Não é
possível dissociar a França da obra “O Homem Revoltado”, de Albert Camus. O
país, palco da revolução que em 1789 rompeu com as diretrizes sociais
existentes até então, e passou a ser a base do dito pensamento ocidental
pautado na igualdade, fraternidade e liberdade, assim como sua tão reverenciada
democracia, sem dúvidas faz parte das ideias do existencialista. A Revolução
Francesa abriu as portas para uma série de movimentos desta sociedade
constantemente mobilizada e insatisfeita, que estremeceu o mundo em pelo menos
três outros grandes momentos: as revoluções liberais, a Comuna de Paris e Maio
de 1968, a última, influência importante de diversos movimentos sociais
contemporâneos.
É
difícil dimensionar a influência de Maio de 68 em mobilizações como as de junho
de 2013 no Brasil, os Indignados na Espanha e Ocuppy Wall Street nos Estados
Unidos ambos pós-crise de 2008, já que além da capacidade de interação das
novas mídias sociais, poucos elementos de fato são comuns a estes movimentos em suas origens. O fato é que os três demonstraram imensa
insatisfação com seus sistemas políticos, que em uma visão geral não servia
para representa-los, assim como grande dificuldade no consenso da composição de
lideranças e propostas concretas. O resultado são os tradicionais elementos
políticos nos três países enfraquecidos, enquanto demagogos, para a
perplexidade dos mais sensatos, ganham repercussão e possibilidades reais
de chegarem ao poder.
No
Brasil, os desacreditados PT e PSDB e os outros grandes partidos, são vistos por muitos como sinônimos de
corrupção, cenário perfeito para uma figura bizarra e outsider como Jair Bolsonaro
ascender e ser um possível candidato à presidência em 2018. Nos EUA, Donald
Trump e Bernie Sanders criticando as elites partidárias, o chamado establishment, e a relação deste com
Wall Street, derrotaram diversos candidatos moderados, levando Sanders a uma
disputa com reais chances contra Hillary Clinton, e Trump a ser a figura
escolhida pelos republicanos para as eleições gerais, para a perplexidade de
muitos, inclusive do gênio Stephen Hawking, que o chamou de “demagogo”. No
parlamentarismo espanhol, o sistema político está paralisado, já que nas
últimas eleições em dezembro, as duas maiores siglas do país, PP e PSOE, não
conseguiram compor uma coalizão, por conta dos votos dos novatos e anti-sistema
Podemos e Ciudadanos, que à esquerda radical e à direita criticam a política
espanhola, que terá de ir às urnas outra vez no fim de junho.
Enquanto
os novos movimentos, como disse Thomas Friedman em um artigo recente,
demonstram enorme capacidade de destruir sistemas, mas não de reconstruírem, a
França segue na contramão, e vem se mobilizando há semanas no modelo "século XX":
sindicatos, líderes, greves, paralisações ordenadas e propostas bem concretas.
O modelo, que poderia parecer obsoleto depois dos últimos anos, foi
desencadeado após o anúncio de uma série de reformas pelo partido Socialista,
que diminuíam benefícios trabalhistas.
Na visão
do presidente François Hollande, a flexibilização nas leis do trabalho seria um
estímulo para as empresas contratarem, já que a França apresenta graves índices
de desemprego, acima dos 10%, o dobro de potências regionais como Alemanha e
Reino Unido. Mesmo sabendo do desgaste político que sofreria caso aprovasse as
medidas, o presidente assumiu o risco, preferindo ser “mal visto do que fraco”,
já que 2017 é seu último ano de mandato e Hollande não deixou um legado
memorável na história francesa.
Na
prática as reformas incorrem, por exemplo, na diminuição do valor pago pelas
horas extras, o que indignou, em especial, diversos caminhoneiros, que fecharam
estradas pelo país. Outras medidas eram naturais de serem tomadas, como as
mudanças na previdência, já que assim como no resto da Europa, os franceses
vivem mais, e o atual sistema não pode arcar com tanto, mas os novos termos
foram vistos como demasiados radicais para muitos trabalhadores. O fato é que
Hollande possui a mais baixa aprovação de um presidente na história recente da
França, e os protestos que já duram semanas, e levam até ao desabastecimento de
produtos como a gasolina, não dão indícios de convencerem o determinado
socialista, que quer parecer forte, a voltar atrás.
O
primeiro-ministro, também socialista, Manuel Valls, defende no parlamento as
reformas de Hollande. No entanto, o partido demonstra rachaduras internas, já
que possui a tradição de defender os interesses trabalhistas, e voltar as
costas a estes pode ser um suicídio político para muitos tão próximo às eleições. Quem
ganha é a Frente Nacional, o demagogo partido de viés fascista, que lembra
bastante Donald Trump, e que tem sua líder Marine Le Pen na frente em pesquisas
para o pleito de 2017, possuindo uma perspectiva ainda melhor caso os
socialistas cheguem enfraquecidos, o indicado até agora.
Apesar
de ameaças sérias, como a de greve geral, não há indícios de que a reforma seja
revogada. Tudo indica que os sindicatos tenham perdido esta batalha. Mas o
mundo precisa ficar atento para a outra, que será travada em 2017, com reais
possibilidades de um partido em que seu fundador, Jean Marie Le Pen, declarou que o Ebola poderia acabar com o problema da imigração em pouco tempo,
chegando à presidência do berço dos ideais iluministas. Neste caso, Camus,
argelino, teria toda razão para ser ele mesmo a encarnação do “Homem Revoltado”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário