quarta-feira, 11 de julho de 2018

A Recessão Geopolítica na África é uma Marolinha

Nas Olimpíadas de 2016, o mundo foi obrigado a voltar suas atenções para a situação dos oromos na Etiópia após o atleta Feyisa Lilesa comemorar com um símbolo que remetia à etnia sua medalha de prata na maratona. À época, o governo etíope reprimiu duramente protestos na região de Oromia, o que levou à morte de centenas de manifestantes que reivindicavam mais atenção do governo central, tradicionalmente dominado por outros grupos étnicos, e a redução de danos causados por obras de infraestrutura. Em meio à Copa de 2018, o mundo se volta novamente para um oromo, mas por razões bem diferentes. 

Abiy Ahmed chegou ao cargo de primeiro-ministro da Etiópia em abril deste ano, e levou grandes esperanças para duas importantes questões no país: a marginalização dos oromos e a questão com a Eritreia. Nesta semana, em visita a Asmara, Ahmed deu fim a um conflito que durava 20 anos contra a antiga região etíope, uma guerra que gerou pelo menos 80 mil mortos e é uma das principais razões que leva eritreus a serem uma das maiores populações de refugiados na atualidade. Outro fator é o governo de Isaias Afewerki, líder do país desde a independência na década de 90, e famoso pela repressão. Há o receio de que a imagem de Afewerki junto ao líder oromo possa ser utilizada para a perpetuação do mesmo no poder, no entanto é difícil imaginar um real empenho da comunidade internacional em uma transição democrática na Eritreia que representasse uma alternativa segura ao líder. 


Outra grande notícia do funcionamento das relações internacionais no continente ocorreu em Gâmbia, que descrevi aqui em 2017, com destaque para a União Africana (UA): “A UA teve papel importante no imbróglio que envolveu Gâmbia nas últimas semanas. O órgão defendeu a saída do poder de Yahya Jammeh, presidente do país havia 22 anos e que fora derrotado por Adama Barrow nas eleições em dezembro. Logo após o pleito, Jammeh aceitou o resultado, no entanto, uma semana depois, afirmou que não entregaria a presidência. A situação obrigou Barrow a se exilar no Senegal, um dos países membros da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEEAO), da qual Gâmbia também faz parte. A CEEAO mobilizou tropas dispostas a invadir Gâmbia caso o presidente não abandonasse o cargo. Cerca de 6 mil soldados da organização estiveram a postos para a intervenção. Mil senegaleses adentraram em território gambiano, enquanto Jammeh aceitava a pressão da comunidade e deixava o cargo. 

O pouco festejo por parte de líderes de países europeus e de Israel, os que mais se queixam da recepção de refugiados eritreus, realça outra questão. A crise migratória é muito menor do que a crise política nestes governos. Caso houvesse real empenho na resolução dos problemas nos países de origem das migrações, o que frequentemente cita-se como a melhor ideia para estancar o fluxo, acordos à exemplo o de eritreus e etíopes seriam mais celebrados, assim como a saída da Yahya Jammeh do poder, um dos grandes responsáveis por Gâmbia ser um dos maiores emissores per capita de imigrantes para a Europa. Mas Orban, Salvini, Seehofer e companhia omitem tais fatos. 

O relatório Freedom House de 2018 confirmou a relevância da transição e atualizou o status de Gâmbia de não livre para parcialmente livre, com o aumento de 21 pontos na escala de 0 a 100, uma das maiores progressões registradas recentemente. À época, mencionei também o retorno do Marrocos à UA e a condenação de Hissène Habré, ex-presidente do Chade, por um tribunal extraordinário africano, como outras boas notícias para o continente.  

Além dos importantes marcos políticos, a UA avançou neste ano a iniciativa de criar um mercado comum dentro da União, assinada por 44 dos 55 membros. Em tempos incertos de guerra comercial envolvendo as principais potências mundiais, o bloco poderia servir como uma segurança para muitos países que ainda têm economias fragilizadas, em grande parte dependentes da exportação de commodities pouco variadas a apenas alguns parceiros comerciais. A união monetária, à exemplo da Zona Euro, é também uma ideia, ainda que distante, vale lembrar que o franco CFA já é uma moeda aplicada em 14 países, e que não são apenas ex-colônias francesas. 

Dois dos mais antigos governos do continente realizaram transições pacificas recentemente. É verdade que se pode argumentar que Zimbábue e Angola permaneceram no domínio dos partidos ZANU e MPLA, respectivamente, que governaram ambos países em praticamente todo o período pós-independência. Ainda assim, o aparelhamento do Estado por Robert Mugabe, que tentou colocar sua esposa, Grace Mugabe na sucessão, e José Eduardo dos Santos, que tinha muitos de seus familiares no comando de estatais, sofreu importantes derrotas. Emmerson Mnangwga chegou ao poder e não deve colocar objeções para a realização de eleições no Zimbábue, e estas provavelmente serão mais ilibadas do que o polêmico pleito de 2008. Por sua vez, João Lourenço em Angola enfrentou parte da elite e deu bons acenos ao exterior, como a reaproximação com Portugal, relação enfraquecida por escândalos de corrupção. 

A África do Sul também realizou importante transição de um governo desgastado. Com democracia mais consolidadas que as outras já citadas, era pouco provável que a sucessão do impopular Jacob Zuma desencadeasse em tragédia. Ainda assim, é válido destacar o fim de um governo há muito tomado pelos escândalos de corrupção. Cyril Ramaphosa, seu sucessor, tem muito o que provar, mas há tempos Zuma pouco fazia além de lutar para permanecer no cargo.  

Termino da mesma forma do texto de um ano e meio atrás. É claro que a África, como diria Thomas Friedman, ainda conta com problemas e desafios “que poderiam acabar com o jantar de qualquer família”. O crescimento da violência na República Democrática do Congo, sobretudo na província de Kasai, conta com uma omissão criminosa da comunidade internacional. Os próximos meses no país podem ser decisivos, já que se espera a sucessão de Joseph Kabila. No caso do Brasil, seria válida a atenção para um parceiro e membro da CPLP, que é Moçambique, e que vê um crescimento de extremismo islamista no norte do país. De toda forma, acho sempre válido falar do continente de maneira sensata, madura e não paternalista. Ou seja, para além de filmes da Marvel. Exemplo disso é Israel, com uma aula de Relações Internacionais no continente. Assunto que também trouxe aqui, mas que se intensificou.

                                            
Afewerki e Ahmed. Digno de Nobel da Paz, e pouco badalado, como gosta o Comitê. Não surpreenderia FOTO: Africanews