quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Na Guerra, a primeira vítima é a verdade. E a Guerra só começou

Num artigo na National Review (25 de outubro de 2004), Mark Steyn relatou uma história publicada no jornal londrino em língua árabe Al-Quds al-Arabi a respeito do pânico instaurado em Cartum, no Sudão, depois que um boato percorreu a cidade dizendo que se um infiel apertasse a mão de um homem, este perderia a virilidade. ‘O que me espantou nessa história”, disse Steyn, ‘foi um detalhe: a histeria se espalhou por telefones celulares e mensagens de texto. Pense nisto: é possível alguém ter um telefone celular e mesmo assim acreditar que um aperto de mão de um estrangeiro seja capaz de torná-lo impotente? O que aconteceria se esse tipo de primitivismo tecnicamente avançado fosse além das mensagens de texto?’” 

parágrafo é retirado do livro “O Mundo é Plano”, do colunista do New York Times Thomas Friedman, de 2005. Em 2018, o primitivismo dos nem tão saudosos SMSs foi substituído pela instantaneidade e capacidade de penetração do Whatsapp. Se a longínqua Cartum pode parecer uma caricatura sobre notícias falsas circulando, veja a seguinte checagem realizada pela agência Aos Fatos nesta semana: “Não é verdade que uma nova dipirona importada da Venezuela estaria contaminada com o vírus Marburg, como alardeia um áudio que se espalhou pelo WhatsApp nos últimos dias.”. 

Na mesma semana, a Folha de S. Paulo se viu obrigada a desmentir que Lula fosse o dono do jornal. Pode ser risível para alguém que já leu estes dois parágrafos, mas boa parte das inúmeras notícias falsas que circularam durante as eleições eram deste nível. Repito a indagação: e quando avançarmos deste primitivismo? E vamos. Softwares avançados já são capazes de produzir vídeos em que peritos só conseguem desmentir o conteúdo depois de dias de trabalho. Programadores conseguem deturpar e manipular com quase perfeição vozes atualmente. Hoje, o engajamento com notícias falsas é em parte relacionado ao que Eliane Brum descreveu como “autoverdade”, com bastante precisão. Acredita-se no que se quer, e normalmente a realidade fabricada nestes casos é mais interessante do que o mundo de verdade. Mas estamos prestes a romper a barreira que os separa. 

A política partidária é parte essencial de qualquer sociedade que a aplique, e é positivo que as atenções se voltem a ela. A questão é que a mesma é apenas uma fração da engrenagem social, e enquanto as atenções voltam-se às eleições brasileiras, norte-americanas, e ao Brexit, verdadeiras tragédias ocorrem sem a mesma atenção (pode ter certeza que perder perto destes casos é pouco).  

Em Myanmar, a minoria muçulmana rohingya foi perseguida a partir do fim de 2017 em um caso notório de limpeza étnica e no qual é verificável o intento de genocídio. Os números são controversos, mas estima-se que 700 mil pessoas tenham fugido para Bangladesh e que cerca de 10 mil foram mortas. Cada vez mais a negligência do Facebook quanto a postagens na rede que incitavam agressões contra os rohingyas, assim como falsos comunicados de atentados terroristas por parte de membros da minoria é latente. Em um dos últimos casos recentes de genocídio, Ruanda em 1994, especialistas convergem em como as rádios do país foram usadas pelo Poder Hutu por anos para instigar a morte de tutsis. Em um futuro próximo, podem indicar que em Myanmar bastaram meia dúzia de publicações, likes e compartilhamentos. 

Na Índia, mensagens falsas pelo Whatsapp são apontadas como responsáveis pela morte de dezenas de pessoas por conta de acusações mentirosas que envolvem desde o abate de bovinos por muçulmanos a uma das canalhices mais comuns, os falsos sequestros de crianças. Recentemente um homem foi linchado na Colômbia por conta da mesma imputação, que logo foi confirmada como falsa pelas autoridades locais. No Brasil, em casos esporádicos no interior o problema se repete. “E quando avançarmos deste primitivismo? 

No caso indiano, o Whatsapp limitou o número possível de encaminhamentos de 20 para cinco, algo que foi requerido no Brasil. No ano que vem, o país passa pelo processo eleitoral com mais participantes do mundo, em um momento de forte presença do nacionalismo hindu encabeçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi e seu partido BJP. Cerca de 900 milhões estarão aptos a votar no complexo sistema eleitoral. Na eleição de 2014, minorias denunciaram perseguições por parte dos nacionalistas. 

Na saúde, mentiras pouco fazem distinções entre nações mais ou menos desenvolvidas. A chamada onda anti-vacinas, criada por boatos como o de que as mesmas causariam autismo, é uma das grandes responsáveis pela alta nas contaminações por sarampo na Europa. Em algumas das nações mais pobres do mundo, a exemplo da Libéria, durante o surto do Ebola em 2014, mentiras causaram graves problemas para as equipes de saúde. A catástrofe poderia ter sido ainda pior se a instantaneidade do Whatsapp estivesse a serviço.

Malásia e Uganda foram além. No primeiro país, o país aprovou uma lei que torna crime as “fake news”. No primeiro caso de um condenado, a confusa história pode denotar a situação como uma acusação mentirosa levando alguém a ser preso por mentiras. Em Uganda, a solução do governo foi passar a cobrar pelo uso das redes sociais no pobre país, o que não foi muito popular. 

Acredito que quem trabalhe atualmente com fact-checking já entendeu que está envolvido em uma espécie de Mito de Sisífo. O desgastante trabalho é infinitamente menos compartilhado do que as notícias falsas que proliferam, e também não tem a mesma capacidade de influência. Eu mesmo quando fiz fact-checking nas eleições municipais de 2016 via naquilo como uma salvação. Dois anos depois, com a ideia difundida, vejo que era ingenuidade. 

O que resta é sair da zona de conforto de apontar que “educação é a solução” e trabalhar efetivamente na construção de algo que desenvolva desde cedo a capacidade de apuração individual. Afinal de contas, como no caso sudanês, o suposto nível social não é indicativo de imunidade a mentiras, e no Brasil o ensino superior tampouco serviu para impedir a ampla difusão destas. A outra solução é bastante simples, e não duvido que neste tempo de internautas que reinventam a roda constantemente já tenha sido sugerida. Será preciso pagar para alguém apurar as informações e servir como fiel da balança. Erros acontecem, mas como trouxe esta excelente coluna no Diário de Notícias, um dos grandes de Portugal, este país que consegue servir de poço de bom senso em meio à insanidade atual, “O jornalismo tem de explicar-se, as fake news nunca o farão”.
Campo de refugiados de Cox Bazar, em Bangladesh. Rohingyas podem ter sido os primeiros nesta nova era FOTO: Kevin Frayer/Getty Images