Não tem como ver as imagens dos assassinatos com
AK-47 em Paris e não sentir que uma parte da humanidade também morreu em cada
tiro. A questão é: como foi comentado sobre as atrocidades na Nigéria
nas últimas semanas, não devemos jogar as barbáries que não são filmadas para
segundo plano. Iguala, como brilhantemente trouxe a última edição da Piauí,
demonstrou que o ser humano sempre pode se superar quando o quesito é
aterrorizar a vida alheia.
Iguala não só mostrou o quão cruel pode ser a
humanidade, como mostrou que enquanto os olhos do mundo, incluindo os de boa
parte da América Latina, estão voltados para execuções que parecem brigar pelo Oscar de melhor produção, o continente que abriga 9% da população
mundial, tem 30% dos homicídios de todo o mundo. Enquanto o Estado Islâmico
coloca um menino de aproximadamente 10 anos para realizar suas execuções e
aparecer o máximo possível, o México é sede do Zetas, o grupo que ostenta a
marca de mais decapitações no planeta.
Pouco antes dos ataques ao Charlie, eu conversava com uma senhora simpática e educada que me confessou: “Eu tenho medo do terrorismo islâmico.” Eu respondi: “Eu também tenho, acho que os grupos estão ficando cada vez mais violentos, mas tenho mais medo do que tá acontecendo na América Latina.”“ Como assim?” “O que aconteceu no México, o que acontece sempre no Brasil, a quantidade de gente que ouvimos que morreu por conta do tráfico de drogas.” Falei algumas estatísticas, e ela parece ter entendido a questão. Mas ainda acho que depois do Charlie ela deve estar com problemas para dormir.
A Al Qaeda busca os alvos em que o terror causado por seus ataques será o maior possível. O Estado Islâmico utiliza dos maiores
requintes de crueldade possíveis em suas execuções que são reproduzidas no mundo
todo. Em Iguala, os narcotraficantes incineraram por horas os corpos (o processo começou com alguns estudantes ainda vivos) na tentativa de esconder
ao máximo as atrocidades.
A guerra do terror jihadista é por propaganda. A da
América Latina é contra o narcotráfico. A questão levantada em Iguala é: quem
luta de qual lado? Quando um prefeito ordena um massacre, movimentando a
polícia, o tráfico local, a mídia, fica bem mais difícil entender os lados do conflito. Quando o
Capitão Nascimento mostra em Tropa de Elite 2 que o inimigo é quem deveria
estar protegendo a população, e que milicianos podem ser até piores que
traficantes, fica evidente que nossa luta é mais complicada do que a contra
jihadistas ensandecidos.
Isso por que até agora só foi falado sobre os dois
países mais ricos em que o problema é latente. Em Honduras (maior taxa de homicídios
do mundo), El Salvador, Belize, Nicarágua, são comuns casos em que os conflitos pelo comando do tráfico são mais relevantes para a população do que o governo central. Fica até complicado de chamar de narcoestado, já que o "narco" é mais relevante que o próprio estado.
Enquanto Peña Nieto foi eleito no México pelas
propostas apresentadas para modernizações econômicas, as eleições na Colômbia
se basearam mais na relação do futuro governo com as FARC do que nas políticas
públicas que viriam a ser adotadas por quem fosse eleito. Santos venceu as eleições
e aparece nos noticiários internacionais apenas por conta das complicadas
negociações com o grupo. Pelo menos não fez como o mexicano que vêm aparecendo
por conta de escândalos.
Talvez as propostas liberais para as drogas se mostrem um grande equivoco com o passar dos anos. O fato é que Mujica, FHC e
outros líderes menos influentes ao trazerem o tema à tona, fazem um enorme
favor a todo o continente. Após o procurador
encarregado de responder sobre Iguala declarar: “ya me cansé” sobre a série de
dúvidas sobre o caso, os mexicanos passaram a usar a expressão, mas no sentido em que realmente é válido: “ya me cansé” da matança generalizada que ocorre embaixo dos nossos
narizes, “ya me cansé” de não saber se devo confiar mais em um traficante ou em uma autoridade. Só depois de protestos dessa grandeza que os maiores afetados ganharam voz e o tema ganhou a devida importância.
Em 2015, teremos reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), com a histórica participação de Cuba após o fim do embargo. A oportunidade de discutir de verdade os problemas do continente se aproxima, resta saber se o discurso vai ficar em uma série de propostas vagas, sem efeito prático mais uma vez, e se Iguala se tornará apenas estatística.
Eu, como todo defensor da democracia liberal, senti
que perdemos muito no 7 de janeiro. Mas diferente do que muitos enxergam, acho que perdemos
todos os dias quando democracias passam a ser comandadas pelo narcotráfico e matam
ferozmente os jovens latinos, sem câmeras ou grandes produções. #JeSuisCharlie , mas antes, sou apenas
um rapaz latino americano.