quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A humanidade em uma lente

Na medida em que você ouve e lê relatos sobre as atrocidades da humanidade, esses parecem cada vez mais perderem a capacidade de comover e nos fazer lembrar de que aquilo se trata de outros seres humanos. Uma frase creditada a Stálin diz que “Uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística”, e ilustra bem isso. Recentemente li um dos livros que considero entre os mais difíceis da minha vida, “Gostaríamos de informa-lhe de que amanhã seremos mortos com nossas famílias” trata do genocídio de Ruanda e relata como vizinhos de uma hora para outra passaram a matar famílias inteiras com facões simplesmente por uma suposta diferença entre etnias. Não consegui ler dois capítulos seguidos sem uma longa pausa para lamentar.

Outra obra que tive acesso há pouco, “A Civilização do Espetáculo”, do Nobel Mario Vargas Llosa, trata exatamente da diferença que as imagens têm de nos mobilizar em comparação aos outros meios. Nestes últimos tempos eu já havia ouvido e lido sobre as maiores barbaridades cometidas pelos três lados da Guerra da Síria, ficado chocado com o número estimado de mortos no ano passado, mais de 70 mil, no entanto a foto do menino morto na praia, tentando fugir dos horrores que lutamos para entender, teve um impacto sem precedentes.

Não sei se a comoção pelo caso se dá pelo fato de praticamente todos nós conhecermos, e termos enorme carinho, com alguma criança de idade parecida, ou meramente pelo tão perturbante e surreal que é aquela imagem. A questão é que o drama dos refugiados e o desastre na Síria tomaram outra esfera de mobilização depois do caso. O problema disso, que é o endossado na obra de Llosa, é que a mesma capacidade que uma foto tem de comover, ela pode ter para alienar sobre o seu real significado.

O que ocorreu naquela praia turca foi um reflexo de um drama vivido por milhares de pessoas em um país devastado por uma guerra, que cabe a nós refletirmos, interessa a quem? A outra parte da história são as péssimas condições que os refugiados enfrentam para tentarem parar de lutar pela sobrevivência e passarem a ter uma vida. O impacto que uma imagem como essa tem em nossos instintos é perigoso, já que vale lembrar que a revolta gerada pelos vídeos do 11 de setembro acabaram dando embasamento para a invasão do Iraque, uma operação desastrosa que tem inclusive como consequência a atual Guerra na Síria que vitimou o pobre menino. A falta de racionalidade em uma situação como esta, pode acabar levando a adoção de medidas equivocadas, em um momento que apesar das enormes dificuldades, Irã, EUA e Rússia parecem estar concordando em uma estratégia comum, o que seria um grande passo para o fim da catástrofe.

Enquanto isso na Europa, não podemos nos esquecer da quantidade enorme de movimentos xenófobos, que inclusive vêm se refletindo na política. A Suécia, famosa pelo bom trato aqueles que precisam de ajuda, elegeu recentemente para cargos legislativos políticos de ideologia próximas ao neonazismo. Na França, o berço dos atuais princípios democráticos, quem lidera as pesquisas para as eleições do próximo ano é Marine Le Pen, da Frente Nacional, famosa pelas tentativas de combate aos imigrantes. Seu pai, Jean-Merie Le Pen, fundador do partido, chegou a declarar que o “Sr. Ebola” seria a solução para os problemas relativos à migração, em uma frase indigna de ser comentada.

A reação frente a uma imagem como aquela, tende a não ser das mais fáceis. O El País decidiu sequer publicar a imagem, enquanto outros veículos de igual prestígio quiseram demonstrar o drama que a foto representa. Chorar, se indignar, ou qualquer outra coisa nesse sentido é absolutamente comum. Mas não devemos nos esquecer de tentar buscar as soluções para que nunca mais tenhamos de nos deparar com uma imagem como esta e lembrar que lágrimas não servem apenas para lubrificar os olhos.


Descanse em paz Aylan Kurdi.

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