domingo, 18 de fevereiro de 2018

Visando inclusão, iniciativa em Portugal alfabetiza crianças em quatro linguagens

Projeto, que conta com braille e língua gestual, poderia ser facilmente implementado no Brasil, segundo criadora

“Cria pontes entre línguas e não deixa nenhuma criança para trás”, foi a descrição do comissário europeu de Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moeda, sobre o EKUI. A iniciativa prevê a alfabetização de crianças por meio de quatro linguagens: manuscrita, braille, língua gestual portuguesa e alfabeto fonético internacional. Sua criadora, Celmira Macedo, afirma que já beneficiou mais de 25 mil pessoas em Portugal desde 2015, e que poderia aplicar seu método no Brasil apenas com uma adaptação à Libras (Linguagem Brasileira de Sinais).

A sigla EKUI refere-se a equidade, conhecimento (em inglês, knowledge), universalidade e inclusão. O principal produto da iniciativa é um baralho com 26 cartas que é utilizado pelos professores para a alfabetização nas quatro linguagens. A criadora afirma que o projeto é único no mundo justamente por esta diversidade.

Macedo aponta: “As barreiras de comunicação existem em vários níveis, por exemplo, quando nascemos com uma deficiência, ou a adquirimos em um acidente e até mesmo quando saímos da escola sem aprender a ler ou escrever. ” Um drama pessoal levou a professora a conhecer de perto os problemas referentes a estas barreiras: “Tive um AVC em 2009, e foi nesta altura que percebi o que é não conseguir me comunicar com o outro. ”

No campo da reabilitação de pessoas com dificuldades comunicativas o EKUI estima 67% dos participantes tiveram melhoras na sua comunicação. O projeto já atendeu diretamente mais de mil alunos, e afirma ter com isso beneficiado pelo menos 25 mil pessoas

O outro âmbito que o programa trabalha é na prevenção, e Macedo aponta suas ambições: “Vamos ensinar todas as crianças a falar na língua gestual, conhecer o braille e desenvolver o fonema. ” A criadora estima que somente em Portugal há 1,5 milhão de habitantes, como pais e amigos de pessoas com dificuldade na comunicação, que enfrentam problemas nesta área, o que corresponde a quase 15% da população do país.

“A formação é de três horas e capacita o professor a ensinar dentro de sala de aula. E depois fazemos mentorias, em que técnicos vão às salas uma vez por mês para verificar se o processo está sendo bem trabalhado e se o professor tem necessidades. ”, afirma a criadora sobre a iniciativa que já formou 1200 professores e é implementada em 112 escolas portuguesas.

O projeto é aplicado no primeiro ciclo português, referente ao ingresso das crianças na escola aos seis, e que tem duração de quatro anos. Macedo trabalhava com alunos desta idade quando começou a perceber o problema da comunicação e as possibilidades de outro método de ensino: “Havia um grupo de crianças especiais, com autismo, síndrome de down, e outros tipos de deficiências. Uma vez em sala de aula, estava mostrando as letras para alfabetizar aquelas crianças, e quando mostrei a língua gestual eles reconheceram. ”

“Depois daquilo tive quase uma epifania. Montei uma espécie de protótipo deste material, e consegui reabilitar aquelas crianças. ”, indica a professora. A partir de 2011, Macedo começou a desenvolver o projeto com apoio de parcerias financeiras, o que culminou no lançamento do EKUI em abril de 2015.

Em 2016, o projeto venceu o prêmio Empreendedorismo Social em Portugal, e desde então acumula reconhecimentos nacionais no ramo. Em evento da comissão europeia sobre inovação social no fim de novembro, a iniciativa era uma das que mais gerava repercussões. Além da importância ressaltada pelo comissário Carlos Moeda, a ministra da presidência portuguesa, Maria Manuel Leitão Marques, elogiou a EKUI na abertura da reunião, que contou com inovadores sociais de todo o mundo.

Com a repercussão do EKUI, sua criadora pensa em expandir a iniciativa. A língua portuguesa gestual é própria do país, mas Macedo não vê grandes dificuldades no processo de expansão: “Há alguns fonemas diferentes dos nossos, mas a adaptação é muito simples. Em 15 dias eu consigo fazer uma adaptação para o inglês. Temos de ter parceiros que queiram entrar neste processo conosco. ” Com o mesmo alfabeto, uma possível versão brasileira demandaria apenas uma adaptação à Libras.

Tema da redação do último ENEM, a integração de deficientes auditivos no meio escolar poderia ser auxiliada com a iniciativa, afirma Macedo: “Há seis anos, em Portugal 70% da comunidade surda saia da escola sem saber o português. Sabiam a língua materna, que nesta comunidade é a gestual, mas não sabia escrever nosso português. Neste aspecto, com o EKUI, estaremos os alfabetizando neste sentido. ”

A professora vê problemas graves decorrentes desta falta de integração: “Sem ler e escrever, estas crianças viram adultos que ficam fechados em suas próprias comunidades.”

O alfabeto do EKUI é vendido por aproximadamente €17, valor que é revertido para expansão da iniciativa: “A cada caixa vendida, produzimos duas. Uma para a sustentabilidade do negócio e uma em doação para escolas. ” A iniciativa é co-financiada pelo programa “Portugal Inovação Social”.


A boa receptividade ao programa de aprendizado pelos alunos gerou um aspecto positivo que surpreendeu até mesmo sua criadora: “Por curiosidade, turmas que por norma, aprenderiam o alfabeto em três meses, tiveram esse tempo reduzido. Como as crianças usam o gestual e acham muito motivante, quando aprendem uma letra já querem saber a seguinte. Isto encurta o processo de aprendizagem por um indicador que é a motivação. ”
                                                            Foto: Reprodução