sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O novo-velho best-seller Orwell e o mundo de hoje

Nesta semana foi notícia que o clássico “1984”, de George Orwell, voltou a figurar na lista de livros mais vendidos, grande parte por conta das relações possíveis de se estabelecer da obra com o começo do governo Trump. A mais latente foi feita após a declaração de uma porta-voz de que as mentiras disparadas, ou a negação das verdades, seriam “fatos alternativos”. Em “1984”, dentro da chamada novilíngua, uma das atribuições do Ministério da Verdade era justamente a fabricação de novos fatos, o que é representado na famosa frase “guerra é paz”.

Quando escrito, pouco após a Segunda Guerra Mundial, o livro foi visto como um ataque aos regimes totalitários, sobretudo ao stalinismo. Em 2013, o clássico ganhou grande destaque com o escândalo envolvendo a espionagem da NSA, divulgado por Edward Snowden. Traçou-se um paralelo entre o governo americano e o controle estabelecido pelo Big Brother em Oceania, simbolizado pelas onipresentes teletelas. A ocasião demonstrou que o controle dos cidadãos por meio do estado é algo mais sútil e presente do que a população em geral costuma crer, e é uma prática difundida mundo a fora.

A prática da novilíngua, ou “alternative facts”, também não é nenhuma novidade por parte de governos. Nos EUA, espalhar mentiras foi fundamental para conseguir o apoio da população para invadir o Iraque, o que dificilmente teria sido possível sem as supostas ligações de Saddam Hussein com a Al Qaeda, e sua posse de armas químicas, ambas não comprovadas até hoje. A guerra contra o Iraque representaria paz. O resultado foi o Grupo Estado Islâmico e um Oriente Médio esfacelado, que é considerado para alguns como pré-vestfaliano nos dias de hoje. “Guerra é paz.”

As táticas demonstradas em “1984” são, em maior ou menor grau, comuns a todos os tipos de governantes. Estes são só alguns dos muitos exemplos possíveis que justificam colocar a obra no hall de outros clássicos atemporais da política, como “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel. Mas enquanto “1984” ganha as manchetes, outra obra de Orwell pouco a pouco vem subindo na lista de livros mais vendidos: “A Revolução dos Bichos”. E esta sim pode indicar fenômenos específicos da atualidade, e preocupantes.

“A Revolução dos Bichos” é uma fábula que consegue, com um número relativamente pequeno de páginas, destruir o autoritarismo. A mensagem do livro na época foi vista como uma crítica explicita ao stalinismo, e sua reprodução foi cerceada na URSS. Na história, os animais de uma fazenda julgando-se injustiçados e explorados, tomam o controle do lugar. Os bichos são liderados por dois porcos, Napoleão e Bola de Neve, e, contam com o incansável cavalo Sansão, que está sempre disposto a sacrifícios em prol do projeto.

Ao longo da história, Napoleão vai acumulando poder e sendo cada vez mais autoritário, enquanto Bola de Neve se afasta das decisões. Em determinado momento, após montar um aparato repressor com os cachorros da fazenda, Napoleão obriga Bola de Neve a fugir. Em seguida, todos os problemas enfrentados são creditados a Bola de Neve, que viria à fazenda somente para boicotar o projeto dos animais. Agora troque Napoleão e Bola de Neve pelos turcos, e antigos aliados, Recep Erdogan e Fethullah Gullen.

Quando assumiu o poder como primeiro-ministro Erdogan via no clérigo Gullen um bom parceiro para conseguir implementar seu projeto de poder na Turquia. No entanto, Erdogan, no comando desde 2002, foi cada vez centralizando mais as decisões em sua figura, até romper com Gullen, hoje exilado nos EUA. Após a tentativa frustrada de golpe de estado na Turquia em julho do ano passado, o hoje presidente, Erdogan, culpou o clérigo, e vem prendendo ou demitindo aqueles que tenham relação com o movimento gulenista, que é enorme e difundido em uma série de países. Além disso, o presidente culpa o clérigo por muitos problemas na Turquia, inclusive atentados terroristas. Erdogan conseguiu passar reformas na constituição que ampliam o poder do presidente pelo congresso em janeiro, e estas vão a referendo neste ano.

Pelo mundo proliferam-se casos de autoritarismo daqueles que se agarram ao poder. Na Hungria, Viktor Orban faz pouco caso da constituição tendo em vista seu projeto de restringir a entrada de refugiados no país. Na Nicarágua, Daniel Ortega dissipou a oposição, e colocou sua mulher como vice-presidente, além de estender seu mandato. Prolongar-se é o que também almeja Evo Morales na Bolívia, e deve desafiar sua derrota em referendo para buscar seu quarto mandato. Estes são fenômenos relativamente novos, sem citar os infindáveis ditadores africanos como Mugabe no Zimbábue, perto de completar 93 anos e de disputar mais uma eleição.

O fortalecimento do autoritarismo em países que há tempos haviam estabelecido regimes democráticos sólidos é uma grande ameaça. “A Revolução dos Bichos” traz de forma simples como a demagogia e o populismo são armadilhas fáceis de cair, das quais nenhum grupo está imune, além de como o poder costuma ser traiçoeiro.

Outra obra, esta menos lembrada, de Orwell que segue bastante atual é “O caminho para Wigan Pier”. Neste livro, o autor traz grandes reflexões sobre a vida dos trabalhadores de minas de carvão no norte da Inglaterra, região conhecida por ser a menos desenvolvida do país. Os relatos chocaram a dita intelectualidade da época, já que poucas vezes alguém acostumado à elite londrina havia explorado tanto a visão de mundo destes trabalhadores.

Os habitantes do norte da Inglaterra apresentados por Orwell compuseram boa parte da base de votação pelo Brexit, e exibem semelhanças com os eleitores de Trump, considerados por alguns das elites intelectuais costeiras como “white trash”. São os homens brancos, com poucas perspectivas, ressentidos, e que se julgam injustiçados pelas mudanças dos últimos tempos. Como demonstrado pelo cavalo Sansão de “A Revolução dos Bichos”, quando surge algum projeto pelo qual os que se consideravam injustiçados passam a acreditar, este costumam estar dispostos a abrir mão de muito em prol deste. O que isto vai representar nos EUA, e o quanto Trump vai se aproveitar desta situação no poder, são perguntas necessárias, mas que só tempo responderá. Talvez Orwell pudesse adiantar algumas respostas, mas infelizmente há 67 anos o máximo que temos são dicas. Maldita tuberculose! E que venda muito mais.



                                                                    Ao menos nos resta a BBC

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Com um Trump, sem meias palavras

O que representa, de verdade, um aumento médio de 2 graus na temperatura global? Não sei, e, na prática, ninguém sabe. O que muda nas nossas vidas com o aumento de 50 cm no nível dos oceanos? Tampouco faço ideia. A única resposta que temos a estas questões são projeções, que são apenas projetos de possibilidades que podem, ou não, acontecer. Muita gente se dá bem com o risco, e paga para ver. Mas, para as mudanças climáticas, acabou o tempo para falarmos de 2030, 2050, 2100. Temos que falar de 2016, o ano mais quente da história, batendo o recorde do ano anterior, e sucedido pelo que provavelmente lhe tomará o posto.

Pensei em falar sobre o clima citando a eleição de Trump e suas escolhas de Scott Pruitt para a E.P.A. e Rex Tillerson para secretário de Estado, todas desastrosas no âmbito ambiental. Citaria também Blairo Maggi, nosso ministro da agricultura. Para não criar uma tonalidade apocalíptica sobre 2016, queria trazer alguma história positiva para o meio-ambiente, dando esperança. Mas com Trump, tudo muda.

Cheguei a esta conclusão depois de ler o relato de uma mãe em Madagascar, que desesperada, fica sabendo que há um homem (do qual ela nunca ouviu falar), que lidera um país, (que ela tampouco conhece), e que pode ajudar seus filhos. A família praticamente não consegue comer e nem beber, em virtude da crise de alimentos gerada pelo fenômeno El Niño, que altera a temperatura das águas no Pacífico, e que em 2016 causou graves transtornos no Sudeste Africano. O homem é Trump, presidente eleito dos EUA, a quem o autor endereça o relato, e que pode, sim, transformar esta situação.

Em 2014, analistas estudaram 28 desastres ambientais, constatando que metade deles foi causada por alguma alteração do homem. O mais recente El Niño foi um dos mais fortes de todos os tempos, trazendo inundações, tornados e outros transtornos mais fortes no Pacífico, além de alterar o clima global como um todo, o que é visto nas secas enfrentadas na África Oriental. O Haiti é um bom exemplo de como o fenômeno pode ser destruidor, tendo passado por secas por conta deste recentemente, e pelo furacão Matthew em 2016.

Até o momento, é verdade que os países ricos e grandes responsáveis pelas emissões sofram menos que os pobres por conta das alterações no clima. Mas é difícil prever uma estabilidade diante de alterações nunca imaginadas. Por certo tempo, os norte-americanos ficaram aflitos com a possibilidade do furacão Matthew chegar à Costa Leste, no que cogitou-se ser um fenômeno mais destruidor que o Katrina, que arrasou New Orleans em 2005.

Outro ponto que certamente afetará os países mais ricos é a migração, inclusive com refugiados. O colunista Thomas Friedman vem alertando que em áreas de desertificação, o número de conflitos armados tende a aumentar exponencialmente, somando ainda mais aos cerca de 60 milhões de refugiados no mundo. Se a Europa não conseguiu lidar com a crise gerada pela Guerra da Síria, quem dirá com todo o Norte Africano disposto a atravessar o Mediterrâneo.

Os problemas e as vítimas já são muito reais para o homem mais poderoso do mundo lidar com as mudanças climáticas como mero exercício de fé. Há algum tempo esta deixou de ser uma questão com a qual nossos filhos e netos “talvez tenham de lidar”, para ser algo real e prioritário. A China, a quem o presidente eleito chegou a culpar por ter inventado as mudanças climáticas, já se alarmou sobre o problema, afinal de contas, não tem como fazer vista grossa quando se tem camadas enormes de poluição impedindo olhar a poucos metros de distância.

Com Trump, o homem que governa pelo Twitter antes mesmo de ser empossado, não há espaço para projeções e longos relatórios. É verdade que países inteiros podem desaparecer se nada for feito, milhares de espécies podem ser extintas com repercussões imprevisíveis, assim como as catástrofes criadas pela mudança nos regimes climáticos. Mas como vimos na eleição, para ele a verdade não basta. Ainda assim, se milhares de mães desesperadas com seus filhos passando fome não servirem, podemos ter votado em nosso próprio meteoro.

                   "Arpocalipse" convenceu os chineses/ FOTO: (Jason Lee/Reuters/VEJA)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O terrorismo mais perto do que se pensa

“Creio que a síndrome do século XXI é o choque de fanáticos de todas as cores e o resto de nós.” A frase é de um dos maiores escritores israelenses, Amós Oz, nascido em Jerusalém durante o mandato britânico, e que se considera um especialista em “fanatismo comparado”. Vivendo na Terra Santa por tanto tempo, este local capaz de suscitar tantas paixões, é compreensível que seu ensaio “Como Curar um Fanático” seja uma grande peça para entender o extremismo. Só não diria que é necessário, pois este tipo de imposição já é um dos princípios apontados por Oz para o fanatismo, do qual nenhum ser humano é completamente imune.

Um dos antídotos contra o fanatismo apontados por Oz é a imaginação, atrelada à capacidade de se colocar no lugar do outro. Usando desta imaginação, suponhamos que o autor do massacre em Campinas fosse muçulmano, ou simplesmente tivesse gritado algumas expressões em árabe. Quais seriam os principais destaques para o atentado? “Terrorismo islâmico chega ao Brasil?” “Estado Islâmico assume a autoria de atentado em Campinas?”. Se as repercussões não fossem tão extremas, asseguro que o termo “terrorismo” e a religião do autor teriam sido bem mais difundidos do que ocorreu no caso.

Segundo Oz, a luta entre fanáticos e o resto da sociedade se dá entre pessoas que “acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios, e o resto de nós, que acredita que a vida é um fim, não um meio.” Os fins no caso do atentado em Campinas, seriam as ideias misóginas e machistas do autor, e a ação em si, que seria algo justificável para ele, o meio. É o que Oz descreve quando diz “É uma luta entre os que por um lado pensam que justiça- o que quer que entendam por esta palavra- é mais importante que a vida, e os que pensam que a vida tem muito mais importância que outros valores, convicções ou crenças.” Nos trechos divulgados da carta do terrorista, em que este relativiza a possibilidade de morrer, esta luta é nítida.

Mas não foi só este massacre no ano novo que teve seu viés terrorista deixado em segundo plano. No ano passado, um supremacista branco nos EUA invadiu uma igreja e matou nove pessoas negras, o que foi apenas mais um dentre as dezenas de crimes de ódio envolvendo massacres no país. Além disso, a deputada britânica Jo Cox foi morta em um atentado de um ultranacionalista que considerava os contrários ao Brexit, assim como Cox, traidores. Pouco se falou em terror.

Para o autor argentino J.L. Borges: “O nacionalismo só permite afirmações e, toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez.”. No âmbito do terrorismo, o nacionalismo foi uma das formas de fanatismo que mais fizeram vítimas durante o século XX. As organizações, ETA no país basco, IRA na Irlanda do Norte e a própria Organização pela Libertação Palestina (OLP), até o abandono da luta armada, compuseram grande parte do cenário do terror no período, assim como as milícias de ideal marxista, como as FARC na Colômbia, e o PKK no Curdistão, que também possui um viés nacionalista. O terror islamista como conhecemos vem do final do século XX, com grupos como o Hamas e Al Qaeda, de orientação sunita extrema. Até então o terrorismo muçulmano era vinculado mais a grupos xiitas, de exemplo, o Hezbollah.

Marxismo, nacionalismo, extremismo islamista, anarquismo e qualquer outra orientação que tenha servido como base para fanáticos ao longo da história propõe certezas para os anseios do ser humano. Segundo Oz estas certezas se alteraram de tempos para cá: “Até a metade do século XIX, a maioria das pessoas, na maior parte do mundo, tinha pelo menos três certezas fundamentais: onde eu vou passar a minha vida, o que vou fazer da minha vida e o que vai acontecer comigo depois que eu morrer.”. Segundo o autor, em um mundo de pouca mobilidade social e geográfica, sendo temente a seu deus, a vida terminaria no paraíso. Hoje não é bem assim.

Um estudo recente indicou que uma edição dominical do New York Times oferece mais informação do que, em média, um cidadão do século XVII recebia durante toda a vida, o que complica quaisquer certezas. O diplomata norte-americano Henry Kissinger classifica o saber em três instâncias: informação, conhecimento e sabedoria. De fato, esta é a era da informação. A questão é o quanto disso o ser humano processa para transformar em conhecimento, ou sabedoria. As duas últimas instâncias necessitam de análises profundas, reflexões, sendo fundamental compreender o outro lado das histórias.

O que temos hoje não chega a isso. Pessoas comentam com fanatismo simplesmente ao observarem uma manchete, seja ela sobre terrorismo, Trump, aquecimento global, Temer, Lula, Dilma, ou mesmo fofocas. Não se busca o conhecimento para entender o que ali ocorre, e já se exclama “é”, e por vezes até mesmo se discute com conhecidos do “não é”. Evidentemente esta instância do saber fica bem longe da sabedoria.

Claro que dentro deste fanatismo existem várias instâncias. Não se pode comparar alguém que tenta convencer se foi ou não golpe e um vegano que quer fazer alguém parar de comer carne, com um terrorista ou um perpetrador de limpeza étnica. Mas para Oz, o fanatismo tem duas essências fundamentais: “autojustificativa sem concessões” e “o desejo de forçar outras pessoas a mudar”. E neste aspecto os casos se enquadram, e somos todos suscetíveis, já que como traz o autor: “A natureza humana parece que não muda. A única diferença entre fazer amor no tempo do Rei Davi e fazer amor hoje em dia é o cigarro depois”.

Como traz o começo do texto, também acredito que a batalha contra o fanatismo será uma síndrome do século XXI, e arrisco dizer que é a principal questão deste, junto às mudanças climáticas. Portanto, combates como os que matam jihadistas sem destruir as raízes que os levam a isto serão como enxugar gelo, mas gerando um ciclo vicioso de derramamento de sangue. Lidar com as causas deste extremismo é um dos grandes desafios, e será de suma importância entender que a fonte é a mesma, seja para islamistas, misóginos, nacionalistas ou anarquistas: nossa própria natureza.

A propósito, outros dois antídotos que Oz sugere contra o fanatismo são o humor e a literatura. Humor, e não sarcasmo, o autor define como a capacidade de rir de si mesmo. Dizer sarcasticamente que contar uma piada a um terrorista pode parar um ataque não serve, mas em compensação, o Grupo Estado Islâmico nunca soube rir de si mesmo e jura de morte quem faz sarro com ele. E a literatura sugerida não é a superficial, ou a que suscita ainda mais fanatismo, e sim a que coloca o leitor na mente de outra pessoa. Diria que é vital a todos, mas como trouxe J.L. Borges: “A leitura não deve ser obrigatória. O prazer não é obrigatório, o prazer é algo buscado.”.

Uma aula em 100 páginas (FOTO: Divulgação)