas não de reconstruírem, a França segue na contramão, e vem se mobilizando há semanas no modelo "século XX": sindicatos, líderes, greves, paralisações ordenadas e propostas bem concretas. O modelo, que poderia parecer obsoleto depois dos últimos anos, foi desencadeado após o anúncio de uma série de reformas pelo partido Socialista, que diminuíam benefícios trabalhistas.

Na visão do presidente François Hollande, a flexibilização nas leis do trabalho seria um estímulo para as empresas contratarem, já que a França apresenta graves índices de desemprego, acima dos 10%, o dobro de potências regionais como Alemanha e Reino Unido. Mesmo sabendo do desgaste político que sofreria caso aprovasse as medidas, o presidente assumiu o risco, preferindo ser “mal visto do que fraco”, já que 2017 é seu último ano de mandato e Hollande não deixou um legado memorável na história francesa.

Na prática as reformas incorrem, por exemplo, na diminuição do valor pago pelas horas extras, o que indignou, em especial, diversos caminhoneiros, que fecharam estradas pelo país. Outras medidas eram naturais de serem tomadas, como as mudanças na previdência, já que assim como no resto da Europa, os franceses vivem mais, e o atual sistema não pode arcar com tanto, mas os novos termos foram vistos como demasiados radicais para muitos trabalhadores. O fato é que Hollande possui a mais baixa aprovação de um presidente na história recente da França, e os protestos que já duram semanas, e levam até ao desabastecimento de produtos como a gasolina, não dão indícios de convencerem o determinado socialista, que quer parecer forte, a voltar atrás.

O primeiro-ministro, também socialista, Manuel Valls, defende no parlamento as reformas de Hollande. No entanto, o partido demonstra rachaduras internas, já que possui a tradição de defender os interesses trabalhistas, e voltar as costas a estes pode ser um suicídio político para muitos tão próximo às eleições. Quem ganha é a Frente Nacional, o demagogo partido de viés fascista, que lembra bastante Donald Trump, e que tem sua líder Marine Le Pen na frente em pesquisas para o pleito de 2017, possuindo uma perspectiva ainda melhor caso os socialistas cheguem enfraquecidos, o indicado até agora.

Apesar de ameaças sérias, como a de greve geral, não há indícios de que a reforma seja revogada. Tudo indica que os sindicatos tenham perdido esta batalha. Mas o mundo precisa ficar atento para a outra, que será travada em 2017, com reais possibilidades de um partido em que seu fundador, Jean Marie Le Pen, declarou que o Ebola poderia acabar com o problema da imigração em pouco tempo, chegando à presidência do berço dos ideais iluministas. Neste caso, Camus, argelino, teria toda razão para ser ele mesmo a encarnação do “Homem Revoltado”.

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