quinta-feira, 9 de junho de 2016

Prince, Amy, Michael Jackson e... Bayer?

Sem grandes turnês e um tanto quanto no esquecimento, morre uma estrela pop. Os fãs se emocionam, a mídia esgota o tema, veículos fazem as mais diversas homenagens, e as vendas de discos disparam de uma maneira impensável quando o artista era vivo. A causa da morte: overdose, de remédios, ou não. No caso das drogas lícitas, o médico do morto passa a fazer parte do espetáculo grotesco, tornando o processo judicial que determinará sua culpa prato cheio para a imprensa.

Prince tinha tudo para ser apenas mais um destes casos, que parecem ter a periodicidade de um ou dois por ano. O cantor da lendária música “Purple Rain” estava longe dos holofotes, até que em um determinado dia, o plantão anunciando sua morte soou, e o esquecido cantor dos anos 80 voltou a ser um dos maiores ícones da música pop norte-americana. Mas não interessa aqui as bizarras repercussões da morte de artistas mundo afora e o que elas alimentam, e sim o laudo da morte de Prince, causada pelo excesso de Fentanil, um opiáceo cerca de 25 vezes mais potente que a heroína.

O consumo de medicamentos como este teve enorme aumento nos últimos anos nos EUA, sendo normalmente usados como analgésicos. Drogas deste gênero costumam ser receitadas por médicos. No entanto, não se tratam de medicações comuns, já que o Fentanil e os outros tem base na mesma planta, a papoula, e, portanto, tem a mesma origem que duas drogas bastante conhecidas, o ópio e a heroína. Os norte-americanos conheceram bem o nefasto efeito da segunda, que nas décadas de 70 e 80, auge de Prince, desgraçou a vida de milhares de pessoas, principalmente afrodescendentes no país, além de disseminar a AIDS por conta do compartilhamento de seringas, comum na utilização da droga.

E sem restrições de classes, o abuso de opiáceos novamente vem devastando os EUA. A overdose dos derivados da papoula matou 30 mil pessoas em 2014, número maior, por exemplo, que as mortes por infarto e acidentes de carro. O consumo que geralmente começa com medicamentos como o Fentanil, muita das vezes gera enorme dependência, o que leva o usuário a usar doses maiores, ou até mesmo a recorrer ao principal derivado ilegal, a heroína, que causa efeitos graves no organismo, em alguns casos semelhantes aos em usuários de crack verificados no Brasil.

E o problema dos norte-americanos se espalha pela América Latina, já que normalmente na chamada “geopolítica da droga”, os países mais pobres costumam ser os mais afetados nas disputas para abastecer os usuários em países ricos. O drama que vivem os afegãos para suprir a demanda da heroína usada na Europa e o ópio no Irã, é um dos grandes exemplos, já que o cultivo da papoula na região substitui a agricultura de subsistência de famílias, além de ser uma das principais fontes de renda do grupo terrorista Talibã, recentemente apontado como o quinto mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em 500 milhões de dólares. No caso norte-americano, a papoula é cultivada em sua maioria no México, que vê nas suas regiões mais pobres, legítimos bolsões de pobreza, a criação de narco-estados paralelos, levando figuras como “Chapo” Guzman a um enriquecimento formidável com seu Cartel de Sinaloa.

Sinaloa e Guerrero, Los Zetas e Cavaleiros Templários, são respectivamente nomes de duas das regiões mais pobres do México e de dois dos grupos criminosos mais atrozes do mundo. As plantações de drogas que se espalham por outras pobres regiões mexicanas, e o altíssimo lucro disputados por estes e outros grupos, que costumam incluir os governos locais, compõe um trágico cenário que ceifa a vida de milhares de mexicanos anualmente e coloca centenas de milhares no terrível comércio das drogas que abastecem os norte-americanos. O cenário pode ser mais bem descrito em textos e textos, mas recomendo o ótimo documentário Carteland, indicado ao Oscar, ou pelo menos uma verificação da atrocidade ocorrida em Iguala há dois anos. Só um adendo, o grupo Los Zetas, é disparado o líder mundial em decapitações, prática comum nos rincões mexicanos para intimidar locais e rivais.

É cada vez mais aceito internacionalmente o fracasso da chamada “Guerra às Drogas”. As tentativas 
que esfacelaram estados latino-americanos, superpovoaram prisões mundo afora, causaram milhões de homicídios e só tornaram os negócios mais atrativos para traficantes, são cada vez mais vistas como um erro, então é ingênuo acreditar que de alguma maneira a heroína parará de chegar aos usuários que a desejarem. E não há indícios de que em uma sociedade com índices de suicídio e consumo de opiáceos cada vez mais altos diminua sua demanda de uma hora para a outra.

O número de pessoas que decidiram tirar a própria vida nos EUA subiu 22% de 1999 até 2016, e apesar de não haverem dados tão confiáveis, é razoável acreditar que o uso de antidepressivos aumentou consideravelmente no mesmo período, o que levou a um preocupado anúncio da OMS neste ano. Os dados indicam que 4 mil soldados norte-americanos morreram no Iraque durante a guerra, número duas vezes inferior ao dos que se suicidaram após retornarem aos seus lares após o confronto.

O resultado de tamanha instabilidade é uma cultura que controla a mente com antidepressivos e o corpo com antiinflamatórios. O abuso de medicamentos por parte das grandes estrelas é algo recorrente na concepção popular, mas cada vez mais o norte-americano comum padece do mesmo mal, seja terminado na superdose ou no consumo de drogas ilícitas, que causam problemas ainda maiores em países vizinhos.

Não será a hora de ao menos apontar para os únicos ganhadores indiscutíveis com todo esse consumo de remédios, os próprios fabricantes? Ou continuaremos dissociando completamente a morte de um artista por overdose de remédios da oferta bilionário que a Bayer, líder mundial no segmento, fez pela compra da gigantesca Monsato no mesmo período que o noticiário se encheu com Prince? É hora de o cidadão comum começar a pensar nisso, já que normalmente quando ele é a vítima, seus discos não disparam nas vendas e a capa da Time vai pra outro, deixando somente uma família desolada. Fica só a sugestão. Afinal de contas, a morte de Amy Winehouse faz cinco anos e não há tempo a perder nas recordações.

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